PGR poderia ser de fora da carreira, mas é necessário um maior controle sobre o MP
18 de setembro de 2023, 8h48
O procurador-geral da República deveria poder ser livremente escolhido pelo presidente, independentemente de ser integrante do Ministério Público. Para isso, porém, seria preciso aumentar os controles sobre a PGR, que ficou excessivamente fortalecida após a Constituição de 1988 e a Lei Orgânica do Ministério Público da União (Lei Complementar 75/1993).
Essa é uma das modificações na lei, com o intuito de aprimorar o funcionamento do MP, sugeridas por um grupo de profundos conhecedores do órgão ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.
O mandato do procurador-geral da República, Augusto Aras, vai se encerrar no próximo dia 26. O PGR, que é o chefe do Ministério Público da União, é nomeado pelo presidente da República entre integrantes da carreira, maiores de 35 anos, para um mandato de dois anos, após aprovação do Senado. Com o aval da casa legislativa, é permitida a recondução ao cargo.
Desde a campanha eleitoral, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem deixado claro que não necessariamente iria escolher o PGR a partir da lista tríplice formada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Foi ele próprio quem iniciou, em 2003, a prática de indicar para a PGR o mais votado na eleição da entidade. Por meio desse sistema, Lula nomeou Claudio Fonteles, Antonio Fernando de Souza e Roberto Gurgel. Depois, Dilma Rousseff seguiu a tradição ao indicar Rodrigo Janot para dois mandatos como PGR, mesmo com as investigações e os processos da "lava jato" contra o PT.
Michel Temer, por sua vez, escolheu Raquel Dodge, a segunda mais votada da lista tríplice. E Jair Bolsonaro ignorou a eleição da ANPR ao nomear Augusto Aras, que não havia participado do pleito, para comandar o Ministério Público Federal. Em 2021, ele foi reconduzido para mais um mandato, novamente sem ser levada em conta a votação da associação.
O decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, defende que a indicação do PGR seja aberta, com a possibilidade de escolha de um profissional de fora da carreira do MP para ocupar o cargo — tal como era até a Constituição de 1988 e como ocorre com a seleção de ministros do STF.
Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, afirma que, na história recente do Brasil, o Ministério Público tem sofrido com dois vícios principais: o servilismo aos interesses do Poder Executivo e o corporativismo — que atuou contra a democracia na finada "lava jato".
Para fugir desses vícios, Serrano defende que a escolha do PGR seja "a mais livre possível". Ou seja, sem submissão à lista tríplice, nem restrição a integrantes do Ministério Público. De forma a preservar a independência do procurador-geral, o constitucionalista é favorável à imposição de um mandato único de quatro anos, coincidente com o do presidente da República, sem que ele possa posteriormente ser nomeado para algum tribunal superior, como o STF ou o Superior Tribunal de Justiça, por um determinado período.
"Não haveria nenhum vínculo corporativo, porque o procurador-geral não seria eleito pelos integrantes do MP. E nenhum vínculo político indevido, porque ele teria estabilidade, mandato, independência e uma quarentena que o impediria de ser nomeado para outro cargo, como o de ministro do STF, por um período posterior ao exercício do posto de PGR. Essa seria uma mudança institucional interessante, que deveríamos debater no país", opina Serrano.
O cientista político Rafael Viegas, autor do livro Caminhos da política no Ministério Público Federal (Amanuense), também é favorável à possibilidade de que o PGR seja um profissional de fora da carreira do MP. Afinal, isso "acontece em outros países com democracias mais sólidas do que a nossa, menos sujeitas ao protagonismo político de procuradores".
Viegas defende que o PGR poderia não apenas ser de fora da carreira, como ser qualquer membro do MP brasileiro. Ele é favorável até mesmo a que membros aposentados do órgão possam ser indicados a chefe da instituição.
Muito poder
No atual modelo do Ministério Público brasileiro, o jurista Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá, não é favorável à escolha de um PGR de fora da carreira. Isso porque os membros do órgão têm muito poder.
"No Brasil, de fato, o PGR é independente. Passa pelo Senado, como os ministros do STF. A grande questão é que o sistema brasileiro, ao fazer essa opção pela independência do Ministério Público, não fez a devida cobrança, que é a isenção do membro do MP e do próprio PGR. Isto é: se o Brasil tem um MP com as garantias dos juízes (vitaliciedade, independência e inamovibilidade), então os membros do MP deveriam se comportar como magistrados, e não como advogados privados. Na prática, os promotores e procuradores atuam como os americanos, mas têm as garantias dos juízes (que os americanos não possuem)", avalia ele.
"Por isso há de se fazer uma opção: se o MP tem de ter as garantias dos juízes e ainda orçamento próprio e total independência, seus membros devem agir com isenção, e não por agir estratégico. Quem faz agir estratégico é advogado pago (ou defensor público). MP deve ser isento. Ou não. Mas, então, não necessita de garantias e independência. Simples assim", diz o jurista.
MP como governo
Na maioria dos países, o Ministério Público é ligado, em algum grau, ao governo. Nos Estados Unidos, por exemplo, em nível local e em alguns estados, os promotores são eleitos pelos cidadãos. Ou seja, sempre existe a possibilidade de algum controle pelos eleitores, direta ou indiretamente, conforme ressalta o cientista político Fábio Kerche, autor do livro Virtude e limites: autonomia e atribuições do Ministério Público no Brasil (Edusp).
Ele destaca que o modelo brasileiro vai na contramão da ideia comum às democracias de que todos os atores públicos devem responder aos cidadãos. "O PGR é o único integrante do órgão federal que é escolhido e pode ser reconduzido pela deliberação de políticos eleitos. Ele tem garantias, como ter de ser membro da carreira e ter um mandato".
"A lista tríplice, ainda mais da forma como o PT a adotou (sempre escolhendo o primeiro colocado), assegura ainda mais autonomia a atores que são muito insulados e não prestam contas à sociedade. O argumento de que o PGR precisa ser independente dos políticos é verdade, mas também é que todos devem ser responsáveis perante os cidadãos pelas suas ações. Não há modelo perfeito, mas considero a lista tríplice o pior modelo, que reforça o corporativismo e isola excessivamente alguém que pode acusar um presidente e políticos. É muito poder para alguém que é praticamente inimputável", avalia Kerche.
Uma solução intermediária, opina ele, seria acabar com a recondução do PGR, estender o mandato e criar uma quarentena "para valer, garantindo a participação dos políticos no processo".
"No Brasil, qualquer sugestão de controle democrático sobre o MP é considerada tentativa de reduzir a autonomia do órgão. Acontece que, em uma democracia, autonomia não é um valor absoluto, todos devem estar sujeitos ao controle, inclusive o MP. Funciona assim em outras democracias. O MP deve ter autonomia para exercer atribuições oficiais, mas isso não pode significar autonomia absoluta. Ainda mais no caso brasileiro, em que essa carreira registra um histórico de luta corporativa predatória", ressalta Rafael Viegas.
Reformas legais
A Lei Orgânica do Ministério Público da União, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto da instituição, foi construída durante o governo de Fernando Collor, "um presidente acossado, que não tinha força para colocar limites na instituição", segundo Gilmar Mendes, que foi consultor jurídico da Secretaria-Geral da Presidência da República na gestão de Collor.
Da forma como foi elaborada, a Lei Orgânica do MPU confere muitos poderes aos integrantes do órgão e poucas formas de controle sobre a atuação deles. Por exemplo, a norma não prevê recurso contra decisão de promotor ou procurador. Contra ato do juiz sempre cabe recurso, mas conta ato do MP, só depois que ele apresentar denúncia. Em Curitiba, até há algum tempo, havia mais de mil inquéritos da "lava jato" abertos há anos, sem desfecho. E os alvos dos inquéritos não podiam fazer nada.
O MP, de acordo com Lenio Streck, "aproveita o melhor dos dois mundos: age como parte, não tem as responsabilidades da parte e tem as garantias de um juiz".
"Sempre defendi que o MP deve agir com isenção. Com todo esse poder, a defesa fica bem abaixo em termos de paridade de armas. Se o MP deseja ficar com as garantias, autonomia orçamentária e independência, tem de assumir o ônus de ser isento. Se quiser fazer como fizeram os lavajatistas ou fazem os promotores e procuradores no cotidiano das práticas jurídicas, aí não necessita das garantias do juiz", avalia o jurista.
O problema é que é difícil reformar a Lei Orgânica do MPU, uma vez que apenas o presidente da República e o PGR — que não tem legitimidade popular — podem propor alterações à norma.
Para Pedro Serrano, a competência legislativa atribuída ao PGR é excessiva, pois o MP não é um poder de Estado, e, sim, uma instituição ligada ao Executivo. "Conceder ao Ministério Público prerrogativas próprias de um poder foi um excesso da Constituição de 1988. Criou-se quase um quarto poder."
Entre as melhorias que poderiam ser feitas na Lei Orgânica do MPU está reforçar os órgãos colegiados, opina Fábio Kerche. Ele também defende uma revisão do Conselho Nacional do Ministério Público e, especialmente, de sua composição.
"O MP é defensor da democracia, mas é um órgão opaco e pouco accountable, ou seja, não presta contas e seus integrantes são excessivamente protegidos de punições (ou premiações) externas", ressalta o cientista político.
Rafael Viegas sugere diminuir a discricionariedade em relação a certas movimentações de membros do MP para órgãos como os Grupos de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaecos), estabelecendo critérios legais objetivos para designação e remoção.
Ele também avalia que arquivamentos de procedimentos, como inquéritos civis, e acordos, como termos de ajustamento de conduta, deveriam estar sujeitos a controle pelo Judiciário, que deveria ter a prerrogativa de homologar os compromissos.
"Penso que é perigosa a previsão de que atos do chefe do MP, como o PGR, possam ser revistos por colegiados internos, integrados apenas por membros do MP, o que reforça a autonomia em detrimento do controle, considerando ainda que interesses corporativos se apresentam nesses colegiados. Nossas pesquisas mostram que esses colegiados são controlados pelas associações de classe, a exemplo da ANPR no caso do MPF, que exerce verdadeira 'situação de comando' junto ao Conselho Superior do Ministério Público Federal e às Câmaras de Coordenação e Revisão", destaca o cientista político.
Viegas ainda recomenda a criação de uma ouvidoria externa ao MP, com integrantes de distintos seguimentos da sociedade, e não como é hoje, "integrada ao organograma do MP e que reproduz um tipo de controle pouco democrático, já que é composta por membros da carreira". Além disso, para não haver confusão com a estrutura do MP, associações de classe, como a ANPR, deveriam ter sede própria, diz ele.
Um integrante do MP e ex-secretário de Segurança estadual, que preferiu não se identificar, defende a instituição de prazo para as investigações: se o órgão não oferecer denúncia ao término do período, arquiva-se a apuração. Outra sugestão é criar câmaras revisoras nas promotorias estaduais e vedar a instauração de inquérito civil com base em denúncia anônima — o que já é proibido em âmbito penal.
Ele também critica as eleições internas — nos estados, o chefe do Executivo tem de escolher o procurador-geral de Justiça a partir de lista tríplice. Como o governador é o único eleito pelo povo, deveria ter o direito de indicar quem quisesse da carreira para o posto.
Além disso, esse integrante do MP aponta ser necessário criar critérios objetivos para promoção por merecimento, reduzir assessorias do PGJ e vedar designação por acúmulo de serviço. Esse ato deve ter por base a produtividade do promotor que será auxiliado: se for abaixo do previsto, deve haver punição e remoção.
Juntada de documentos
O professor de Direito Penal da Universidade de São Paulo Pierpaolo Cruz Bottini sugeriu considerar falta infracional se o integrante do MP não documentar e juntar imediatamente aos autos de investigação qualquer ato, salvo se a diligência estiver em andamento.
Com isso, ficaria garantido ao investigado e aos seus defensores acesso a todo material probatório já produzido na investigação criminal ou compartilhado de outros expedientes.
A alteração seria feita na Resolução CNMP 181/2017, que dispõe sobre a instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal.
O objetivo seria adequar à norma à Súmula Vinculante 14 do STF, que considera ser “direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.
Além disso, a mudança refletiria o artigo 7º, incisos XIV e XV, da Lei 8.906/1994, que estabelece o direito do advogado de examinar investigações, processos judiciais ou administrativos de qualquer natureza.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!