Contestada, junta médica protege planos de saúde na ANS e não impacta julgamento
24 de setembro de 2023, 9h46
O uso do procedimento da junta médica para dirimir dúvidas sobre a real necessidade de cirurgia reparadora em pacientes que se submeteram a operação bariátrica serve para blindar os planos de saúde de multas e tem o potencial de reduzir a judicialização, mas sem impedir que os prejudicados acionem o Judiciário.
O tema foi alvo de debate com certo grau de incompreensão durante o julgamento em que a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça fixou ser obrigatória a cobertura desses procedimentos pelos planos de saúde, quando decorrente do tratamento de obesidade mórbida.
Esse procedimento das juntas médicas não estava em discussão no tema afetado sob o rito dos recursos repetitivos, mas foi incluído nas teses preparadas pelo relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, como uma forma de incentivar uma solução administrativa para o problema.
O uso dessas juntas foi regulamentado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) em 2017 e, inclusive, consta do Enunciado 24 aprovado pelas jornadas de direito da saúde do Conselho Nacional de Justiça.
São formadas por três profissionais: o médico que prescreveu o procedimento, o médico da operadora que se opôs ao mesmo e um desempatador, que será escolhido em comum acordo pelas partes e dará a palavra final de forma extrajudicial.
Se o parecer for a favor do procedimento, a operadora deve custeá-lo. É essa a única hipótese em que a junta médica pode reduzir a judicialização do tema. Se a conclusão for a favor da recusa, ainda assim o paciente poderá ajuizar ação para pedir o custeio.
A recusa da operadora, embasada pelo parecer da junta médica, não caracteriza negativa de cobertura indevida, o que blinda o plano de saúde das multas previstas na RN 489/2022 da ANS. A punição por deixar de garantir cobertura prevista em lei, por exemplo, é de R$ 80 mil.
A única influência exercida pela junta médica, portanto, será administrativa. Uma vez ajuizada a ação, o paciente obviamente suscitará a necessidade de perícia técnica, que fatalmente será deferida pelo juiz, sob pena de cerceamento de defesa pela não produção da prova necessária.
Quando defendeu o uso das juntas médicas, o ministro Cueva destacou que a ideia não é que elas funcionem como um bloqueio ao acesso à Justiça, mas que facilitem o mesmo, para que só ocorra quando realmente houver uma infundada recusa de cobertura pelo plano de saúde.
O caso no STJ se centrou nos casos de cirurgia reparadora pós-bariátrica, mas é comum o uso de juntas médicas para procedimentos como cirurgia de coluna, rinoplastia e, principalmente, para discutir a necessidade dos materiais indicados pelos médicos assistentes.
Advogados e entidades que participaram do julgamento do STJ como amici curiae (amigos da corte) e ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico divergiram sobre o impacto das juntas médicas no ambiente da saúde suplementar.
Aqueles que representam os planos de saúde criticam o fato de as juntas médicas serem totalmente desinfluentes nos processos judiciais. Já as entidades de defesa do consumidor as classificam como um instrumento protelatório e parcial usado a favor das operadoras.
Questão de técnica
Segundo advogadas do escritório BHC Advogados, que representam planos de saúde em casos judiciais e administrativos, o uso das juntas médicas é recorrente e vai depender do custo-benefício que podem oferecer para as operadoras.
Isso porque a RN 424/2017 da ANS impõe aos planos de saúde a responsabilidade de arcar com custos como honorários do desempatador e despesas de deslocamento e estadia, quando necessário. Sob nenhuma hipótese esses valores podem recair sobre o beneficiário.
Esse foi um dos pontos que gerou debate no julgamento do STJ, motivou pedido de vista da ministra Nancy Andrighi e levou à inclusão, na tese aprovada, da obrigação das operadoras de arcar com os custos do procedimento da junta médica.
A advogada Aline Gonçalves destaca que as juntas médicas permitem uma discordância técnica em relação à prescrição médica, por meio de um procedimento absolutamente regulado e que segue um rito próprio. Ou seja, há uma legitimação da negativa de cobertura.
Ainda assim, ela vê que esse resultado é tratado como de menor importância e relevância, frente à independência que existe entre as instâncias administrativa e judicial. Livia Linhares concorda com a crítica e destaca que a consequência é a judicialização desses casos já apreciados.
"A grande questão é pensar que é necessário separar a técnica de um olhar só de consumidor nessa relação da saúde suplementar. A questão técnica precisa ser observada, sob pena de não sabermos para onde o setor vai", explica a advogada. E essas consequências são graves.
"Quando se tem uma abertura de portas para judicialização, isso impacta o sistema, que vai jogar os custos para o beneficiário no valor da mensalidade, nos reajustes. São aspectos que não foram previstos quando o contrato foi preparado", diz a advogada Rachel Quintana.
Imparcialidade contestada
Para o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a regulação das juntas médicas feita pela ANS é insuficiente para garantir a imparcialidade do procedimento. A entidade manifestou reservas ainda à época em que a resolução normativa foi editada pela agência.
A primeira crítica é quanto à figura do desempatador, que deve ser aprovado pelo paciente, mas é indicado pela operadora de plano de saúde. Segundo o artigo 10 da RN 424/2017, a empresa oferece quatro nomes e poderá escolher livremente se o médico do paciente recusá-los ou se manter em silêncio.
Outro ponto de censura é quanto aos prazos. A ANS aponta que a junta deve dar fim à questão no mesmo período que a operadora teria para decidir sobre o tratamento, mas a alegação do Idec é de que essa janela de tempo é frequentemente desrespeitada.
Um dos motivos é a possibilidade de o médico desempatador solicitar exames complementares. Se o paciente se recusar a fazê-los, automaticamente vence a posição pela recusa do tratamento. Tudo isso funciona como fator de repressão à indicação do médico do paciente.
Segundo advogada do programa de Saúde do Idec, Marina Paullelli, o receio é de que as operadoras de plano de saúde usem o procedimento da junta médica como mecanismo protelatório da concessão da cobertura, em prejuízo dos pacientes.
O alerta foi feito na tribuna da 2ª Seção no dia do julgamento, por Pedro Carriello, da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. "A preocupação é que os planos de saúde busquem essa solução sempre no sentido de levantar a dúvida quando já se tem uma operação feita e uma presunção do consumidor, uma boa-fé, mediante indicação médica."
Requerimentos abusivos
Para o ministro Villas Bôas Cueva, a junta médica é uma saída para as operadoras contestarem procedimentos em um cenário de requerimentos abusivos que não se enquadram no conceito de cirurgia plástica reparadora. O voto inclui manifestação da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica sobre o tema.
A entidade cita grupos de cirurgiões e advogados que têm atraído pacientes bariátricos pelas redes sociais com o intuito de pedir cirurgias para angariar ganhos financeiros, levando à Justiça ao erro por meio do uso de nomenclaturas enganosas.
O problema foi apontado também na tribuna da 2ª Seção do STJ por André Rodrigues Cirino, da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), entidade que reúne as operadoras de plano de saúde. Segundo ele, há "um incentivo e uma realidade de abusos" no Brasil.
Para Marina Paullelli, do Idec, o consumidor deve agir de boa-fé, mas questões éticas ou relativas à segurança do negócio dos planos de saúde não podem ser repassadas a ele como risco. Assim, fraudes devem ser resolvidas entre operadoras e prestadores de serviço.
"A grande questão é que, do ponto de vista do consumidor, a princípio, a junta médica não seria necessária. A Lei de Planos de Saúde, inclusive com sua alteração recente, já dá indicativos suficientes de como essa cobertura é obrigatória", diz a advogada.
Influência zero
A desinfluência das juntas médicas nos julgamentos envolvendo planos de saúde se resume pela escassez com que é citada. No STJ, até o julgamento dos repetitivos sobre cirurgia reparadora, havia apenas um acórdão que fazia referência ao procedimento.
No REsp 1.911.407, a 3ª Turma considerou abusiva a recusa de custear medicamento para tratamento de câncer de uma paciente que foi deixada à própria sorte. O voto cita que a operadora poderia ter recorrido à junta médica para avaliar melhor o caso.
Em São Paulo, estado que concentra 18,2 milhões de beneficiários de plano de saúde, correspondentes a 35,9% do total no país, os resultados das juntas médicas são igualmente ignoradas no julgamento dos recursos, conforme acórdãos do Tribunal de Justiça local.
A tese do STJ já tem sido usada para definir que, se caberia às operadoras custear o procedimento da junta médica, é delas também a responsabilidade de pagar pela prova pericial necessária. Foi a posição adotada pela 3ª Câmara de Direito Privado em diversos casos.
Um acórdão relatado pelo desembargador João Pazine Neto ainda esclarece que a perícia deve ser feita por profissional de confiança do Juízo, com a possibilidade das partes nomearam os respectivos assistentes técnicos, "o que levará à análise dos fatos nos moldes do que ocorreria numa junta médica, mas aqui com a necessária observância do regramento processual civil".
Com a publicação do acórdão da 2ª Seção com a tese definida em recursos repetitivos, na última terça-feira (19/9), a tendência é de os entendimentos serem adotados e citados em julgamentos dos demais tribunais brasileiros.
Clique aqui para ler o acórdão do STJ
REsp 1.870.834
REsp 1.872.321
REsp 1.911.407
Apelação Cível 1011414-66.2020.8.26.0037
Apelação Cível 1009603-87.2020.8.26.0161
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