Opinião

Crime de apropriação indébita tributária e as operações próprias no ICMS

Autores

  • Gamil Föppel

    é advogado professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) pós doutor em Direito Penal pela USP doutor em Direito pela UFPE e membro das comissões de Reforma da Lei de Lavagem de Dinheiro do Código Penal e da Lei de Execução Penal nomeado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado.

  • Josiane Minardi

    é advogada doutora em Direito Tributário pela PUC-SP mestre em Direito Empresarial e Cidadania especialista em Direito Empresarial e em Direito Tributário. Coordenadora de cursos de pós-graduação de Direito Tributário Empresarial. Autora de várias obras jurídicas advogada parecerista e palestrante. Foi nomeada em 2022 na Comissão de Reforma do Processo Tributário Comissão mista da qual fazem parte o Senado e o Supremo Tribunal Federal.

  • Raul Mangabeira

    é graduando em Direito pela Faculdade de Direito da UFBA (Universidade Federal da Bahia).

28 de setembro de 2023, 6h03

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) editou um novo enunciado de súmula que suscitou, mais uma vez, debates relevantes no meio jurídico. O novo enunciado, de número 658, reproduz entendimento já pacificado na 3ª Seção da Corte [1], segundo o qual: “O crime de apropriação indébita tributária pode ocorrer tanto em operações próprias como em razão de substituição tributária”.

Em síntese, o enunciado em questão afirma ser possível o crime de apropriação indébita tributária também nas operações próprias. Neste texto, serão discutidas as nuances entre operações próprias e operações por substituição tributária, bem como serão tecidas críticas à interpretação que considera possível a adequação típica de operações próprias de ICMS ao artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/90. Finalmente, defende-se, tal como já feito em outras oportunidades, a tese de que, também em relação ao artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/90, a fraude se revela como elemento imprescindível para a conformação do fato punível [2].

As operações próprias referem-se às transações comerciais em que o contribuinte, comerciante, é o responsável pelo recolhimento do ICMS ao Estado. Em contraste, as operações por substituição tributária ocorrem quando a responsabilidade pelo recolhimento do imposto é transferida a outro contribuinte que participa da cadeia de produção ou comercialização, muitas vezes o fabricante ou importador. Nesse contexto, é fundamental entender que o ICMS é um tributo indireto, o qual incide sobre o consumo e é recolhido pelos comerciantes e é repassado ao consumidor final.

Justamente por essa natureza e como, usualmente, o ICMS é cobrado por dentro, o crime de apropriação indébita se mostra de todo incompatível com a redação do inciso II do artigo 2º da Lei de Crimes Tributários. E isso porque, no caso do ICMS, tem-se situação bastante distinta, pois o comerciante, ao atribuir um preço à sua mercadoria, considera vários fatores, desde objetivos (custos de produção e necessidades de investimentos) subjetivos (posicionamento estratégico e concorrência), não sendo o consumidor final o contribuinte da relação tributária.

Assim, ao embutir no valor da mercadoria o quanto deve ser recolhido de imposto para o Estado, tem-se apenas mais um custo quantificado pelo contribuinte na elaboração de precificação de seu produto e que o consumidor final pagará. O crime do artigo 2º, II, ao revés, ocorre quando a pessoa, na condição de sujeito passivo, cobra ou desconta de um terceiro o tributo e deixa de repassar o valor para os cofres públicos, ocorrendo, portanto, a apropriação indébita.

Ademais, no caso do ICMS próprio declarado pelo comerciante e não pago, ainda que repassado esse valor no preço final da mercadoria, o que se tem é uma relação jurídico-tributária existente apenas entre o comerciante e o Estado, da qual o consumidor final não faz parte, sendo por isso incabível falar que o comerciante deixou de repassar tributo descontado na qualidade de sujeito passivo aos cofres públicos. Esse é o aspecto fundamental, ínsito à realidade de mercado, que o STJ ignora por meio de seu reiterado entendimento, agora sumulado.

O ICMS próprio não é cobrado, nem descontado de terceiros, e faz parte tão somente da obrigação da pessoa jurídica para com o Estado. Logo, o comerciante, ao vender a mercadoria para o consumidor final, não figura na condição de sujeito passivo, essa condição se limita apenas na relação entre o comerciante e o Estado.

Nessa linha, a apropriação indébita tributária se configura quando há a retenção do tributo devido, mediante fraude, mas não repassado ao Fisco, com o intuito de se apropriar indevidamente dos valores. A previsão de tal conduta é clara quanto à necessidade de dolo específico, isto é, quanto à vontade livre e consciente de não efetuar o repasse do tributo devido, por meio da prática de fraudes, de ardis.

No caso do mero inadimplemento do ICMS nas operações próprias, não há a intenção deliberada de apropriar-se indevidamente do valor correspondente ao imposto. O não pagamento decorre muitas vezes de dificuldades financeiras, sazonalidade do mercado ou problemas operacionais, não caracterizando, portanto, a apropriação indébita.

Conforme já foi abordado em outra oportunidade [3], discussão sobre a existência de um dolo específico de apropriação é, portanto, completamente inócua diante da patente inexistência de tipicidade objetiva. Não há, em absoluto, qualquer viabilidade de se falar em dolo quando inexiste fraude. A fraude é ínsita aos tipos penais que tutelam a ordem tributária. E a fraude é um elemento afeto à tipicidade objetiva, que precede eventuais considerações sobre o dolo ou sobre, especificamente, o fato de o agente “não ter pagado como uma estratégia empresarial”. O crime tributário é de conduta vinculada.

A inexistência de crime não leva à necessária conclusão de que se estará diante de um indiferente jurídico, pelo contrário. O Direito Penal, como ultima ratio, apenas se justifica depois que todas as outras esferas de resolução de conflitos se tenham mostrando ineficazes, o que não acontece no caso concreto. O ilícito tributário é perfeito e inquestionável. Quem deixa de pagar passa a ser devedor do Fisco; poderá ser executado; poderá ser multado e poderá responder, inclusive, excepcionalmente, com seu patrimônio pessoal (respeitadas as garantias individuais).

Ao considerar o mero inadimplemento do ICMS nas operações próprias como crime de apropriação indébita, a súmula do STJ parece, data venia, ignorar a essência do ICMS e sua lógica operacional. É necessário distinguir a situação de não pagamento do tributo, que pode ser decorrente de inúmeras razões, da apropriação dolosa de valores não repassados ao Fisco.

Ademais, é relevante mencionar que a criminalização do mero inadimplemento pode gerar um ambiente de insegurança jurídica para os empresários, inibindo investimentos e prejudicando a economia. A aplicação rigorosa da lei penal tributária deve ser pautada pela proporcionalidade e pela interpretação sistemática e teleológica das normas, visando a proteção da ordem tributária sem excessos punitivos.

Para que se configure crime, além de satisfeitas as demais elementares típicas que não se coadunam com a dinâmica do ICMS própria, seria imperativo que houvesse comprovação de fraude, má-fé ou conduta intencionalmente voltada para a apropriação indevida dos valores de ICMS. A criminalização do mero inadimplemento do ICMS nas operações próprias sem a presença de elementos que caracterizem a fraude é desproporcional e contraproducente para a segurança jurídica e o desenvolvimento econômico do país.

Em síntese, a interpretação de que o mero inadimplemento do ICMS nas operações próprias configura crime de apropriação indébita tributária, tal como expressa, de maneira genérica, na súmula do STJ, necessita ser reavaliada à luz da natureza do ICMS, das peculiaridades das operações próprias e por substituição tributária, bem como dos princípios que regem o Direito Penal. O reconhecimento da ilicitude deve estar respaldado na efetiva demonstração de fraude ou conduta dolosa, a fim de evitar equívocos e excessos punitivos incompatíveis com o ordenamento jurídico brasileiro.

Por fim, cabe rememorar que não é exatamente novidade o cancelamento de enunciados de súmula, tal como ocorrido com o enunciado 174, oportunidade em que o STJ refluiu do entendimento sumulado no REsp 213.054/SP.


[1] Dentre tantos, veja-se o teor do HC 399.109, Schietti,3ª S., m., 22/08/2018).

[2] Veja em https://www.conjur.com.br/2020-set-04/opiniao-ciranda-hermeneutica-stf e em FÖPPEL, G.; MINARDI, J. R. Sobre a criminalização da dívida tributária pelo inadimplemento do ICMS próprio: considerações críticas ao entendimento do RHC 163.334. Revista de Direito Penal Econômico e Compliance, v. 4, p. 13-30, 2020.

[3] https://www.conjur.com.br/2020-set-04/opiniao-ciranda-hermeneutica-stf

Autores

  • é advogado, professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia), pós doutor em Direito Penal pela USP, doutor em Direito pela UFPE e membro das comissões de Reforma da Lei de Lavagem de Dinheiro, do Código Penal e da Lei de Execução Penal, nomeado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado.

  • é especialista em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e em Direito Tributário pelo Centro Universitário Curitiba, mestre em Direito Empresarial e Cidadania pelo Centro Universitário Curitiba e Doutoranda em Direito Tributário pela Universidade Católica de São Paulo.

  • é graduando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.

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