Embargos Culturais

O voto do ministro Moreira Alves no julgamento da ADC nº 1

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

17 de setembro de 2023, 8h00

Em 1º de dezembro de 1993, o Pleno do Supremo Tribunal Federal julgava a Ação Direta de Constitucionalidade nº 1-DF. Relatada pelo ministro Moreira Alves, discutia-se matéria tributária, relativa à constitucionalidade da contribuição social instituída pela Lei Complementar nº 70/91, a Cofins. Julgamento memorável. Na sessão estavam também presentes os ministros Néri da Silveira, Sydney Sanches, Paulo Brossard, Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Ilmar Galvão e Francisco Rezek.

Spacca
A ação fora ajuizada pelo presidente da República, pela Mesa do Senado e pela Mesa da Câmara dos Deputados. A inicial fixava pontos importantes sobre a ADC, com referência ao artigo 13, II, da Constituição de Weimar, que "permitia que autoridade competente da União ou do Estado, quando existissem controvérsias sobre a compatibilidade entre disposição de direito estadual com direito federal, requeresse (…) o pronunciamento do Tribunal".

Do ponto de vista procedimental (ADC) a matéria era nova no Supremo. Constatava-se uma ação de sinal trocado, no sentido de que a constitucionalidade neutralizava a alegação de inconstitucionalidade, e a recíproca é verdadeira. O alcance da ADC foi fixado em questão de ordem, ao ensejo em que se decidiu pela constitucionalidade da Emenda Constitucional nº 3, que inseriu a ADC no ordenamento constitucional brasileiro. Ainda não havia regulamentação legal.

Nessa importante discussão, o ministro Moreira Alves de início fixou que "a delimitação do objeto da ação declaratória de constitucionalidade não se adstringe aos limites do objeto fixado pelo autor, mas estes estão sujeitos aos lindes da controvérsia judicial que o autor tem que demonstrar". A causa de pedir revela-se aberta, transborda dos limites do que o autor colocou em mesa, o que matiza uma posição política do STF. Essa passagem (contida na ementa da decisão) é radical.

A ação foi julgada procedente, declarando-se vinculantes excertos da Emenda Constitucional de nº 3/93. Controlava-se constitucionalidade de emenda constitucional. O ministro Octávio Gallotti presidia o STF. O ministro Sepúlveda Pertence em seu voto (sobre questão preliminar levantada) lembrava que havia uma unanimidade em torno de que se compreendesse que admissão de uma demanda declaratória era necessário "demonstrar uma situação de incerteza objetiva sobre a validade de determinada lei, revelada pela pendência de múltiplos processos sobre a questão mormente, se tem tido soluções divergentes".

Além disso, ao longo do debate da questão de ordem o ministro Pertence defendia que a ADC deveria contar com um contraditório, no que foi vencido pelos demais colegas. A regulamentação legal da ADC ocorreu somente em 1999, no contexto da Lei nº 9.868.

Moreira Alves enfatizou que é condição de ação (no caso da ADC) "a necessidade da demonstração da existência de controvérsia judicial séria sobre a norma ou as normas cuja declaração de constitucionalidade é pretendida". Havia arestos que definiam a constitucionalidade da contribuição discutida, e havia também decisões que fixavam a inconstitucionalidade da Cofins. A controvérsia, nesse sentido, estava demonstrada.

Do ponto de vista tributário o problema consistia em se definir se a contribuição era tributo ou não, o que atrairia a incidência (ou não) do regime de lei complementar, para alguns de seus aspectos descritivos. Vinculava-se a exação ao inciso I do artigo 195 da Constituição, "que se refere ao financiamento da seguridade social mediante contribuições sociais dos empregadores, incidente sobre a folha de salários, o faturamento e o lucro".

Há uma enorme contribuição desse julgado para a uma efetiva compreensão da natureza e da densidade das normas do direito brasileiro. Moreira Alves definiu que não há hierarquia entre lei complementar e lei ordinária. O que se tem, tão somente, é uma ênfase no campo normativo. O conflito entre lei complementar e lei ordinária não se resolve no plano da hierarquia, resolve-se no plano da competência.

O relator realçou uma tendência no STF no sentido de que "só se exige lei complementar para as matérias para cuja disciplina a Constituição expressamente faz tal exigência, e, se porventura a matéria, disciplinada por lei cujo processo legislativo observado tenha sido o da lei complementar, não seja daquelas para que a Carta Magna exige essa modalidade legislativa, os dispositivos que tratam dela se têm como dispositivos de lei ordinária". Essa passagem é emblemática em nossa jurisprudência, pois desconstrói uma falácia pedagógica montada a partir de uma imaginária "pirâmide", explicitando, de modo definitivo, o alcance dos incisos II e III do artigo 59 da Constituição.

Moreira Alves foi procurador-feral da República (1972), e depois foi indicado para o Supremo Tribunal Federal (1975). O ministro Moreira Alves revela profunda compreensão da teoria geral do direito, qualidade realçada com o sólido conhecimento de direito privado. É um de nossos grandes romanistas, e com certeza um de nossos mais sólidos civilistas. Como Moreira Alves teria afirmado em entrevista, o ministro Gilmar Mendes observara que a contribuição de Moreira Alves para o avanço do direito público marcava ironicamente a contribuição de um grande privatista.

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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