Opinião

Efeito backlash da jurisdição constitucional e o risco do retrocesso

Autor

  • Renata Martins de Souza

    é defensora pública do estado de Minas doutora em Direito Público e mestre em Teoria do Direito pela PUC-MG e professora de graduação do curso de Direito.

28 de setembro de 2023, 11h18

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, apresentou no último dia 14 de setembro uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que criminaliza o porte e a posse de substância ilícita em qualquer quantidade. A proposta precisa de 27 assinaturas (1/3 dos senadores) para começar a tramitar.

A PEC, que acrescenta dispositivo ao artigo 5º da Constituição, estabelece que "a lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar". A proposta traduz inequívoca reação legislativa ao Supremo Tribunal Federal (STF), que discute a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal a partir da interpretação da Lei nº 11.343/2006, a chamada Lei de Drogas.

O tema da descriminalização do porte de drogas surgiu na pauta do STF por meio de um recurso interposto pela Defensoria Pública de São Paulo, que patrocina os interesses de um ex-presidiário que foi condenado à pena de dois meses de prestação de serviços à comunidade por porte de maconha. Trata-se do Recurso Extraordinário n° 635.659, que teve reconhecida repercussão geral (com isso, tem-se que a decisão proferida no RE nº 635.659 servirá como parâmetro, atingindo vários processos análogos — efeito multiplicador).

A tese da defesa se resume basicamente no fato de que tal conduta não pode ser considerada crime ante sua incapacidade de trazer consequências à saúde pública, sustentando, ainda, que a criminalização do uso de drogas viola o princípio da lesividade, além de contrariar o direito fundamental à intimidade e à privacidade.

O STF tem cinco votos para afastar criminalização do porte de maconha para consumo próprio (o julgamento encontra-se suspenso por pedido de vista do ministro André Mendonça). De forma sintetizada, argumentam os ministros que a criminalização da conduta é desproporcional, por atingir de forma veemente a autonomia privada; acrescentando que a mera tipificação como crime do porte para consumo pessoal potencializa o estigma que recai sobre o usuário e acaba por aniquilar os efeitos pretendidos pela lei em relação ao atendimento, ao tratamento e à reinserção econômica e social de usuários e dependentes.

Convém, contudo, registrar que antes mesmo da retomada do julgamento, senadores e deputados federais protestavam ao argumento de que a medida deveria ser discutida pelo Congresso, não pelo STF, em clara demonstração de insatisfação com o protagonismo assumido pelo Poder Judiciário acerca da discussão de matérias sensíveis como essa.

Com efeito, cada vez mais, questões constitucionais complexas e controversas surgidas na sociedade são levadas ao crivo do Judiciário e às suas cortes. Essa virada de postura hermenêutica faz com que o Poder Judiciário, no cenário nacional, venha assumir caráter, incondicionalmente, político na condução de suas práticas decisórias, especialmente no controle de constitucionalidade.

Confirmando essa tendência, o Supremo tratou, nos últimos anos, de temas de enorme interesse público, tais como a pesquisa com células-tronco, o aborto de anencéfalos, a demarcação de terras indígenas, a implementação do sistema de cotas em universidades, a fidelidade partidária, o reconhecimento da união de pessoas do mesmo sexo, dentre outros.

Em virtude disso, costuma-se argumentar que o poder de estabelecer um parâmetro jurídico para a solução dos conflitos sociais, tem migrado do poder legislativo para o poder judicial, criando um foco de tensões constantes entre o sistema jurídico e o sistema político.

Em meio a tal contexto, decisões judiciais aptas a gerar algum nível de insatisfação costumam possibilitar o surgimento de uma mobilização organizada para alterar o entendimento adotado pelo Judiciário, ensejando um verdadeiro contra-ataque político ao resultado de uma deliberação judicial, similar ao narrado acima.

Nesse sentido, a título de mera ilustração, cabe mencionar, que em outubro de 2016, o Supremo declarou a inconstitucionalidade da prática desportiva denominada "vaquejada" (ADI 4.983/CE, rel. min. Marco Aurélio), ao argumento, em síntese, de que a vaquejada é uma prática desportiva intrinsecamente cruel.

Imediatamente, o Congresso editou a Lei Federal nº 13.364/2016, reconhecendo a vaquejada como patrimônio cultural imaterial brasileiro; e, alguns meses depois, a EC 96/2017, conhecida como "emenda da vaquejada", que acrescentou o §7º ao artigo 225 da Constituição, segundo o qual não mais se consideram cruéis práticas desportivas que usem animais, desde que elas sejam reconhecidas, legalmente, como manifestações culturais.

A rápida e forte reação legislativa à referida decisão do STF que declarou a inconstitucionalidade da lei estadual (objetivando refutar, de forma clara, o entendimento da corte) constitui autêntico exemplo do chamado efeito backlash, expressão que traduz espécie de efeito colateral das decisões judiciais em questões polêmicas, implicando reversão legislativa de um julgamento da corte.

O efeito pode consistir, ainda, em reação majoritária contra uma decisão contramajoritária, dada a constatação de que, não raras vezes, o Judiciário, para tutela dos direitos das minorias, acaba contrariando o interesse da maioria.

Conforme se observa, a resposta do legislativo a uma decisão do STF em matéria constitucional demanda, via de regra, a atuação do poder constituinte derivado, por meio da aprovação de emenda à Constituição, como forma de revelar que, salvo em relação às matérias protegidas por cláusulas pétreas, a última palavra acerca de qual deve ser o direito constitucional positivo em dado momento é do Congresso.

Objetivando minimizar episódios de resistência como estes, os ministros do STF vêm atuando de forma a tentar assegurar maior legitimidade democrática às suas decisões.

De fato, a ideia de monismo jurídico — ou seja, de que apenas o Estado produz Direito — certamente não se coaduna com o universo de uma sociedade multifacetária, em que tanto o multiculturalismo como o pluralismo jurídico apontam para caminho contrário, qual seja, a necessidade de participação coletiva na produção, aplicação e ampliação de direitos.

Em virtude disso, propõe-se a formação de um modelo coletivo de processo que fomente a utilização de instrumentos da democracia deliberativa e participativa efetiva dos cidadãos na esfera judicial. Quanto a isso, válido é registrar que a tese de Häberle (1997) é comumente utilizada para justificar o fortalecimento das audiências públicas e do amicus curiae, instrumentos de controle abstrato brasileiro por meio dos quais — em tese — se propõe abertura para que a sociedade possa se comunicar com o tribunal.

Deveras, a efetiva abertura do diálogo pode auxiliar o Judiciário na construção de uma decisão discursiva e deliberativa no processo constitucional, já que conforme sustentam os constitucionalistas contemporâneos, a ideia de democracia não mais se reduz à prerrogativa popular de eleger representantes, implicando constante necessidade de participação e legitimidade do poder. A abertura à participação dos cidadãos nos processos decisórios, portanto — em tese —, tende a enfatizar o peso do elemento argumentativo, tornando legítimas as deliberações, inclusive na seara judicial.

Por seu turno, importa, a título de exemplo, registrar o histórico julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277 e da Arguição de Preceito Fundamental nº 132, por meio do qual o STF, após admitir a manifestação e intervenção de diversas entidades e instituições representativas da sociedade civil (na condição de amicus curiae) e, com isso, possibilitar a necessária pluralização do debate constitucional sobre a matéria, optou por bem em afastar o conservadorismo, reconhecendo aos casais homoafetivos o mesmo tratamento atribuído às uniões estáveis heterossexuais, tomando por base o afeto como valor jurídico impregnado de natureza constitucional; assegurando, por conseguinte, a liberdade das pessoas para dispor da própria sexualidade.

Durante o citado julgamento, os ministros destacaram, ainda, a competência do tribunal para manter, interpretativamente, o texto da Constituição, eliminando o preconceito e exaltando o fato de que a concretização dos direitos constitucionalmente tutelados não pode submeter-se à inércia dos poderes majoritários, em especial quando a questão se referir aos direitos de titularidade de pessoas historicamente oprimidas — como o caso dos homossexuais.

De forma sumária, não se desconhece que não obstante a complexidade moral e social das questões postas linhas atrás, a postura legislativa em resposta ao descontentamento popular com o exercício da jurisdição constitucional poderá implicar, notadamente nas hipóteses que que a decisão for progressista, inegável retrocesso social em termos de proteção de direitos de minorias estigmatizadas.

 


Referências
BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Texto constitucional de 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas emendas constitucionais. Diário Oficial da União, Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 15 set. 2023.

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Porto Alegre Fabris, 1997.

OLIVEIRA, Thaísa; GABRIEL, João. Pacheco apresenta PEC para criminalizar qualquer posse de drogas. Jornal Folha de S.Paulo, São Paulo, 14 set. 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/09/pacheco-anuncia-pec-do-senado-para-criminalizar-drogas-em-qualquer-quantidade.shtml. Acesso em: 15 set. 2023.

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