Repensando as Drogas

O uísque da elite, a cachaça do povo e a barreira intransponível da cannabis

Autor

  • Mário Henrique Cardoso Caixeta

    é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Goiás mestre em História pela PUC-GO graduado em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e membro do coletivo Repensando a Guerra às Drogas.

15 de setembro de 2023, 8h00

No último dia 24 de agosto a ministra e presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, lia seu voto no julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659, que trata da descriminalização da posse de drogas para consumo pessoal, quando um profícuo diálogo com o ministro Luís Roberto Barroso se estabeleceu. Disse a ministra, se referindo a Barroso: "O álcool, né, agora uma lei que viesse configurar como crime a ingestão de uísque, ao que Barroso lhe respondeu, bem-humorado: " violaria direitos humanos".

ConJur
Não obstante o tom jocoso das palavras do ministro Barroso, o que ele disse traz a síntese perfeita do que está em debate e é capaz de desvelar a hipocrisia que permeia o assunto. O uísque simboliza o sucesso, o prazer, o descanso ou o consolo. É o prêmio para o homem — geralmente branco  depois de um dia de trabalho estafante, geralmente realizado em escritórios fleumáticos, sempre com ar-condicionado. Seguindo o ritual, afrouxa-se o nó da gravata, um suspiro, e então se sorve aquele merecido líquido, para comemorar, para consolar ou simplesmente para relaxar ou para pensar melhor. As telenovelas são pródigas em replica-lo.

À carga simbólica do consumo do uísque, soma-se outro significativo aspecto: os efeitos do álcool no organismo. Aqui, o uísque, com custos que facilmente chegam a seis dígitos, se equivale ao Corote de cachaça, acessível a menos de R$ 3,50 em qualquer boteco! O álcool gera no organismo efeitos diversos, que podem ser modulados em fases. Na primeira, obtém-se a excitação, a inibição de medos e ansiedades, melhora no humor. Na segunda, passada a sensação de euforia, aflora o efeito depressor da bebida. E na terceira chega-se à prostração (fases do macaco, do leão e do porco, como conhecemos a partir da medicina legal).

Então, ao sorver o gole do uísque ou arrematar o Corote de cachaça, os efeitos da bebida no organismo serão os mesmos, inclusive sob a perspectiva farmacológica, com o risco de acarretar inúmeras patologias orgânicas (hepáticas, neurológicas etc.) e sociais (atuando há 23 anos no plenário do Tribunal do Júri, o álcool é figurinha repetida no elenco dos atores. E, pelo contrário, nunca me deparei com alguém chapado de maconha nesse mesmo palco!). Abstrair do ser humano dessas sensações, benfazejas ou não ao organismo, segundo o ministro Barroso, violaria direitos humanos!

Pois bem, quem pontificou a natureza de eventual medida proibitiva do consumo de álcool, alçando-a à categoria de mais grave lesão a direito, foi um ministro do Supremo Tribunal Federal, no âmbito da própria Corte, e durante julgamento que envolve, exatamente, a violação de direitos humanos. Local de fala mais apropriado, portanto, não há! Ainda no início da faculdade de direito aprendi o brocardo latino ubi eadem ibi idem jus (onde houver a mesma razão, o mesmo direito).

Nessa toada, se o Estado não pode se imiscuir na intimidade do indivíduo, dizendo que o consumo de determinada droga não lhe pode ser vedado, sob pena de violação de direitos humanos (no caso, o uísque), por que cargas d'água constitui ilícito o consumo de algumas substâncias arbitrariamente eleitas pelo poder político, enquanto outras são, inclusive estimuladas, mesmo causando prejuízos à saúde? Exige-se, portanto, muita hipocrisia e uma construção baseada em preconceito velado, maquiada com pseudociência, para sepultar no umbral drogas consumidas em larga escala por parcela da população que não comunga do ritual do uísque.

Restringindo o debate à maconha, mais proeminente nesta altura do julgamento do RE nº 635.659  embora o alargamento do espectro para outras substâncias seja justo e necessário , a proibição da posse de outras drogas para consumo pessoal encontra na fala do ministro Barroso eco vigoroso e ensurdecedor, porque constitui grave violação de direitos humanos essa proibição, e vejamos os motivos.

O Brasil ratificou o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) em 24/01/1992 e ele foi incorporado ao direito brasileiro por meio do Decreto no 592, de 6/7/1992. O Comitê de Direitos Humanos (CDH), exercendo a função interpretativa que lhe cabe, nos comentários gerais a respeito do PIDCP [1], especificamente sobre a violação de direitos humanos, nos esclarece que "18. Quando as investigações mencionadas no parágrafo 15 revelarem violações de certos direitos do Pacto, os Estados Partes deverão assegurar que os responsáveis sejam submetidos à justiça. Do mesmo modo que ocorre com as falhas na investigação, a incapacidade de levar à justiça os autores de tais violações poderia, por si só, dar origem a outra violação do Pacto. Essas obrigações surgem principalmente em relação às violações reconhecidas como criminais pelo direito nacional ou internacional, como a tortura, penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes (artigo 7), execuções sumárias e arbitrárias (artigo 6) e desaparecimento forçado (artigos 7 e 9 e, frequentemente, 6). De fato, o problema da impunidade por essas violações, uma questão de preocupação constante do Comitê, pode muito bem ser um importante elemento de contribuição para a recorrência de tais violações. Quando cometidos como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil, essas violações do Pacto são crimes contra a humanidade (ver Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, artigo 7)".

Assim, o ambiente conflagrado pela guerra às drogas é responsável por graves violações sistemáticas a direitos fundamentais, tais como invasões ilegais a domicílio por agentes do Estado; prisões arbitrárias; extermínio e desaparecimento de pessoas; encarcerização em massa, entre outras, e todas essas ações se voltam, principalmente, contra populações específicas, objeto de especial repressão e controle pelo Estado. Para além dessas violações, tem-se a condenação de usuários ao consumo de drogas de péssima qualidade, cheias de contaminantes, submetendo-os a situações de perigo real, o que poderia ser debelado com uma política consentânea com os direitos humanos fundamentais, que estimulassem a prevenção e permitisse tratamentos adequados, pautados na autodeterminação individual.

Para encerrar, a política proibicionista, sobretudo quanto a maconha, ergue uma barreira quase que intransponível para os usos fitoterápico e tradicionais da planta.

Por ser extremamente esclarecedor, vale muito a pena ouvir o episódio Cannabis, do podcast Mano a Mano, sobre o assunto [2]. Assim, almeja-se que o Supremo Tribunal Federal reconheça, na política proibicionista, grave violação de direitos humanos, equivalente à proibição do uísque, afinal, ubi eadem ibi idem jus!

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  • é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Goiás, mestre em História pela PUC-GO, graduado em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e membro do coletivo Repensando a Guerra às Drogas.

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