Interesse Público

Procedimento para contratação de startups pela administração pública

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21 de setembro de 2023, 8h00

Como resultado de uma exposição que proferi em Belo Horizonte, no fechamento do Congresso Mineiro de Direito Administrativo do ano de 2008 [1], publiquei um artigo intitulado "Função regulatória da licitação" [2].

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O texto, que continua atual, era bastante despretensioso e teve como inspiração conversas sobre o tema mantidas com o saudoso professor Marcos Juruena Vilella Souto. A ideia fundamental era a de que, conquanto os objetivos tradicionais da licitação (e do contrato administrativo) visassem à proposta mais vantajosa e à manutenção do princípio da isonomia entre os interessados, seria possível utilizá-la com objetivos outros, visando a que pudesse desempenhar uma função regulatória.

Nesse sentido, e com exemplos práticos, procurei demonstrar no artigo o emprego do procedimento licitatório como forma de regulação diretiva ou indutiva da economia, fosse com o fim de coibir práticas que limitassem a competitividade, fosse com o mote de induzir práticas de mercado saudáveis que produzissem efeitos sociais desejáveis, imediatos ou futuros, à sociedade.

Em 2010, a Lei 12.349, de 15 de dezembro de 2010 alterou a Lei 8.666/93 e incluiu no seu artigo 3º, como finalidade da licitação, "a promoção do desenvolvimento nacional sustentável", dispondo sobre margens de preferência para produtos brasileiros e apostando fichas na capacidade de resposta das Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes) e nos Instituições Científicas e Tecnológicas (ICTs).

No mesmo ano, foi editada a Instrução Normativa nº 01 da SLTI do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, dispondo sobre critérios de sustentabilidade ambiental na aquisição de bens, contratação de serviços ou obras pela administração pública federal direta, autárquica e fundacional.

Em 2011, o Regime Diferenciado de Contratações (RDC) arrolou, no artigo 1º, §1º, os objetivos de: (a) ampliar a eficiência nas contratações públicas e a competitividade entre os licitantes; (b) promover a troca de experiências e tecnologias em busca da melhor relação entre custos e benefícios para o setor público; (c) incentivar a inovação tecnológica, para além de assegurar tratamento isonômico entre os licitantes e a seleção da proposta mais vantajosa para a administração pública (estes últimos os objetivos mais tradicionais da licitação).

A Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei 14.133/21) não foi destoante desse contexto. Previu no artigo 11, como objetivo ou finalidade da licitação, o inciso IV, disciplinado que lhe cabe prestigiar, por intermédio das aquisições públicas, o desenvolvimento nacional sustentável e a inovação.

No aspecto particular da inovação, convém aludir à Seção IV, do Capítulo X, da Lei 14.133/21, que trata do Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI). O PMI é um procedimento auxiliar da licitação (artigo 78, III), por meio do qual a administração solicita da iniciativa privada, através de edital de chamamento público, a propositura e realização de estudos, investigações, levantamentos e projetos de soluções inovadoras que contribuam com questões de relevância pública.

Ao final, tais estudos e projetos estarão à disposição da administração pública, sendo que existe a possibilidade de que o vencedor da licitação posterior tenha que assumir o compromisso de ressarcir os dispêndios correspondentes, conforme especificado no edital, fazendo com que o participante do procedimento receba uma contrapartida pela sua participação exitosa no diálogo.

Mas a regra que nos interessa comentar sobre é a do §4º do artigo 81 da Lei 14.133/21, que autoriza a realização do PMI restrito às startups. Consideram-se startups os microempreendedores individuais, as microempresas e as empresas de pequeno porte, de natureza emergente e com grande potencial, que se dediquem à pesquisa, ao desenvolvimento e à implementação de novos produtos ou serviços baseados em soluções tecnológicas inovadoras que possam causar alto impacto.

A regra da Lei 14.133/21 dialoga com franqueza com o que dispõe a Lei Complementar 182, de 1º de junho de 2021, que estabeleceu, dois meses depois, o Marco Legal das Startups. O Capítulo IV dessa lei trata da Contratação de Soluções Inovadoras pelo Estado com as startups, tendo aplicabilidade para todos os órgãos e as entidades da administração pública direta, autárquica e fundacional de quaisquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, inclusive empresas estatais e subsidiárias, na forma dos respectivos regulamentos.

Nos termos do artigo 13, caput da LC 182/21, a administração pública poderá contratar pessoas físicas ou jurídicas, isoladamente ou em consórcio, para o teste de soluções inovadoras por elas desenvolvidas ou a ser desenvolvidas, com ou sem risco tecnológico, por meio de licitação na modalidade especial tratada pelo Marco Legal das Startups.

Essa modalidade especial de licitação é detalhada pelo artigo 13 da LC 182/21, com um nível bastante autoexplicativo para que haja a conformação do formalismo da burocracia com o segmento de mercado das startups.

O contrato a ser firmado entre a administração pública a startup é o  Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI). Trata-se de um contrato de desenvolvimento de soluções, com vigência limitada a 12 meses, prorrogável por igual período. As cláusulas obrigatórias do CPSI estão descritas na lei e seu valor máximo será de R$ 1,6 milhão, sem prejuízo da possibilidade de o edital estabelecer limites inferiores.

A forma de remuneração contratual das startups no CPSI poderá ser, a depender do edital da licitação: (a) preço fixo; (b) preço fixo mais remuneração variável de incentivo; (c) reembolso de custos sem remuneração adicional; (d) reembolso de custos mais remuneração variável de incentivo; ou (e) reembolso de custos mais remuneração fixa de incentivo.

A LC 182/21 prevê, ainda, uma possível segunda etapa de contratação das startups. Sem dizê-lo expressamente, estabelece uma hipótese de dispensa de licitação para que a solução desenvolvida pela startup possa ser posteriormente contratada (artigo 14), desde que evidentemente se tenha mostrado compatível com a resolução dos problemas administrativos a que se dirige.

O objeto desse segundo contrato, portanto, consiste no próprio fornecimento do produto, processo ou solução resultante da execução do CPSI ou, ainda, a integração da solução à infraestrutura tecnológica ou ao processo de trabalho da administração pública. Tal contrato terá prazo máximo de 24 meses, prorrogável por igual período, e seus valores poderão alcançar até cinco vezes o valor máximo do CPSI.

Como se vê, a Lei Complementar 182/21 exerce uma importante função regulatória na licitação para estimular a contratação das startups, autorizando que a administração pública obtenha e ajude a financiar o desenvolvimento e o fornecimento de soluções inovadoras pensadas e desenvolvidas por esse importante segmento de mercado. Não se trata aqui de excluir, mas de fomentar. Não se trata de privilegiar, mas de estimular. Há objetivos extraeconômicos subjacentes que a licitação tradicional normalmente não se preocupa em buscar, a ver o que dispõe os artigos 218, caput [3] e 219, caput [4] e parágrafo único [5] da Constituição.

A conjugação do artigo 81, §4º da Lei 14.133/21 com a Lei Complementar 182/21 pode produzir uma licitação diferente. Uma licitação exclusiva para startups, que seria precedida de um diálogo com o mercado também exclusivo para startups (PMI), com o potencial de gerar contratos de desenvolvimento e fornecimento de tecnologias e soluções criativas com o mercado das startups. Enfim, estar up to date!

 


[1] O evento realizado pelo Instituto Mineiro de Direito Administrativo (IMDA), À época presidido pela professora Cristiana Fortini, atual presidente e primeira mulher a presidir o IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo), a quem rendo minhas homenagens.

[2] FERRAZ, Luciano. Função Regulatória da Licitação. A&C. Revista de Direito Administrativo e Constitucional, ano 9, n. 37, 2009. Disponível em http://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/view/301/136. Acesso em 20.09.2023. Ver o mesmo artigo na Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, v. 72, n. 3, Ano XXV, 2009. Disponível em https://revista1.tce.mg.gov.br/Content/Upload/Materia/490.pdf. Acesso em 20.09.2023.

[3] Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação e 219, caput e parágrafo único da Constituição.

[4] Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal.

[5] Art. 219, parágrafo único: O Estado estimulará a formação e o fortalecimento da inovação nas empresas, bem como nos demais entes, públicos ou privados, a constituição e a manutenção de parques e polos tecnológicos e de demais ambientes promotores da inovação, a atuação dos inventores independentes e a criação, absorção, difusão e transferência de tecnologia.

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