Opinião

Inconstitucionalidade do procedimento de edição das súmulas trabalhistas

Autor

  • Ravi Peixoto

    é doutor em direito processual pela Uerj mestre em Direito pela UFPE procurador do município do Recife professor da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e advogado.

18 de setembro de 2023, 15h15

Na ADI 6.188 [1], o STF analisou a constitucionalidade das alterações promovidas pela reforma trabalhista (Lei 13.467/2017) na CLT, que dificultaram a edição e alteração de súmulas e outros enunciados de jurisprudência (artigo 702, I, f e §§3º e 4º) no TST e nos TRTs.

De forma resumida, as alterações passaram a exigir que a edição ou alteração de súmulas requereriam o voto de dois terços dos membros do pleno do tribunal. Além disso, a matéria deveria ter sido decidida anteriormente por, no mínimo, dois terços das Turmas em pelo menos dez sessões diferentes. Também foi criado um procedimento para a alteração desses enunciados de jurisprudência: as sessões deveriam ser públicas e divulgadas com, no mínimo, trinta dias de antecedência, permitindo sustentação oral.

É inegável que não havia nenhum paralelo na legislação brasileira a interferir de forma tão intensa na criação e na alteração de precedentes obrigatórios. Nem mesmo a súmula vinculante do STF, que chega a obrigar até a administração pública tem exigências equivalentes. Naquele caso, exige-se concordância de dois terços dos membros do STF (artigo 2º, §3º, da Lei 11.417/2006), mas nada há sobre sustentação oral ou mesmo exigência de um número específico de sessões em que a matéria tenha sido analisada anteriormente.

Ao julgar o caso, o STF, por maioria apertada de 6 a 5, declarou a inconstitucionalidade das alterações legislativas [2]. O problema que pode surgir da decisão advém da ratio decidendi acolhida pela maioria dos ministros, baseada no voto do ministro Ricardo Lewandowski. O trecho principal da decisão afirma que:

Com efeito, não tenho maiores dúvidas de que um dispositivo legal que coloque limites ou, por qualquer forma, condicione a atividade interna dos tribunais, na espécie, os integrantes da Justiça do Trabalho, vulnera o princípio da separação dos poderes e a autonomia que a Constituição Federal lhes assegura [3].

A Corte destacou que o CPC aumentou a importância das súmulas e, no artigo 926, §1º, indicou que cabe a cada tribunal editar súmulas "na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno". Não haveria justificativa para a imposição de balizas tão exigentes apenas para o exercício da jurisdição trabalhista. Ou seja, esse tratamento violaria a isonomia. Também se apontou que o quórum de dois terços seria um excesso legislativo justificável apenas em situações excepcionais, como as súmulas vinculantes.

Comparou-se a situação com a previsão do artigo 7º, IX, do Estatuto da OAB, que previu a sustentação oral após o voto do relator, considerado inconstitucional pelo STF, por ingerir no funcionamento interno dos tribunais. Afirmou o relator que não seria constitucional o estabelecimento de detalhes procedimentais para a atuação dos tribunais na uniformização de sua jurisprudência, violando os artigos 2º, 96 e 99 da Constituição Federal.

Os vencidos tiveram por base o voto do ministro Gilmar Mendes. Em sua manifestação, destacou o ministro que à União compete legislar sobre matéria processual, da qual faz parte o sistema de precedentes. Afinal, atualmente as súmulas não são meros compilados de entendimentos, mas enunciados com eficácia obrigatória. Sobre a autonomia dos tribunais, destacou que ela não é absoluta. Há uma certa "liberdade de conformação conferida ao legislador ordinário", desde que respeite o núcleo da garantia constitucional.

Não haveria nada de estranho na regulamentação específica da edição de súmulas no processo do trabalho, o que poderia ser justificado por sua especificidade. Além disso os requisitos exigidos não seriam desproporcionais. Cabe relembrar texto doutrinário reproduzido em seu voto, no qual se destaca que entre 2011 e 2012, o TST promoveu a mudança de dezenas de súmulas "sem base em precedentes e sem debate público quanto às mudanças".

Quanto ao procedimento, não haveria qualquer desproporcionalidade, ao estabelecer a publicidade da sessão e o cabimento de sustentação oral. Em relação ao quórum, também não seria incomum, pois já exigido para as súmulas vinculantes e para a modulação de efeitos no controle concentrado de constitucionalidade.

Reconhece que, por vezes, o quórum elevado de dois terços traz problemas ao rule of law, dificultando a prolação de decisões, mas "não é esse o cenário vislumbrado nos autos, em que não se verifica movimento abusivo do Poder Legislativo ou o estabelecimento de procedimento irrazoável".

Uma primeira observação é a de que a composição do STF já mudou desde a decisão, com a aposentadoria do ministro Ricardo Lewandowski e a futura aposentadoria da ministra Rosa Weber. Por mais que não seja adequado afirmar que a mera alteração da Corte justifique a alteração de um entendimento [4], é inegável que a alteração sofrida pelo tribunal pode levar a conclusão diversa em outro momento.

No mérito da decisão, não há justificativa para vedar qualquer alteração legislativa na atuação dos tribunais, mesmo que interna. Como bem ressaltado pelo ministro Gilmar Mendes, é de se respeitar uma certa liberdade de conformação ao legislador ordinário. Mais do que isso, a súmula não é mais um mero compilado de jurisprudência, mas, pela disposição legal do CPC (artigo 927, V), trata-se de enunciado de eficácia obrigatória. O dispositivo legal é plenamente aplicável por analogia às súmulas do TST.

O fato de o CPC não ter ingressado nos detalhes da forma de edição das súmulas não gera qualquer impedimento a que outra legislação o faça. A legislação não confirma que essa é uma atividade privativa dos tribunais; ao contrário. Ela consiste em situação na qual o legislador, "por razões de conveniência ou em virtude de peculiaridades locais" [5], delega a edição de regras processuais aos tribunais. Se a legislação detalhou o procedimento de edição e alteração de súmulas, ao regimento interno resta apenas sua complementação, no que diz respeito ao "funcionamento jurisdicional da Corte" [6].

Por exemplo, a Lei 11.417/2006 regulamentou a forma de edição de súmulas vinculantes, indicando quem pode requerer sua edição, revisão e cancelamento (artigo 3º), garantindo prévia manifestação do Procurador Geral da República (artigo 2º, §2º) e permitindo até a manifestação de amicus curiae (artigo 3º, §2º). Não há nenhuma inconstitucionalidade, ou, ao menos, não há manifestação pela inconstitucionalidade desses textos normativos.

A súmula tornou-se um enunciado interpretativo de eficácia obrigatória e não é correto que possa ser livremente editada pelos tribunais, sem que possa haver atuação do legislador. Se o legislador, para demais matérias, optou por liberar a regulamentação aos demais tribunais, mas não para os trabalhistas, não há qualquer inconstitucionalidade.       

Há também diversos outros procedimentos voltados à uniformização e produção de precedentes obrigatórios devidamente regulados pela legislação, a exemplo do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, Incidente de Assunção de Competência, Recursos especiais, extraordinários e de revista repetitivos. E, em todos eles, o procedimento é fixado pela legislação, cabendo aos regimentos internos apenas o seu detalhamento naquilo que forem omissos.

O que pode ser questionado, como reconhecido pelo voto condutor e, igualmente, pelo ministro Gilmar Mendes, mas com conclusão diversa, é a proporcionalidade/justificativa do quórum exigido. É que não bastava a aprovação de dois terços do plenário, mas que o tema tivesse sido por dois terços das turmas em dez sessões diferentes. Impunha-se que apenas temas muito repetitivos pudessem ser cogitados para a edição de súmulas. E mais, uma alteração pressuporia que o tribunal já tivesse praticamente superado a súmula antes de fazê-lo expressamente. Afinal, já teria de ter sido decidido por dois terços das turmas em dez sessões diferentes.

É nítido o risco de engessamento das súmulas e orientações jurisprudenciais pela manutenção de todos os requisitos, o que poderia justificar o reconhecimento de inconstitucionalidade da exigência de decisão sobre o tema em múltiplas casos e sessões. Mas o simples quórum de dois terços, para temas que se poderia pressupor que representariam a jurisprudência do tribunal e mesmo a simples previsão de garantia de sustentação oral não violam o núcleo da independência dos tribunais. A súmula pode ser editada de ofício, sem que haja qualquer caso no tribunal sobre o tema e não parece injustificado que se exija uma maioria qualificada de dois terços para a sua edição.              

Resta, então, à comunidade jurídica, esperar as eventuais repercussões da ratio decidendi dessa decisão. Em tese, pelos mesmos motivos, diversos dos dispositivos legais da Lei 11.417/2006 podem ser tidos como inconstitucionais. E, em certa medida, até vários outros textos normativos que regulam o procedimento de técnicas para uniformização e produção de precedentes obrigatórios.

 


[1] STF, ADI 6188, Plenário, relator ministro Ricardo Lewandowski, Sessão Virtual de 11.8.2023 a 21.8.2023.

[2] Pelos mesmos fundamentos, o TST já havia reconhecido a inconstitucionalidade desses textos normativos: TST, Tribunal Pleno, ArgInc-RR-696-25.2012.5.05.0463, relator ministro Amaury Rodrigues Pinto Junior, DEJT 17/06/2022.

[3] Também com essa conclusão: MIESSA, Élisson. Curso de direito processual do trabalho. 9ª ed. São Paulo: Juspodivm, p. 818; ZEDES, Carolina Marzola Hirata. As inconstitucionalidades da Lei nº 13.467/2017 no que tange à edição e alteração de súmulas e enunciados de jurisprudência uniforme. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, nº 51, 2017, disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12178/125461.

[4] PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e modulação de efeitos. 5ª ed. São Paulo: Juspodivm, 2022, p. 274-275.

[5] OLIVEIRA, Paulo Mendes de. Regimentos internos como fonte de normas processuais. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 89-90.

[6] OLIVEIRA, Paulo Mendes de. Regimentos internos como fonte de normas processuais… cit., p. 54.

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