Opinião

Lawfare não é erro judiciário

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18 de setembro de 2023, 6h32

Premissa
No recente julgamento da Reclamação (Rcl) 43.007, o ministro Dias Toffoli qualificou a prisão de Lula como um dos maiores erros judiciários do país. Ao afirmar isso, partiu do pressuposto de que prisões ilegais também são erros judiciários. São, mas nem sempre. Prisões ilegais podem ser erros judiciários, mas também podem ser lawfare. Há uma distinção relevante nesses casos, cujas consequências são completamente distintas, embora a ilegalidade não possa ser ignorada em nenhum caso.

O objetivo deste artigo, então, é distinguir, a partir das prisões ilegais, dois grandes grupos de comportamentos ilícitos no processo penal e demonstrar as respectivas consequências. Faz-se isso em dois momentos. Inicialmente, explicando o que é lawfare e, em seguida, demonstrando como os erros judiciários não se confundem com lawfare.

O que é lawfare
Lawfare é um termo formado pela união das palavras law (direito) e warfare (guerra). A autoria desse termo frequentemente atribuída a John Carlson e Neville Yeomans, referido no texto Whither Goeth the Law — Humanity or Barbarity, publicado em 1975, no livro The Way Out — Radical Alternatives in Australia [1].

Antes de definir lawfare, os autores diferenciam direito humanitário e direito utilitário. De acordo com eles, o direito humanitário é formado por normas da comunidade, de mediação, relações familiares, saúde, bem-estar, educação e cultura, que correspondiam ao direito canônico pré-revolução industrial. Esta prerrogativa legal confere às pessoas o status de sujeitos, tem objetivos humanitários flexíveis e intuitivas, cujos tribunais são humanitários, virtuosos e decentes.

Já o direito utilitário é direito do estado, de ordem, de negócios, de guerra, contrato e crime. Direito que dominou o ocidente nos dois últimos séculos e confere às pessoas o status de objetos, tem objetivos utilitaristas, certos e lógicos, cujos tribunais decidem por razoabilidade, eficiência e legítimo interesse próprio. A substituição do que os autores chamaram de direito humanitário pelo direito utilitário teria produzido duas modificações centrais no direito processual. A substituição do sistema inquisitório pelo sistema acusatório e a substituição da busca da verdade pela classificação dos casos e pelo refinamento do combate. Tudo isso convergiu para a substituição da guerra de espadas pelo duelo de palavras do lawfare [2].

A definição de John Carlson e Neville Yeomans é descrita por Wouter G. Werner como uma crítica aos aspectos individualistas e acusatórios do direito nas sociedades ocidentais. Além dessa definição, Wouter G. Werner identificou o reaparecimento do termo, mais de duas décadas depois, outras três definições centrais. A primeira é de autoria de Qiao Liang e Wang Xiangsui, oficiais do Exército Popular de Libertação, de origem chinesa, no livro de estratégia militar Unrestricted warfare, publicado em 1999.

Os autores chineses partiram da concepção de guerra como uso de quaisquer meios para compelir o inimigo a aceitar o interesse de alguém. Essa concepção torna possível o uso do direito como um instrumento militar, aliado a outros instrumentos como a mídia e a economia, para subjugar os inimigos. A segunda definição, divulgada por Charles J. Dunlap Jr. na conferência Law and Military Interventions: Preserving Humanitarian Values in 21st Conflicts, realizada na Universidade Harvard em 2001, é a de uso do direito como meio para atingir um objetivo militar [3].

A terceira definição, criada por Jack Goldschmidt em razão da legalização da política e da guerra. Nesse sentido, o lawfare é usado para descrever o fenômeno da judicialização da guerra e da política, bem como é utilizado para desacreditar críticos ao governo. Com essa definição, Jack Goldschmidt transformou o lawfare de ferramenta analítica para captura da relação entre direito e guerra em uma arma empregada em conflitos políticos e militares [4].

A definição de lawfare passou por transformação que podem ser percebidas em três aspectos. Primeiro, o uso de estigmas para os inimigos e os críticos de um determinado governo. Segundo, a classificação do uso estratégico do direito como maneira injusta e perigosa de frustrar governos legítimos. Terceiro, o uso de lawfare está amplamente dissociado de autorreflexão crítica [5].

Nítido, portanto, que o lawfare se caracteriza pela intencionalidade dos agentes que utilizam o direito como instrumento de guerra e lançam mão de estratégias variadas para combater inimigos. A prisão de Lula, assim como uma parcela significativa dos casos que compõem a operação "lava jato" [6] — a expressão operação seguida de um nome, por si só, já dá o tom de guerra —, é exemplo de lawfare.

O que sabemos sobre os erros judiciários
Não se desconsidera que o reconhecimento de erros judiciários no curso do processo é importante, sobretudo porque ainda predomina, na matéria, a concepção conservadora segundo a qual os erros judiciários só podem ocorrer no provimento final. Absolvições errôneas (falsos falsos) ou condenações errôneas (falsos positivos). Essa concepção pressupõe uma deturpada noção de causalidade com a qual se pretende romper há algum tempo [7].

A relevância do reconhecimento, entretanto, não torna os erros judiciários sinônimos de lawfare.

A literatura sobre erros, especialmente de países de common law, estuda uma variedade de casos e institutos, sem apontar uma definição precisa do que pode ser considerado erro judiciário. Não se pretende resolver esse problema conceitual, mas não se pode ignorar os erros pela simples falta de uma definição.

Primeiro, nenhum(a) estudioso/a da matéria considera erro judiciário uma investida estatal contra um imputado, utilizando-se do direito como instrumento de guerra. Na "lava jato", o que vem sendo apontado há muito tempo são investidas de guerra contra opositores. São atos de todo intencionais — o que não exclui a possível ocorrência de erros.

Segundo, se os erros não são definidos e o lawfare é intencional, pode-se supor que um erro judiciário é, pelo menos, um "malfazer não intencional". Certamente é muito mais do que isso, mas pelo menos isso.

Terceiro, se os erros são judiciários, não podem ser somente dos juízes, mas de todo o aparato judiciário. Daí porque existem "erros judiciários" e "erros judiciais". Havendo atuação externa à atividade jurisdicional e/ou influência na atividade jurisdicional (por exemplo, o deferimento de uma prisão preventiva incabível), não se trata de um erro judicial, mas de erros judiciários.

Quarto, se erro é o malfazer não intencional, o núcleo das discussões sobre os erros é a qualificação de um ato como malfazer. O que é malfazer? Como é malfeito? Por que é malfeito? Quais as causas e as consequências do malfazer? Como se deve impugnar o malfazer? E assim por diante.

Quinto, os erros judiciários são mais amplos do que os atos processuais e suas invalidades, externos e internos ao processo e sofrem influências variadas. Ao longo da história, foram integrados aos cálculos de produção da verdade e essa, por sua vez, foi assumida para dizer o direito (juris dictio) em uma complexa trama que abrange a antiga cisão entre fato e direito, as vias de impugnação, os direitos indenizatórios, economia processual, devido processo legal e outros elementos. Há, ainda, uma dobra dos erros, a qual se chamou de metaerros (erros na apreciação dos erros). Tudo isso foi objeto de estudo doutoral cujo livro, Regimes de Autoveridição e Heteroveridição no Processo Penal: Genealogia dos Erros Judiciários, será publicado em breve pela EMais Editora.

A Rcl 43.007 é precisamente um caso de metaerro. Não se trata de um erro judiciário, senão de um erro na apreciação dos erros. A intencionalidade da força russa é condição de impossibilidade para qualificar os abusos da operação "lava jato" como erros judiciários.

Diferentemente, qualificam-se — e muito bem — como lawfare.

 


[1] CARLSON, John; YEOMANS, Neville. Whither Goeth the Law – Humanity or Barbarity. Disponível em: http://www.laceweb.org.au/whi.htm.

[2] Não fica claro no texto se a remissão à substituição do duelo de espadas pelo duelo de palavras é uma metáfora para opor barbárie à cultura ou se é uma referência estrita. Considerando a crítica que os autores fazem ao direito moderno ocidental, bem como a concepção de duelo como meio de prova no medievo (ordália), é mais provável que seja uma remissão expressa à substituição do duelo como meio de prova pelos debates orais do sistema acusatório.

[3] DUNLAP JR., Charles J.. Law and military interventions: preserving humanitarian values in 21st conflicts. Carr Center for Humans Rights, John F. Kennedy School of Government, Harvard University, 2001.

[4] WERNER, Wouter G.. The curious career of lawfare. Case Western Reserve Journal of International Law, v. 43, iss. 1, pp. 61-72, 2010, p. 61-69.

[5] WERNER, Wouter G.. The curious career of lawfare. Case Western Reserve Journal of International Law, v. 43, iss. 1, pp. 61-72, 2010, p. 69-71.

[6] Não se pode ignorar que "A Operação Lava Jato é muito maior do que Lula" COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Jacinto Coutinho: "A Operação Lava Jato é muito maior do que Lula". LexLatin, 29 mar. 2021. Disponível em: https://br.lexlatin.com/entrevistas/jacinto-coutinho-operacao-lava-jato-e-muito-maior-do-que-lula.

[7] "A proposta [do livro] pressupõe a substituição da noção de 'causa', abordada no segundo capítulo, pela assunção da categoria dos 'erros mesmos'. Isto é, aqueles fatores frequentemente apontados como causas dos erros são os erros mesmos, justamente porque o 'enquadramento' no 'resultado' deixa de perceber a importância das 'partes' e do 'efeito cascata'. O que é chamado de erro judiciário, e para confirmar isso basta ver como o problema é colocado no Canadá e na Inglaterra, por exemplo, consiste em erro no processamento que resulta em dano ou coloca em risco a segurança do provimento final condenatório." CANI, Luiz Eduardo; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia para mitigação dos erros judiciários no processo penal: as causas prováveis e as estratégias de enfrentamento. Florianópolis: EMais, 2022, p. 20.

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