Tributação e uso da terra são desafios em regulação do mercado de carbono no Brasil
15 de setembro de 2023, 8h20
Sob novo governo e, portanto, com novas prioridades ambientais, o país registrou, nos últimos dois meses, avanços consistentes na regulamentação de um mercado de emissões de gases estufa no país.
Em julho, a gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) apresentou as linhas gerais que pretende para o tema; em agosto, o Plenário do Senado aprovou a tramitação conjunta do PL 412 (texto que contou com ampla participação do governo) com outros cinco projetos que versam sobre o mesmo assunto. A Comissão de Meio Ambiente do Senado agora analisa a normativa, que, até esta quarta-feira (13/9), havia recebido 20 emendas.
Em suma, o PL é um texto substitutivo negociado pelo governo para criar e regulamentar o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE). Pela norma que consta atualmente no projeto, as empresas teriam um limite de emissão de 25 mil toneladas de CO² por ano; as corporações que ultrapassarem esse limite terão de comprar créditos de carbono, enquanto as que se mantiverem abaixo desse teto poderão vender suas cotas.
A lei em gestação delineia o chamado mercado regulado dos créditos de carbono, que é basicamente a comercialização desses créditos para compensar emissões e atender à legislação nacional e aos acordos internacionais. A vertente não se confunde com o mercado voluntário (que já funciona no Brasil), que consiste na mesma comercialização, mas de forma espontânea para fins de redução de emissão, e não por força de lei.
Outro ponto incipiente, mas que ganhou tração nos últimos meses, é a intersecção desses créditos com o mercado de capitais. Enquanto surgem iniciativas como a B4, classificada pelos seus fundadores como uma "bolsa" de compra e venda de créditos de carbono (os títulos serão hospedados como tokens, com o uso da tecnologia blockchain), a Comissão de Valores Imobiliários encampa uma consulta pública sobre a Orientação Técnica 10 (OCPC 10), que trata de "requisitos básicos de reconhecimento, mensuração e evidenciação de créditos de descarbonização".
A ideia é que as companhias abertas sejam obrigadas a cumprir determinadas regras, sob a perspectiva contábil, para negociar e adquirir créditos de carbono para cumprir metas de redução de emissões. Os questionamentos da consulta pública versam, por exemplo, sobre como o Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) vai determinar o tamanho do crédito de descarbonização, ou sobre como será o tratamento contábil desses créditos.
Pela perspectiva regulatória, há alguns pontos de tensão, conforme apontam especialistas entrevistados pela revista Consultor Jurídico. O primeiro deles é justamente a tributação, já que a natureza jurídica do crédito de carbono está sob discussão. Pelo texto da lei, não incidem os tributos de PIS/Cofins e CSLL sobre esses créditos. Outra questão é se os setores econômicos serão listados (indústria, agronegócio etc.) ou se o foco será nas emissões, independentemente da vertente econômica da empresa.
A advogada Natascha Trennepohl, estudiosa do tema e cujo doutorado na Universidade de Humboldt (Alemanha) abordou a regulação do mercado de carbono, enxerga grande potencial no Brasil como player internacional, e acredita que a legislação, caso aprovada, deve ainda fomentar demanda interna para esses títulos.
"O que a gente precisa ter muito cuidado é para que a regulação não crie entraves para um mercado em desenvolvimento. A gente está no marco zero, é o início do nosso mercado, é importante que não haja inviabilização do setor."
Segundo a advogada, hoje há mais de 30 países com mercados regulados, limites de emissão e outros detalhes construídos a partir de políticas públicas sobre o tema, sendo o mais consistente o arcabouço que vigora na União Europeia.
O mercado e o uso da terra
Conforme dados do relatório "The Art of Integrity — State of the Voluntary Carbon Markets", de 2022, o mercado de crédito de carbono voluntário girava, à época, quase US$ 2 bilhões. Já no mercado regulado, as receitas provenientes de taxação no âmbito do chamados Sistemas de Comércio de Emissões (ETS, na sigla em inglês) movimentaram US$ 95 bilhões em 2022, conforme relatório do Banco Mundial. Quase a metade (44%) desses valores oriundos da precificação do carbono tem origem na União Europeia.
Há dezenas de tipos de créditos de carbono, que, grosso modo, correspondem à emissão de uma tonelada de gás carbônico. Seu preço também está atrelado ao tipo correspondente. No mercado voluntário, por exemplo, um crédito atrelado à energia renovável valia US$ 2,26 em 2021; já o vinculado à gestão de resíduos sólidos chega US$ 3,62. No mercado regulado, o preço médio está em US$ 22,63, segundo dados do Observatório de Bioeconomia da Fundação Getulio Vargas.
Além da tributação, que, de certa forma, vai definir a natureza jurídica do crédito de carbono (e, consequentemente, os impostos que serão aplicados a partir dos lucros dessas operações), outro ponto de fricção do tema no Brasil é a questão fundiária, já que há um enorme potencial de o país se consolidar como exportador de créditos de carbono sob a perspectiva da preservação ambiental, tanto no mercado voluntário quanto no regulado.
Em um país onde há milhões de hectares sem titularidade conhecida pelo governo, outros milhões em que há intersecção de terras privadas com terras da União e grilagem institucionalizada (ineficácia do Cadastro Ambiental Rural, por exemplo), o mercado de crédito de carbono pode ser prejudicado. A problemática resvala também nos acordos comerciais, posto que há intensa discussão, em especial na Europa, sobre a origem dos produtos importados.
Ou seja, a concentração fundiária e o desmatamento ilegal têm impacto direto na pegada de carbono de determinado país, e esta, por sua vez, vai influenciar trocas comerciais entre blocos econômicos, a exemplo do que vem acontecendo com o acordo entre União Europeia e Mercosul, estacionado desde 2019.
"Esse é um problemaço. A questão da titularidade da terra é um grande problema, sobretudo na região amazônica, onde você tem o maior potencial de projetos. Um dos exercícios que você tem de fazer é demonstrar que a titularidade da terra não é trivial (para o processo de precificação e comercialização do carbono)", diz Mauricio de Moura Costa, cofundador e diretor da BVRio, empresa que desenvolve soluções de mercado para que as companhias cumpram suas obrigações legais ambientais.
"Em termos de desenho institucional, o Brasil é um potencial exportador de crédito. Há um grande interesse do país em conseguir atrair fluxos financeiros relevantes para o Brasil. Estamos preparados para ser um provedor de créditos e atrair recursos internacionais."
A regulamentação do mercado, argumenta ele, pode ser interessante ao Brasil, mas não é fundamental. A legislação facilitaria a inserção do mercado nacional no âmbito do que foi estabelecido no Acordo de Paris, quando o mercado do carbono ganhou contornos mais concretos e os países se comprometeram em limitar suas emissões até 2030.
"A partir disso você fomenta efetivamente o comércio", diz. "Os setores empresariais não gostam (da hipótese da regulamentação); consequentemente, é uma negociação social entre os setores envolvidos que não está dada, não é evidente. Haverá reações."
Hoje, no mercado voluntário, a partir de certificados emitidos por empresas como a americana Verra (considerada uma das principais do segmento), supostamente sem fins lucrativos, projetos que envolvem redução de emissões no âmbito do uso da terra podem emitir créditos de carbono e comercializá-los no mercado nacional ou no internacional.
O papel da certificadora é, em suma, comprovar e fiscalizar se determinado projeto vai reduzir realmente as emissões, e quantos créditos ele terá direito de emitir.
A lógica do comércio de créditos regulamentado pelo Estado é semelhante, mas caberá aos entes públicos (agências, secretarias etc.) determinar as regras a serem seguidas e quais empresas, seja qual for a natureza delas, poderão dar lastro aos créditos. O projeto que tramita hoje no Senado prevê a criação de nove instituições, entre conselhos de gestão e órgão de certificação, para controlar o mercado de emissões nacional.
"No mercado regulado, isso (o lastro do crédito) está muito mais bem definido. Quem vai ficar responsável por essa definição, quem fará o certificado de emissão e qual é o projeto que passou dentro dos requisitos para ser considerado um crédito para ser negociado", diz Natascha Trennepohl.
Em relação aos impactos econômicos da regulamentação, a advogada cita a influência iminente na própria balança comercial do país.
"Cada vez mais os países avançam com uma forma de precificar o carbono, de colocar um preço em sua tonelada, e isso é uma tendência, considerando a emergência climática. É natural a movimentação em precificar. Cada vez mais a gente vai ver esse movimento internacional, produtos exportados para a União Europeia que venham de países que não tenham uma precificação de carbono vão passar a ter um tratamento diferente ou um valor a ser pago."
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