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Regulação do mercado de carbono no país deve aumentar eficácia do Código Florestal

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25 de setembro de 2023, 8h49

A regulamentação do mercado de carbono no Brasil, formalmente conhecido como Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE), deve afetar não apenas os setores que terão de se adaptar aos limites de emissão de poluição, mas também os potenciais vendedores de créditos, em especial aqueles provenientes do uso da terra, ou seja, de sua preservação.

E a aprovação desse mercado tem tudo para aumentar a eficácia de leis como o Código Florestal, ainda que em função dos ganhos financeiros que os produtores rurais vão obter. 

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Mercado de emissões deve impulsionar eficácia do Código Florestal brasileiro
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O código, apesar de ser sofisticado e considerado por especialistas brasileiros e estrangeiros um exemplo de normativa para gestão do uso da terra, tem gargalos enormes e enfrenta resistência de parte do setor ruralista — em especial os latifundiários que têm maior déficit de vegetação nativa. 

A regulamentação do setor de carbono pode pressionar essa fração do setor a ter sua terra devidamente registrada, seguindo o que determina o código, e os governos estaduais, a analisar e validar os cadastros já existentes. Hoje, há problemas de cumprimento dessa legislação em todos os estados brasileiros, principalmente por causa da pulverização das normas. Apesar de o Código Florestal ser federal, sua aplicação depende dos estados, que possuem normativas ambientais próprias.

Dessa forma, dois instrumentos previstos pelo código (e que foram amplamente prejudicados por leis de anistia a desmatadores e prorrogações excessivas de prazos, por exemplo) tendem a ser diretamente afetados pelo mercado de carbono regular: o Programa de Regularização Ambiental (PRA, que visa a estabelecer o tamanho do déficit de vegetação nativa de determinada propriedade rural) e o Cadastro Ambiental Rural (CAR, que funciona como um registro geral de todos os imóveis rurais do país).

Grosso modo, em geral um produtor rural cadastra seu imóvel no CAR e, a partir da análise do governo estadual, é estabelecido um passivo ou um ativo em relação à preservação da vegetação nativa daquela terra. Se há déficit, o produtor tem de aderir ao PRA.

Um sinal da baixa eficácia do código é o fato de que, desde sua aprovação, em 2012, todos os governos federais, em alguma intensidade, sancionaram leis para postergar os prazos de adesão ao PRA, que é o instrumento mais importante para verificar o tamanho das áreas desmatadas no país. A última delas foi aprovada em junho deste ano pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

"A relação entre mercado de carbono e o Código Florestal se dá em um momento em que grande parte das florestas não protegidas, que poderiam ser desmatadas, está em propriedades privadas. E como eu garanto que essas áreas que podem ser desmatadas continuam como floresta? Permitindo que elas gerem renda", diz Roberta del Giudice, advogada e secretária-executiva do Observatório do Código Florestal.

"Hoje não se tem vontade política de implementar o código. Os latifundiários atuam para que ele não seja aplicado. Agora, o dia em que a validação do CAR tiver o potencial de gerar recursos, de trazer recursos para esses produtores que cumprem a lei, aí a gente vai ter uma pressão para que os governos estaduais realmente implementem a lei. E essa pressão pode ser derivada da regulamentação do mercado de carbono."

A conexão entre os dois ordenamentos também aparece no texto da senadora Leila Barros (PDT), que relata o projeto que regulamenta o mercado de carbono na Comissão de Meio Ambiente do Senado. Finalizado na última semana pela congressista, o relatório cita algumas vezes o código, entre elas uma emenda proposta pelo senador Zequinha Marinho prevendo que "a manutenção ou recomposição de áreas protegidas pelo Código Florestal sejam elegíveis para gerar créditos de carbono". 

"O CAR é um fantástico instrumento de gestão de territórios, mas nós temos uma coisa maravilhosa no papel e o Estado não dá a contribuição que é dele, de analisar esses cadastros para que você, com base na identificação dos eventuais ativos e passivos, possa caminhar para a eventual solução dos passivos aderindo depois ao PRA", afirma o advogado Édis Milaré, especialista em Direito Ambiental.

A própria natureza jurídica do crédito de carbono — que a partir da norma gestada no Congresso ficou caracterizado como valor mobiliário, ou seja, tangível — foi alterada. É uma espécie de amadurecimento da discussão, posto que, caso seja aprovado dessa maneira, será um bem no sentido mais tradicional, inclusive com possibilidade de penhora. 

"Na medida em que você tem um ativo muito importante para o mercado, qualquer tipo de melhoria para o processo tem chance de impactar outras leis", diz o advogado Vladimir Miranda Abreu, sócio do escritório TozziniFreire Advogados. 

Oferta e demanda
O cerne da discussão é relativamente simples: o mercado regulado de créditos de carbono vai ampliar, necessariamente, a demanda por esses títulos, posto que a legislação vai impor um teto de emissão de gases estufa, independentemente do setor em que a empresa atue.

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Brasil é um dos mercados mais promissores de emissão de crédito de carbono
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De acordo com o texto que tramita no Congresso, todas as empresas que possuírem atividade que emita mais de 25 milhões de toneladas de CO² por ano terão de compensar a poluição que geram com créditos de carbono (cada crédito equivale a uma tonelada de CO²).

Diferentemente de Estados Unidos e Europa, que têm emissões concentradas em queima de combustíveis fósseis e geração de energia, no Brasil a emissão de gases está diretamente relacionada ao uso da terra, seja no manejo ou na agropecuária.

Os números mais recentes do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (Seeg), vinculado ao Observatório do Clima, mostram que "mudança no uso da terra e florestas" (1,1 bilhão de toneladas de CO²) e "agropecuária" (600 milhões de toneladas de CO²) são as duas divisões mais poluentes do Brasil. 

Esses dados são importantes também pela sua intersecção. A expressão "mudança no uso da terra" faz referência a desmatamento e supressão de vegetação nativa, o que libera intensa quantidade de carbono na atmosfera. E tem relação intrínseca com a agropecuária, posto que muito desse desmate está relacionado com pecuária e monocultura. 

Em suma, diferentemente do que acontece em legislações estrangeiras, aqui deve prevalecer a emissão de créditos de carbono ligados ao uso da terra, o que cria um fluxo de oferta e demanda com maior potencial do que o chamado mercado voluntário, em que as empresas, de ofício, propõem-se a comprar ou emitir esses créditos.  

Nesse mercado, a partir de certificados emitidos por empresas como a americana Verra (considerada uma das principais do segmento), supostamente sem fins lucrativos, projetos que envolvem redução de emissões no uso da terra podem emitir créditos de carbono e comercializá-los dentro ou fora do país.

Já o comércio de créditos regulamentado pelo Estado é semelhante, mas designa aos entes públicos (agências, secretarias etc.) a formulação de regras a serem seguidas e quais empresas, seja qual for a natureza delas, poderão dar lastro aos créditos.

A advogada Roberta Del Giudice afirma que, além do mercado que vai naturalmente crescer em torno do carbono, uma série de demandas podem ser criadas a partir dessa regulamentação, como na mitigação de impactos ambientais durante o licenciamento ou na reposição de áreas que poderiam ser desmatadas porque não estão em locais de proteção.

Ela, no entanto, afirma que as leis pulverizadas e a falta de uma regulação federal do Código Florestal têm atravancado esses instrumentos. 

"Temos problemas em relação ao Código Florestal no Brasil inteiro. A coordenação ficou muito aquém do necessário nesse período. A gente tem dificuldade até de ter todos esses problemas mapeados para entender como sair dessa situação", diz a advogada.

Para Milaré, a regulação pode ser peça-chave para avançar sobre os problemas fundiários do país. "Essa regulamentação vai ensejar um caminhar mais tranquilo para que se consiga efetivamente resolver esse problema do Código Florestal. É um incentivador à regularização nessa caótica situação."

Um ponto que ainda gera fricção entre os agentes que discutem a normativa é a designação de setores que serão atingidos pelo limite de emissão de gás carbônico. Pela lei que deve ser aprovada, não há essa especificação, somente a quantificação de gases que podem ser emitidos.

"Existe uma discussão se o mundo do agro vai estar sujeito à regulação ou não. O projeto de lei trata de fontes de emissão dos gases estufa, não trata de setores específicos. Vai depender um pouco de como essa quantificação das emissões vai ser feita", avalia Vladimir Abreu.

"O que precisamos fazer é promover o desenvolvimento de metodologias que sejam 'tropicalizadas', que digam respeito à realidade brasileira. No âmbito do mercado de carbono regulado, o agro brasileiro tem um grande potencial de ser beneficiário disso, na medida em que você consegue desenvolver tecnologias em que o agro capte esses gases de efeito estufa e promova a redução de sua emissão. O agro deve enxergar isso como oportunidade, e não como problema", sentencia ele.

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