Opinião

Canabidiol: polêmicas licitatórias

Autor

  • Laércio José Loureiro dos Santos

    é mestre em Direito pela PUC-SP procurador municipal e autor do livro Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª ed. Dialética 2023 — no prelo) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (coord.: Marcelo Figueiredo Ed. Juspodivm 2023).

31 de agosto de 2023, 6h04

Por puro preconceito, a aquisição de canabidiol é permeada por polêmicas inúteis que não enfrentam o fato simples e óbvio de que é apenas mais um medicamento e como tal deve ser tratado.

Não é o único remédio que pode ser utilizado para fins distintos de sua finalidade medicinal. Opioides, por exemplo, são extraídos da papoula que também é utilizada para a produção do ópio, droga que arrasa civilizações inteiras.

123RF
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O paciente deve ter direito à chance de minimizar seu sofrimento e polêmicas desumanas não colaboram com a mitigação da dor e devem ser solenemente ignoradas.

A polêmica adentra, também, no âmbito do procedimento licitatório e pode resultar na utilização indevida do produto importado se não forem observadas regras da vigilância sanitária.

Tema que é utilizado pelos licitantes, de forma maliciosa, é a da suposta possibilidade do uso de duas regras diferentes da Anvisa. Melhor esclarecendo, duas Resoluções da Diretoria Colegiada da Anvisa. Trata-se da confusão deliberada entre a RDC 327/2019 e a RDC 660/2.022 para fins pouco republicanos.

O primeiro sofisma utilizado pelos licitantes tomados pela sanha pecuniária é que, supostamente, a resolução posterior (660/2.022) teria revogado, tacitamente, a resolução anterior (RDC 327/2019).

Tal sofisma ignora a regra da especialidade, já que as RDCs tratam de temas bem distintos, inobstante a semelhança quanto à regulamentação do uso do canabidiol. Uma trata de importação por paciente pessoa física e outra trata da importação para comercialização.

Tais "argumentos" são apresentados por licitantes imbuídos de acentuada má-fé e, no fundo, significam uma forma enrustida e dissimulada de utilizar sua inoperância operacional como "trunfo" para participação numa licitação que, rigorosamente, tais licitantes não tem a menor condição técnica e/ou operacional de participar.

Expliquemos melhor.

O paciente pessoa física que adquire diretamente o produto do exterior tem regramento distinto da empresa que adquire o mesmo produto para comercialização.

A RDC 327/2.019 trata de requisitos para importação, acondicionamento, percentual de princípio ativo, autorização sanitária, monitoramento etc.

Em síntese, a RDC 327/2019, regulamenta em detalhes as etapas que antecedem a utilização do remédio em consonância com as regras civilizatórias atuais.

O artigo 2º da referida RDC sintetiza bem seu papel regulador:

"Artigo 2° O procedimento estabelecido no disposto nesta Resolução se aplica à fabricação, importação, comercialização, monitoramento, fiscalização prescrição e dispensação de produtos industrializados contendo como ativos derivados vegetais ou fitofármacos da Cannabis sativa, aqui denominados como produtos de Cannabis."

Assim, a RDC 327/2019 estabelece, de forma clara como a luz do sol, tudo aquilo que o licitante fornecedor deve fazer para que se enquadre como tal.

A RDC 660/2.022, por sua vez estabelece critérios para a importação DIRETA por pessoa física.

A RDC 660/2.022 não revogou a RDC 327/2019 de forma tácita nem expressa. Referida RDC complementa a RDC anterior na hipótese de dificuldades junto à burocracia estatal ou, ainda, no caso de medicamentos análogos sem regulamentação específica e que não esteja sendo importado comercialmente.

A RDC 660/2.022 é dirigida às pessoas físicas, ou seja, pacientes que prefiram utilizar a "via crucis" da importação ao invés da "via crucis" da burocracia estatal.

A RDC 660/2.022 não é dirigida a empresas que queiram participar de licitações. Referida RDC é um suplemento regulamentar para acesso ao medicamento e observância do direito à vida do paciente e não instrumento de "facilitação" da importação por licitantes/fornecedores desorganizados e desleixados.

A ementa da RDC 660/2.022 é deveras esclarecedora de que é uma regra para "pessoas físicas", ou seja pacientes do canabidiol e não empresas que pretendam fornecer o medicamento ao poder Público.

Assim:

"RESOLUÇÃO RDC Nº 660, DE 30 DE MARÇO DE 2022
Define os critérios e os procedimentos para a importação de Produto derivado de Cannabis, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de saúde."

Mais adiante, esclarece com luz solar o artigo 1º da Resolução 660/2.022 acerca da obviedade ululante de que se trata de norma direcionado ao paciente e não ao fornecedor/licitante.

Assim:

"Artigo 1º Esta Resolução define os critérios e os procedimentos para a importação de Produto derivado de Cannabis, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de saúde."

A alegação de suposta aplicação da RDC 660/2.022, caso reiterada pelo licitante, pode configurar, até mesmo o tipo penal previsto na Lei 14.133/2.021. Assim:

"Perturbação de processo licitatório
Artigo 337-I. Impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de processo licitatório:
Pena – detenção, de seis meses a três anos, e multa."

Na verdade, o que busca o licitante malicioso é proceder à "terceirização inversa", ou seja, utilizar o Poder Público para auferir lucros transferindo todo o trabalho e todo o risco para a própria administração num espetáculo de "privatização dos lucros" e "socialização dos prejuízos".

Se a administração pública optasse, "ad argumentandum tantum", pela aplicação da RDC 660/2.022 teria que "acompanhar" cada paciente em sua aquisição de medicamento, realizando todo o serviço que deveria estar a cargo do licitante vencedor. Deveria, inclusive, indicar servidor público para tal acompanhamento.

Qual seria a função do licitante numa aquisição feita diretamente pelo paciente ou feita , na prática, pela própria administração? Orientação?

Mera orientação não necessitaria de empresa contratada e poderia ser feito, por exemplo, pelo quadro de funcionários da Secretaria de Saúde.

A finalidade da licitação é, exatamente, terceirizar ao particular a tarefa de aquisição do medicamento seguindo os trâmites da Anvisa evitando que servidores fiquem sobrecarregados com a burocracia da importação por cada paciente.

A utilização da RDC 660/2.022 pelo Poder Público seria a institucionalização da confusão do Público com o Privado e transformação dos entes políticos em mero instrumento para lucros de empresas que, rigorosamente, não cuidariam, efetivamente, da importação do canabidiol e sequer poderiam participar de uma licitação.

Além disso, tornaria o rastreamento do produto importado quase impossível, facilitando o uso indevido até mesmo para o tráfico de drogas, transformando o Poder Público em entreposto do narcotráfico!

Em síntese: a aquisição de canibidiol deve seguir, necessariamente, a RDC 327/2019, já que o uso por empresa de RDC direcionada ao paciente pessoa física (RDC 660/2.022) significaria uma "terceirização às avessas" impondo ao Poder Público todo o ônus e ao particular todo o bônus da importação do medicamento.

Autores

  • é mestre em Direito pela PUC-SP, procurador municipal e autor do livro, Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª Ed. Dialética, 2.023) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (Coordenador: Marcelo Figueiredo, Ed. Juspodivm, 2.023).

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