Seguros Contemporâneos

Seguros para grandes riscos, seguros massificados e a isonomia (parte 1)

Autores

  • Ilan Goldberg

    é advogado parecerista doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) professor da FGV Direito Rio e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados.

  • Guilherme Bernardes

    é advogado e sócio de Chalfin Goldberg e Vainboim Advogados e mestre em Direito e Ciência Jurídica—Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

21 de setembro de 2023, 8h00

O presente artigo, que será publicado em duas partes, tem por objetivo analisar a forma como o Projeto de Lei da Câmara nº 29, de 2017, que visa a instituir uma Lei Geral de Seguros no Brasil, trata os seguros de grandes riscos e os seguros massificados, à luz do princípio da isonomia.

Spacca
Na quadra legislativa contemporânea, o tratamento empregado aos seguros para questões de ordem contratual ancora-se, essencialmente, em dois diplomas legais: o Código Civil (artigos 757 a 802) e o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) que, em seu artigo 3º, § 2º, expressamente possibilitou qualificar as relações jurídicas securitárias como de consumo [1].

Consequentemente, abrem-se duas vias de tratamento legal, quais sejam: a primeira, vertida aos seguros classificados como de grandes riscos; e, a segunda, dirigida aos seguros chamados massificados. Os primeiros trazem relação entre partes hipersuficientes, dotadas de plenas capacidades técnica, econômica e jurídica, para que, com clareza, saibam o que estão contratando [2][3]; os segundos, por outro lado, ilustram relações marcadas pela hipossuficiência dos aderentes, a justificar, assim, o tratamento protetivo [4].

Ao intérprete, portanto, os dois caminhos referidos indicam como lidar com as querelas havidas nesses dois grandes grupos de contratos de seguros. Se se estiver diante de relação paritária, recorrer-se-á ao Código Civil, especialmente, aos artigos 421 a 424, que cuidam, respectivamente, da função social dos contratos, boa-fé objetiva, da aplicabilidade do chamado contra proferentem quando houver cláusulas ambíguas ou contraditórias, e, ainda, ao regime de nulidade de cláusulas que impliquem na renúncia antecipada a direitos resultantes da natureza do negócio jurídico celebrado.

O outro caminho, como sinalizado, também ensejará a aplicação dos artigos 757 a 802 do Código Civil, e, adicionalmente, dos remédios previstos na legislação consumerista para fins de reequilibrar a relação desenvolvida entre as partes contratantes. Entre outros, tem-se a inversão do ônus da prova (artigo 6º, inciso VIII), a adoção de um rol amplo de cláusulas consideradas abusivas (artigo 51), a desconsideração de personalidade jurídica submetida a pressupostos menos exigentes (artigo 28) etc.

Entende-se que assim os "compradores" de seguros, sejam eles consumidores propriamente ditos (segundo a definição prevista na Lei 8.078/1990) ou não, encontram no ordenamento jurídico brasileiro soluções para problemas decorrentes do descumprimento de contratos pelas seguradoras (responsabilidade contratual) e, também, soluções para problemas outros, afetos à responsabilidade extracontratual.

Ilustrando o ora exposto, compradores de seguro automóvel, residencial e vida — i.e., consumidores — encontrarão na conjugação do Código Civil com o Código de Defesa do Consumidor um norte à solução de seus problemas, o que, inclusive, conforme já salientado, decorre da previsão expressa contida no artigo 3º, § 2º, da lei protetiva. Por outro lado, em não se tratando de relação de consumo, a solução não poderá ser buscada no Código de Defesa do Consumidor, sob pena de, como se observa tão claramente, oferecer tratamento igual aos desiguais — e, assim, violar o princípio da isonomia.

Um consumidor de seguros leigo e vulnerável precisa das proteções consumeristas para que a sua dignidade seja preservada. Colocá-lo em relação de paridade seria, acima de tudo, extremamente injusto e contrário a princípios outros igualmente importantes, previstos em nossa Constituição da República como, e.g., a defesa dos consumidores e, também, a própria dignidade da pessoa humana (CR, artigo 5º, inciso XXXII, e artigo 170, inciso V, além do artigo 1º, inciso III).

Procurando manter coerência, o comprador de seguros complexos, vultosos e sofisticados (grandes riscos, no jargão securitário) não poderá receber tratamento protetivo, sob pena de desequilibrar a relação paritária havida com a seguradora que lhe vendeu a apólice respectiva.

Este argumento, com efeito, não se trata de retórica vazia e dissociada da realidade. Grandes compradores de seguros possuem, em seu staff, os chamados risk managers, profissionais especializados em análise e gestão de risco; além disso, contam com assessoria de corretores de seguros especializados, e, ainda, muitas vezes, de escritórios de advocacia os mais gabaritados.

A essa altura, convém examinar se o fato de a contratação se materializar por adesão implica, obrigatoriamente, na incidência da legislação protetiva. A doutrina, de maneira tranquila, explica que não, e o faz por meio de alguns fundamentos diferentes.

Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder e Paula Greco Bandeira atentam à existência de contratos de adesão fora do regime de proteção do Código de Defesa do Consumidor:

"Difusamente praticado nas relações de consumo, os contratos de adesão são encontrados também em relações civis e empresariais, como, por exemplo, nos contratos de locação, de franquia e de arrendamento mercantil. Por essa razão, estabelece o Código Civil duas regras aplicáveis aos contratos de adesão mesmo aqueles imunes à incidência da normativa consumerista. Em primeiro lugar, determina o art. 423 que, diante de cláusulas ambíguas ou contraditórias, deve prevalecer a interpretação mais favorável ao aderente, em atendimento ao princípio geral de que a clareza é ónus de quem estipula os termos do contrato (interpretativo contra stipulatorem). Mais incisiva é a regra cominada no art. 424, que determina regime de validade diferenciado para cláusulas contidas no contrato de adesão, coibindo qualquer cláusula que implique renúncia a direito resultante da natureza do negócio" [5].

Estudando os requisitos dos contratos de adesão, Orlando Gomes explica que neles o clausulado é preparado com vistas a uma massa de potenciais interessados, e não a uma parte individualmente considerada. Assim, são traços dessa espécie de contratação a uniformidade e abstratividade:

"[…] É a forma do consentimento que identifica a figura jurídica do contrato de adesão se, obviamente, a reconstituição unilateral do seu conteúdo for realizada para contratos em massa. Afinal, a aceitação em bloco de cláusulas preestabelecidas significa que o consentimento se dá por adesão. Na observação de Saleilles, uma das partes dita a lei não mais a um indivíduo, mas a uma coletividade indeterminada. […] O modo de consentir não é bastante para caracterizar o contrato de adesão. Outras particularidades, tais como a uniformidade e abstratividade das cláusulas pré-constituídas unilateralmente, são indispensáveis à sua configuração" [6] (grifou-se).

Gomes prossegue em sua análise referindo a alguns exemplos de contratos de adesão, citando, inclusive, os contratos de seguros. É muito interessante observar nessas lições a exemplificação atinente aos contratos de trabalho a depender de seus destinatários, o que implica na manutenção ou não da classificação como contrato de adesão:

"Enumeração completa dos contratos de adesão não seria possível, nem útil, até porque, segundo feliz expressão, são moeda corrente na vida moderna. Contudo, interessa registrar os mais comuns: contratos de seguro, o de transporte, os de fornecimento de luz, força, gás e água, prestação dos serviços de telefones e telégrafos, determinados contratos bancários, contratos de direito marítimo e venda de certas mercadorias. […] O contrato de trabalho nas empresas de grandes dimensões realiza-se por adesão e regulamento ditado pelo empregador ou resultante de convenção com o próprio pessoal, ou ainda pelas associações profissionais representativas das categorias a que pertencem os interessados em sua conclusão. […] Também o contrato de trabalho deixa de ser contrato de adesão propriamente dito quando celebrado com pequeno empresário e se o candidato ao emprego se acha em posição de discutir suas condições" [7] (grifou-se).

Ao se verificarem os exemplos de contratos de adesão — seguros, transporte, luz, força, água e gás — forçoso concluir que Orlando Gomes tinha em mente os chamados contratos de massa, celebrados de maneira padronizada junto a grupos enormes de pessoas. Basta ver que, quanto ao exemplo que toca nos contratos de trabalho, o autor retira da categoria "de adesão" aqueles pactos firmados com pequenos empresários que, de alguma maneira, pudessem negociar as suas cláusulas. Estabelecendo um paralelo, os seguros massificados estariam para os contratos de trabalho ordinários, celebrados com uma multiplicidade de trabalhadores, assim como os grandes riscos estariam para contratos de trabalho individualizados, celebrados com os chamados pequenos empresários.

Nessa mesma direção, vale, observar a perspicaz observação de Antônio Junqueira de Azevedo àquela que, para ele, representaria a verdadeira dicotomia dos contratos no Século XXI. Ao invés de contrapor os contratos paritários aos de adesão, o autor ensina que a real dicotomia dar-se-ia entre os contratos empresariais e os existenciais:

"hoje, contratos apartam-se entre 'contratos empresariais' e 'contratos existenciais', que incluem os contratos de consumo, contratos celebrados para viabilizar a subsistência da pessoa humana, compra da casa própria, contratos de trabalho e locações residenciais. 'Essa nova dicotomia é, a nosso ver, a verdadeira dicotomia do sec. XXI'. Trata-se de sistematização tão funcional para o nosso século quanto foi no século passado a distinção entre os contratos paritários e os contratos de adesão" (Grifou-se) [8].

Lembrando que a contratação de seguros para grandes riscos coloca, frente a frente, representantes de ambos os lados, dotados de amplo know-how, resta evidente que não há que se falar em incidência do regime protetivo. Com risk managers, escritórios de advocacia e brokers (corretores de seguros os mais especializados), pelo lado dos grandes segurados, realmente não há que se falar em hipossuficiência de espécie alguma, por qualquer ângulo que se observa essa relação segurado-seguradora.

Ignorando essa diferença capital, o PLC 29/2017, atualmente submetido ao exame do Senado da República, não propõe tratamento distinto para os seguros massificados e de grandes riscos. O texto, de viés fortemente protetivo, não separa os seguros massificados dos grandes riscos, aplicando-se aos chamados dois grandes grupos indistintamente, como se fossem iguais.

Entre outros remédios protetivos dos consumidores de seguros previstos no projeto de lei, a regra "interpretatio contra proferentem" (artigo 58), o prazo decadencial de 30 dias para recusa de cobertura (artigo 89), o regime de contratação com aceitação tácita em 15 dias pela seguradora (artigo 52) e de aceitação tácita em dez dias pelo ressegurador (artigo 64), a imposição do foro e direito brasileiros para todas as arbitragens (artigo 63), inclusive entre seguradores, resseguradores e retrocessionários (artigo 127), serão invariavelmente aplicados também aos contratos de seguros para grandes riscos, desequilibrando, assim, a relação paritária entre as partes contratantes.

Para que esse singelo texto não pareça uma opinião capturada por interesses egoísticos, desprovida de fundamentação jurídica, deseja-se chamar a atenção ao tratamento empregado em ordenamentos jurídicos europeus e latino-americanos para os seguros de grandes riscos e massificados, permitindo que, com a necessária serenidade e isenção, seja alcançada a conclusão a respeito do acerto ou desacerto do Projeto de Lei nº 29 à presente temática.

 


[1] Lei 8.078/1990. "Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. […] § 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista" (grifou-se).

[2] Para uma análise dos pressupostos qualificantes dos chamados seguros para grandes riscos, remetemos ao nosso: GOLDBERG, Ilan. SeguroCast. CNSeg. O que são 'Grandes riscos' no seguro e como funcionam esses contratos? 18.07.2023. https://open.spotify.com/episode/1zFhgQzet3HZss3hWhvZSi

[3] Atualmente, a Resolução CNSP nº 407, de 2021, define, nos incisos de seu artigo 2º, como seguro de danos com cobertura para grandes riscos aqueles que: "Art. 2º Entendem-se como contratos de seguros de danos para cobertura de grandes riscos aqueles que apresentem as seguintes características: I – estejam compreendidos nos ramos ou grupos de ramos de riscos de petróleo, riscos nomeados e operacionais – RNO, global de bancos, aeronáuticos, marítimos e nucleares, além de, na hipótese de o segurado ser pessoa jurídica, crédito interno e crédito à exportação; ou II – demais ramos, desde que sejam contratados mediante pactuação expressa por pessoas jurídicas, incluindo tomadores, que apresentem, no momento da contratação e da renovação, pelo menos, uma das seguintes características: a) limite máximo de garantia (LMG) superior a R$ 15.000.000,00 (quinze milhões de reais); b) ativo total superior a R$ 27.000.000,00 (vinte e sete milhões de reais), no exercício imediatamente anterior; ou c) faturamento bruto anual superior a R$ 57.000.000,00 (cinquenta e sete milhões de reais), no exercício imediatamente anterior". Disponível em: https://www2.susep.gov.br/safe/scripts/bnweb/bnmapi.exe?router=upload/24494. Acesso em: 14 ago. 2023.

[4] "Noutras palavras, é justamente a vulnerabilidade presente nos consumidores que justifica a existência do Código de Defesa do Consumidor." (GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do consumidor. Código comentado e jurisprudência. 7 ed. São Paulo: Ed. Impetus, 2011. p. 42).

[5] TEPEDINO, Gustavo. KONDER, Carlos Nelson. BANDEIRA, Paula Greco. Fundamentos do direito civil. Contratos. v. 3. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 78.

[6] GOMES, Orlando. Contratos. 26 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 130-132.

[7] Ibid. p. 132-133.

[8] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Natureza jurídica de consórcio (sinalagma indireto). Onerosidade excessiva em contrato de consórcio. Resolução parcial de contrato. Novos estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 356. Em Portugal, Carlos Ferreira de Almeida acrescenta à categoria dos contratos de adesão os chamados contratos de adesão individualizados, que se apartam dos primeiros considerando a inexistência absoluta de negociação. Não há espaço para debate algum e apenas cabe à contraparte ou aceitar os termos postos ou recusá-los em bloco: "Assim, e considerando que está fundamentalmente em causa a inexistência de negociação, elaboração prévia tem de significar elaboração inicial, única e completa das cláusulas contratuais por uma das partes, isto é, comunicação por um dos eventuais contraentes ao outro, logo no início do processo de formação do contrato, de um projeto completo de clausulado, de tal modo que se compreenda não ficar para o destinatário outra alternativa além da adesão, no essencial, a esse projeto ou da sua recusa em globo" (ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Contratos I. Conceito. Fontes. Formação. 5ª ed. Lisboa: Almedina, 2015. p. 185).

Autores

  • é sócio fundador de Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados, advogado, parecerista, doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mestre em Regulação e Concorrência pela Universidade Cândido Mendes (Ucam), pós-graduado em Direito Empresarial LLM pelo Ibmec, professor na FGV Direito Rio, FGV Conhecimento, Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) e na Escola de Negócios e Seguros (ENS-Funenseg) e membro dos Conselhos Editoriais da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC) e da Revista Jurídica da CNSeg.

  • é advogado formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sócio do escritório Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ULisboa). Foi professor de Seguros de Riscos Cibernéticos da Escola de Negócios e Seguros, além de lecionar na pós-graduação do Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CEPED/Uerj) e na Escola Mineira de Direito (EMD).

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