Observatório Constitucional

Da Revolta da Vacina à cloroquina: a Constituição Científica

Autor

  • Saul Tourinho Leal

    é pós-doutor em Direito Constitucional pela Humboldt e ex-assessor da Corte Constitucional da África do Sul e da vice-presidência da Suprema Corte de Israel.

23 de setembro de 2023, 8h00

Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, qualificou a Constituição de 1988 como sendo a "Constituição Cidadã", em razão dos seus muitos direitos voltados à cidadania de todos aqueles que, por 21 anos, se viram privados do elemento primeiro de uma democracia, que é a participação livre em eleições periódicas.

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Décadas depois, foi a vez de o ministro Luiz Fux, num emblemático julgamento do Supremo Tribunal Federal, intitulá-la de "Constituição Verde" [1], tomando como referência, dessa vez, a proteção ao meio ambiente.

Agora, 35 anos depois do advento do nosso mais bem sucedido invento jurídico, que outro elemento, além da cidadania e do meio ambiente, poderia ser identificado com a Constituição a ponto de estar ao seu lado, referindo-a e com ela se confundindo?

Há pelo menos uma resposta possível: a ciência. Será que, além de "Cidadã" e "Verde", a nossa Constituição também pode ser "Científica?"

O desenvolvimento científico é um tipo de programa transindividual endereçado a essa e às futuras gerações. Há nele dimensões como o da liberdade científica dotadas de tamanho relevo a ponto de figurarem expressamente no rol dos direitos fundamentais.

Caso verifiquemos que se trata, a ciência, de um direito pelo menos circunstancialmente contramajoritário, a sua flexibilização, no plano do direito positivo ou no da construção exegética, seria absolutamente vedada. Estaria, a ciência, blindada de interpretações judiciais ou reconstruções normativas (por leis ou mesmo por emendas constitucionais) dotadas do propósito de esvaziar o seu núcleo essencial.

A Constituição de 1988, em sua redação originária, trouxe o inciso V do artigo 23 dispondo ser da competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios proporcionar os meios de acesso à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação. O artigo 24, IX, diz competir à União, aos estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre "ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação"

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No plano do direito material, o inciso IX do artigo 5º um direito fundamental assegura ser livre a expressão científica, independentemente de censura ou licença.

Prosseguindo, o inciso III do artigo 216 dispõe que as criações científicas integram o patrimônio cultural brasileiro.

Por fim, o § 7º do artigo 226 assevera que, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos científicos para o exercício desse direito.

Percebe-se que a Constituição de 1988, sem prejuízo do exame de outros dispositivos diretamente relacionados, disciplina aspectos distintos da ciência, seja ao conferir competências federativas de execução de políticas ou de construção legislativa; seja assegurando a liberdade de expressão científica; seja elegendo as criações científicas como integrantes do patrimônio cultural brasileiro; seja, por fim, determinando que o Estado propicie recursos científicos para o planejamento familiar.

Não bastasse, a Constituição, no ano de 2015, viu-se reformada pela emenda nº 85, que alterou e adicionou dispositivos com a intenção de atualizar o tratamento das atividades de ciência (também de tecnologia e inovação).

A emenda constitucional nº 85/2015 qualifica o Capítulo IV da Constituição como "Da Ciência, Tecnologia e Inovação". Vem, então, um conjunto de acréscimos. Segundo o artigo 218, "o Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação". O § 1º diz que "a pesquisa científica básica e tecnológica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso da ciência, tecnologia e inovação". Segundo o § 3º, "o Estado apoiará a formação de recursos humanos nas áreas de ciência, pesquisa, tecnologia e inovação, inclusive por meio do apoio às atividades de extensão tecnológica, e concederá aos que delas se ocupem meios e condições especiais de trabalho". Por fim, o § 7º diz: "O Estado promoverá e incentivará a atuação no exterior das instituições públicas de ciência, tecnologia e inovação, com vistas à execução das atividades previstas no caput".

Todos foram incluídos pela EC nº 85/2015, que também trouxe o artigo 219-B, a dizer: "O Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI) será organizado em regime de colaboração entre entes, tanto públicos quanto privados, com vistas a promover o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação".

Por fim, a EC nº 85/2015 introduziu o inciso V do artigo 200, dispondo que compete ao sistema único de saúde, além de outras atribuições, nos termos da lei, "incrementar, em sua área de atuação, o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação".

Há, claramente, um sistema normativo presente na Constituição de 1988 voltado ao desenvolvimento científico. Esse sistema foi robustecido por ação do poder constituinte derivado reformador graças à emenda constitucional nº 85/2015.

Sabendo que não há norma jurídica que não seja norma jurídica interpretada como anota Peter Häberle , e reconhecendo que a Constituição Científica é uma realidade, então não tardaria para emergir uma jurisprudência da ciência no Supremo Tribunal.

Essa jurisprudência, contudo, para que pudesse nascer, primeiro cuidou de rememorar a nossa história e, ao fazê-lo, lembrou de tudo o que já fizemos, ontem e hoje, contra a ciência. Lembrou também acerca da permanente tensão entre os propósitos coletivos derivados do progresso científico e a autonomia individual. Por fim, a jurisprudência do STF sobre a qual estamos a tratar asseverou que a história tem o dever pedagógico de nos ensinar, para que, assim, não cometamos os mesmos erros.

Vale recordar essa rica jornada interpretativa. Em 2021, apreciando a ação direta de inconstitucionalidade nº 6.586 (DJe 7/4/2021), o STF se debruçou sobre a previsão de vacinação obrigatória, excluída a imposição de vacinação forçada, reputando-a legítima, desde que as medidas às quais se sujeitam os refratários observem os critérios legais, a saber, o direito à informação, à assistência familiar, ao tratamento gratuito e, ainda, ao "pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas", bem como os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, de forma a não ameaçar a integridade física e moral dos recalcitrantes.

Para chegar a essa conclusão, contudo, o ministro Ricardo Lewandowski rememorou o que chamou de "infausto episódio conhecido como 'Revolta da Vacina'". Anotou que "no início do século passado, o médico Oswaldo Cruz, então Diretor do Serviço de Saúde Pública, após combater com sucesso a febre amarela e a peste bubônica que grassavam no Rio de Janeiro, à época Capital da República, voltou-se ao enfrentamento da varíola" (p. 15 do acórdão).

Sua Excelência trouxe à lembrança que, à época, a vacinação era chamada de "despotismo sanitário" pelos críticos da vacina e por quem fazia oposição ao governo, os quais passaram a desencadear um verdadeiro "terrorismo ideológico" contra a vacina.

A Suprema Corte foi instada a entrar no debate. Ela concedeu um habeas corpus preventivo em favor de Manoel Fortunato de Araújo Costa, reputando inconstitucional a disposição regulamentar que facultava "às autoridades sanitárias penetrar, até com o auxílio da força pública, em casa de particular para levar a efeito operações de expurgo" (RHC nº 2.244/DF, redator para acórdão ministro Manoel Murtinho, DJ 31/1/1905).

O ministro Ricardo Lewandowski concluiu o seu histórico voto de forma profética: "Em alguma medida, os receios e inconformismos veiculados naquele momento histórico também se manifestam nos dias atuais" [2].

A Revolta da Vacina foi judicializada perante o Supremo Tribunal Federal em 1905. Pouco mais de um século depois, foi a vez de, na pandemia da Covid-19, o país assistir a judicialização junto ao Supremo de um outro personagem ilustre da fantasia política brasileira: a cloroquina. O episódio se deu no julgamento da medida cautelar requerida na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.421 (DJe 12/11/2020), de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso. Há um trecho da decisão que merece transcrição:

"O segundo tema central no debate público relacionado à pandemia refere-se à utilização de determinados medicamentos, de eficácia ou segurança ainda controvertidas na comunidade científica, para o combate à enfermidade, como é o caso da hidroxicloroquina. E, aqui, evidentemente, não cabe ao Supremo Tribunal Federal tomar partido nessa disputa. A nós só cabe identificarmos que há controvérsias na comunidade médica" (p. 18 do acórdão).

Em mais de um momento da nossa história a ciência esteve de um lado e uma parcela significativa da população talvez a maioria , de outro. Havia, nesses episódios, a perspectiva interpretativa da política e, em seu contraponto, a compreensão exegética do Poder Judiciário, especialmente do Supremo Tribunal Federal. A decisão de uma Suprema Corte diante de um desacordo dessa magnitude não pode se dar por meio de um "par ou ímpar", um "cara ou coroa". A ciência importa, ela existe, tem proteção constitucional e reclama concretude. É dever do Poder Judiciário preservar a "Constituição Científica", tirando-a do papel e dando-lhe vida. Sai o texto, entra a norma. Essa é a alquimia cotidiana operada pela hermenêutica judicial.  

Nesse sentido, em 2010, tornou-se célebre o precedente decorrente da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.510 (DJe 28/5/2010), relatada pelo ministro Ayres Britto, que entendeu constitucional a Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/2005), pavimentando o caminho para a realização das pesquisas com células-tronco embrionárias.

Uma década depois, na pandemia da Covid-19, o STF decidiu que os atos de agentes públicos em relação à pandemia devem observar critérios técnicos e científicos de entidades médicas e sanitárias. A decisão foi tomada, por maioria, em sete ações diretas de inconstitucionalidade [3]. "O erro grosseiro previsto na norma é o negacionismo científico", pontuou, nesse julgamento, o ministro Luiz Fux.

Antes, julgando a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.501 (DJe 1/12/2020), o STF havia derrubado o "ato normativo mediante o qual autorizado fornecimento de substância, sem registro no órgão competente". Tratava-se da Lei nº 13.269/2016, que autorizava o uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes com neoplasia maligna. Noutras palavras, construía o acesso das pessoas à chamada de "pílula do câncer".

No caso acima, o ministro Marco Aurélio, relator, fez um pronunciamento contundente em proveito da ciência ao anotar o seguinte:

"A esperança que a sociedade deposita nos medicamentos, sobretudo aqueles destinados ao tratamento de doenças como o câncer, não pode se distanciar da ciência. Foi-se o tempo da busca desenfreada pela cura sem o correspondente cuidado com a segurança e eficácia dos fármacos utilizados. O direito à saúde não será plenamente concretizado se o Estado deixar de cumprir a obrigação de assegurar a qualidade de droga mediante rigoroso crivo científico, apto a afastar desengano, charlatanismo e efeito prejudicial" (p. 11 do acórdão).

Noutro caso, o STF afirmou que "o registro na Anvisa constitui proteção à saúde pública, atestando a eficácia, segurança e qualidade dos fármacos comercializados no país" (RE nº 657.718, redator ministro Luís Roberto Barroso, DJe 9/11/2020).

Como se observa, a partir da Constituição Científica nasceu a jurisprudência da ciência. E essa Constituição, que completa 35 anos, segue pavimentando um caminho jurisprudencial apto a conferir concretude aos seus dispositivos, firmando uma linha limitadora da atuação da política que, em nossa história, adotou, circunstancialmente, posições profundamente inibidoras do progresso científico. A Constituição de 1988, portanto, aniversaria ciente de que, quanto à ciência, ela tem cumprido o seu papel.  

 


[1] "A Carta de 1988 consistiu em marco que elevou a proteção integral e sistematizada do meio ambiente ao status de valor central da nação. Não à toa, a comunidade internacional a apelidou de Constituição Verde, considerando-a a mais avançada do mundo nesse tema", anotou o ministro Luiz Fux, na ADC nº 42, p. 03.

[2]Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.586 (DJe 7/04/2021).

[3] ADIs 6.421, 6.422, 6.424, 6.425, 6.427, 6.428 e 6.431.

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