Direito de Defesa

Os limites da atuação do Coaf

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29 de março de 2021, 8h01

1) Uma breve introdução
Órgão indispensável ao combate à lavagem de dinheiro, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) vem sendo objeto de escrutínio político e jurídico desde o início de 2019, quando o recém-empossado presidente Jair Bolsonaro decidiu — sem grandes reflexões — abrigá-lo sob o Ministério da Justiça, então chefiado pelo ex-juiz Sérgio Moro.

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Desde então, diversas mudanças impactaram a entidade. Seu nome foi alterado para UIF, e voltou de novo a ser Coaf em menos de um ano. Em também pouco tempo, o órgão deixou a estrutura do Ministério da Justiça e foi deslocado para o Banco Central. Para além disso, em 2019, parte de suas atribuições foram suspensas por uma decisão liminar do STF, que foi revista no mesmo ano e restituiu à entidade suas atribuições, com a imposição de limites.

Não é pouca coisa para uma instituição que depende de estabilidade e serenidade para gerir informações sensíveis e relevantes para o combate a um dos delitos mais difíceis de investigar: a lavagem de dinheiro

2) As funções do Coaf
Mas, afinal, o que é o Coaf e quais suas funções?

A Lei de Lavagem de Dinheiro prevê que profissionais que atuam em certos setores da economia mais sensíveis à lavagem de dinheiro — como bancos, corretoras imobiliárias, cartórios, comerciantes de artigos de luxo, joalheiros — têm a obrigação de comunicar ao poder público atividades suspeitas de lavagem de dinheiro das quais tenham conhecimento (Lei 9.613/98, artigo 11). Assim, se o cliente de uma instituição financeira recebe em sua conta uma quanta considerável de dinheiro em espécie, incompatível com sua atividade econômica, o banco comunica a existência de uma conduta suspeita.

O órgão que recebe essas comunicações é o Coaf. Sua atribuição não é investigar ou apurar atos de lavagem de dinheiro, mas apenas recolher e organizar as informações prestadas pelos profissionais obrigados e repassá-las às autoridades de investigação criminal em determinadas situações, através de um relatório de informações financeiras, conhecido como RIF (Lei 9613/98, artigo 14).

O RIF não supõe um juízo de valor sobre a legalidade ou ilegalidade da operação. Apenas relata uma suspeita, um estranhamento, a partir do qual será iniciada uma investigação pela autoridade com competência para tal.

Ao receber e repassar informações sobre operações suspeitas, o Coaf trabalha com dados sensíveis, muitos deles com sigilo reconhecido e sob reserva de jurisdição, ou seja, que somente poderiam ser acessados com autorização judicial. É o caso de movimentações bancárias, como o citado recebimento de dinheiro em espécie por algum correntista do banco.

No entanto, o STF, em recente julgado [1], entendeu que o compartilhamento dos RIFs com autoridades de investigação — como o Ministério Público — não demanda autorização judicial. Segundo a corte, não se trata de quebra de sigilo bancário porque o Coaf não repassa informações detalhadas sobre contas e operações financeiras, mas apenas comunica a existência de operações específicas e pontuais, que podem caracterizar lavagem de dinheiro, a depender do contexto no qual se realizam. O Coaf não tem acesso a extratos bancários ou a informações amplas sobre todas as movimentações do cliente do banco, mas apenas àquela considerada suspeita pela instituição obrigada.

No exemplo dos depósitos em espécie sem aparente justificativa, o banco comunica ao Coaf a existência de apenas aquela operação, sem qualquer outra informação a respeito das operações financeiras o do estado patrimonial do operador.

O próprio Coaf esclareceu, em petição remetida ao STF por ocasião do julgamento mencionado que "não compete à UIF (Coaf) acessar contas bancárias em busca de operações suspeitas de lavagem de dinheiro. Além de ser materialmente impossível, já que a UIF não dispõe de acesso direto a contas bancárias, falta-lhe sobretudo competência para tanto" (grifos do autor).

Não foi outro o entendimento do ministro Luís Barroso nos mesmos autos: "O Relatório de Inteligência Financeira, em rigor, não contém aquelas informações que Vossa Excelência excluiu do compartilhamento, que seriam os extratos bancários" (grifo do autor). Na mesma linha, o ministro Edson Fachin: "Importante salientar, ainda, como foi corroborado pelas informações prestadas pelo Banco Central, que a unidade de inteligência financeira não detém acesso a extratos bancários ou algo que o valha. Figura, ao revés, como destinatária de informações específicas que, por sua atipicidade, devem ser fornecidas pelos setores obrigados" (grifo do autor).

3) Dos limites
Assim, o sistema de organização de informações no Coaf parte de comunicações feitas pelas instituições obrigadas, quando detectam atos suspeitos de lavagem de dinheiro por parte de seus clientes ou de terceiros. O órgão apenas recebe tais informes, não lhe sendo permitida qualquer iniciativa ou protagonismo para investigar essa ou aquela pessoa ou instituição. Tem apenas atribuição de gerir dados de inteligência e não de persecução.

Essa relativa passividade do Coaf não impede que o órgão requeira às instituições obrigadas de dados complementares para esclarecer ou esmiuçar os contornos ou o contexto de uma operação suspeita, mas não pode ir além disso. Trata-se de uma atividade residual. Não lhe é permitido requisitar dados adicionais sobre outras movimentações financeiras ou atividades adicionais de pessoas físicas ou jurídicas.

Como afirmou o próprio Coaf nos autos do citado RE 1055951: "O Coaf atém-se unicamente às informações recebidas. Pode eventualmente requisitar que a instituição financeira esclareça o conteúdo de algumas delas. Porém, jamais para solicitar informações outras, alheias ao escopo da comunicação em questão" (grifo original).

Nesse sentido, trecho do voto do ministro Edson Fachin, nos mesmos autos:

"Tal proceder não significa, nada obstante, que a UIF jamais possua qualquer possibilidade de participação ativa na coleta de dados. Poderá fazê-lo em caráter residual para obter esclarecimentos acerca de eventual inconsistência de informações já prestadas por pessoa obrigada".

Por outro lado, nada impede que autoridades investigativas — notadamente o Ministério Público — requeiram informações ao Coaf a respeito de investigados, para aprofundar análises e averiguações.

Mas há requisitos que devem ser respeitados nessa situação.

Em primeiro lugar, a autonomia do Coaf. O órgão tem liberdade para decidir colaborar ou não, de acordo com suas prioridades e regras institucionais, de forma que a autoridade requer as informações, mas não requisita. O compartilhamento não é obrigatório, e deve ser decidido pela própria Unidade de Inteligência Financeira, de maneira fundamentada.

Em segundo lugar, o Coaf somente compartilha informações que detém naquele momento. Caso o Ministério Público requeira dados sobre uma determinada pessoa ou instituição, poderá o Coaf apresentar a lista de operações suspeitas que já constem de seu banco de dados, mas não poderá voltar às instituições obrigadas (como aos bancos) para requisitar mais informações, mesmo que instado a isso pelo parquet.

Nesse sentido, o voto do ministro Gilmar Mendes no julgamento recurso extraordinário mencionado:

"O sistema do Coaf (Siscoaf) imediatamente verifica se existem em sua base de dados informações pré-existentes acerca da pessoa investigada. Ou seja, nesse momento, a análise feita 'a pedido' das Autoridades Competentes é realizada a partir de dados já existentes na UIF e previamente informados pelas instituições financeiras e setores obrigados" (grifo do autor).

Na mesma linha, o ministro Alexandre de Moraes:

"Tanto de oficio quanto a pedido, a UIF só pode atuar nos seus limites legais. (…) Até porque é um banco de dados preexistente. Não se pode dizer 'UIF, investigue alguém a partir de tais dados'. Não. Mas:  'UIF, o que você tem em relação a isso?'".

Portanto, é vedado ao Coaf, diante do requerimento do Ministério Público, voltar às instituições obrigadas, bancos ou congêneres, e solicitar dados adicionais ou complementares.

Vale aqui a menção ao voto do ministro Dias Toffoli, no mesmo julgamento:

"É extremamente importante enfatizar, ainda, a absoluta e intransponível impossibilidade da geração de RIF por encomenda (fishing expedition) contra cidadãos que não estejam sob investigação criminal de qualquer natureza ou em relação aos quais não haja alerta já emitido de ofício pela unidade de inteligência com fundamentos na análise de informações contidas em sua base de dados" (grifo original).

Nessa linha a decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que, pelo voto do desembargador Ney Bello, determinou o trancamento de inquérito policial instaurado contra um advogado baseado em RIF do Coaf gerado espontaneamente, sem a comunicação prévia de movimentações atípicas pelas instituições ou profissionais obrigados [2]. A decisão seguiu os parâmetros fixados pelo STF, concretizando suas balizas em um caso concreto.

Por fim, os requerimentos de autoridades de investigação ao Coaf e sua resposta devem ser efetuados de maneira formal, pelos sistemas criados especificamente para essa finalidade. Comunicações verbais ou por e-mail são estranhas à legalidade, como afirmou o ministro Luís Barroso, nos autos do RE 1055941: "Os atos desses procedimentos devem ser formais: a comunicação pela instituição financeira, a requisição de documentos pela Receita Federal e o encaminhamento ao Ministério Público. Não há espaço para pedidos informais, curiosidade, bisbilhotice e muito menos perseguição".

4) Conclusão
Ainda que o STF tenha balizado a atuação do Coaf no recurso extraordinário mencionado, várias questões permanecem em aberto. Quais as fontes legítimas das informações acessíveis ao Coaf sobre operações suspeitas? Quais os limites dos pedidos de esclarecimentos do Coaf a instituições obrigadas sobre informações já recebidas? Quais informações podem ser elencadas no RIF? O RIF é elemento probatório ou mero meio de obtenção de prova? É possível a decretação de medidas cautelares como busca e apreensão ou de interceptação telefônica com apoio exclusivo nesses elementos?

Tais indagações devem ser respondidas pelo Legislativo, na forma de uma lei que esmiúce e organize o tratamento de informações sensíveis pelo Coaf, suas regras de compartilhamento e, principalmente, que fixe os limites de sua atuação.

Mais uma vez, a palavra está com o legislador.

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