Opinião

Mauro Cid e "lava jato": STF e o paradigma da delação como tortura

Autor

  • Víctor Gabriel Rodríguez

    é professor livre-docente de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP) membro do Prolam/USP autor do livro Delação Premiada: Limites Éticos ao Estado com versão ibero-americana pela Ed. Temis (Colômbia e Argentina) e bolsista da Fundación Carolina/España para professor convidado na Universidad de Granada e pela Capes na Autónoma de Madrid.

12 de setembro de 2023, 14h20

Quando o instituto da delação premiada entrou em vigência no país, já era possível cogitar que com sua aplicação viriam problemas elementares, a partir, dentre outros fatores, da incompatibilidade entre o sistema de justiça negociada e nossa legislação substantiva. Surgiram, desde a doutrina, alertas de que havia graves antinomias que resolver, mas eles foram ignorados por seus operadores, ansiosos por esgotar as notórias funcionalidades do novo instrumento. Aquelas antinomias, entretanto, alcançaram extremos com a instabilidade do STF (Supremo Tribunal Federal) na interpretação do instituto, em recentes decisões.

A contradição material entre, de um lado, a homologação da delação do tenente-coronel Mauro Cid e, de outro, a anulação dos acordos de leniência da "lava jato" [1] é mostra de que ainda somos uma nação sem o devido avanço institucional, especialmente para lidar com a outorga de poder que a delação concede àqueles que negociam com a pena.

Antonio Cruz/Agência Brasil
Antonio Cruz/Agência Brasil

Auge da "lava jato": a delação como negócio jurídico personalíssimo
As antinomias da delação premiada são muitas e reiteradas, mas se pode afirmar que seu núcleo-base já havia sido decidido por nossa Suprema Corte, décadas atrás, em pouquíssimas linhas: na liminar da ADI 1719-5/DF, de dezembro de 1997, o ministro Moreira Alves declarava que a lei 9.099/95, apesar de se autointitular "processual", trazia potencial despenalizador, então sua validade temporal tinha de atender a seu "conteúdo penal, em virtude do princípio constitucional da retroatividade da lei penal mais benigna (artigo 5º, XL, da Carta Magna)". Em voto de menos de uma página, aquele relator fixou que barganha processual, ao negociar com a pena, é direito substantivo. O STF, portanto, já tomava posição clara sobre o elemento nuclear de o que seria a delação.

Décadas depois, em 2015 e no ápice da "lava jato", a Corte Suprema foi requestionada sobre a mesma matéria de fundo, com apenas novo envelopamento, porém em outro contexto político. Em Habeas Corpus, seus impetrantes perguntaram sobre os limites da oferta de delação, frente às regras da parte geral do Código Penal, notadamente seu artigo 91, I (obrigação do condenado de reparar o dano). Ali, entretanto, o colegiado optou por conceder passe livre à justiça negociada.

O acórdão do HC 127.483, da relatoria do ministro Dias Toffoli, rechaçou inclusive a análise da matéria postulada no HC, até afirmar, textualmente, que a delação premiada era um "negócio jurídico personalíssimo" e que sua homologação pelo Poder Judiciário era uma "simples questão de eficácia".

Assim, a decisão afirmou que a natureza processual da delação se sobrepunha ao direito material. Para a difícil missão de fundamentar essa tese [2], o acórdão supremo estendeu-se em uma longa e inovadora analogia com princípios do direito contratual: existência, validade e eficácia.

A efusividade dos julgadores com os resultados das delações da "lava jato" naquele ano de 2015 era compreensível, embora suas consequências tenham alcançado níveis, em nossa opinião, extremos [3]. Mas era esse o novo posicionamento formado naquele acórdão: liberdade de negociação sobrepondo-se, até, ao direito à prestação judicial em matéria penal.

Ocaso da "lava jato": a delação como tortura
Desde aquele ano até estes dias, pouco se alterou no contexto legislativo no que se refere ao núcleo da delação premiada, porém, como é sabido, no entorno da "lava j"ato os cenários probatório e político transformaram-se muito.

Tanto mudou que, recentemente, uma decisão da Suprema Corte determinou, textualmente, a anulação de provas derivadas de delação e acordos de leniência na "lava jato", porque esses institutos configurariam um "pau de arara do século 21" [4]. O que meses antes era tido como um acordo de vontades privado e inquestionável, com Estado e cidadão negociando de maneira personalíssima, hoje é, textualmente, tortura convertida em lei. Para o mesmo Tribunal.

Os motivos reais de tal transformação não nos interessam tanto, mas sim nos importa ressaltar que a natureza monocrática desta última decisão não altera o quadro de instabilidade institucional que descrevemos: afinal, o HC-paradigma liberal e a decisão que predica a delação como tortura são da lavra do mesmo ministro relator.

Não houvesse tal panorama de insegurança jurídica, a nova decisão seria de se celebrar. A doutrina brasileira, se assim nos podemos intitular, já havia publicado longamente sobre o tema específico [5], fazendo lembrar que autores de referência, nos Estados Unidos dos anos 1970, teciam comparações diretas entre a tortura e o plea bargain.

É até intuitivo, cremos, que o uso da delação configure um modo de constranger à confissão. Compelido por uma acusação ainda não formalizada [6] e que traz enquadramento jurídico sempre hipertrofiado  porque construído já com vistas ao processo de barganha — a ação de rejeitar a proposta de delação deixa de ser alternativa razoável ao investigado. Sua liberdade de decidir é, portanto, meramente formal.

Nesse sentido, esse reconhecimento supremo de que a delação é tortura institucionalizada representaria um avanço como visão jurisprudencial. Só faltaria aplica-la, efetivamente, erga omnes.

Mauro Cid e sua liberdade após delação
Em outro extremo do cenário político, as notícias dos jornais desta semana mostram o tenente-coronel Mauro Cid sendo desencarcerado logo após assinatura de acordo de delação. Ou, melhor dito, após a homologação desse acordo pelo Supremo Tribunal Federal [7].

A aplicabilidade daquela mesma alegoria de "pau de arara" contemporâneo ao militar é tão evidente que não mereceria menção, mas, de momento, abandonamos o tema da coerência da Corte Suprema com ela mesma, para avançar à própria legalidade mais estrita. Isso porque o tão criticado "pacote anticrime", conquanto tachado de neofascista, mudou a lei para tentar, especificamente, alertar sobre o risco de que a delação se transformasse em tortura institucional. Foi em 2019 que o legislador acrescentou, no §7º do artigo 4º da lei 12.850/2013, o comando de que o juiz que homologa a delação tem de observar especialmente "a voluntariedade da manifestação de vontade, especialmente nos casos em que o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares".

Assim, a noção de tortura contemporânea do tenente-coronel aparece aqui a fortiori, com uma razão a mais: não apenas ela coincide com a nova visão da Suprema Corte sobre o instituto, como também vai ao encontro do alerta da legislação vigente. O plus do seu estado de prisão cautelar acrescenta gravidade ao fato de que o indivíduo não negocia em grau razoável de voluntariedade. E, infelizmente, a hipótese do constrangimento é confirmada ex post, com a imediata posta em liberdade do delator, tão logo sucumbe à negociação acusatória. É a própria lei que alertava para esse risco, aqui materializado.    

Para nosso estudo, que se desvinculará dos personagens envolvidos, a probabilidade de que a delação de Mauro Cid venha, se mudados os ventos hermenêuticos, a ser totalmente anulada é comprovadamente alta. É nesse ponto que a questão deixa de ser figurativa para apresentar-se como tema geral: mais do que qualquer outro instituto, a delação premiada depende do equilíbrio duradouro da posição do Estado. Essa é nossa tese, aqui.

Delação: futuro e estabilidade
A falta de previsão jurídica de qualquer instituto é causa de incertezas sociais [8], porém na delação é mais aguda: ela abala o alicerce do instituto. A delação premiada e, principalmente, os acordos de leniência [9], mesmo que disso se afastem na prática latino-americana, tem como fundamento abstrato a teoria dos jogos. E esta teoria, em qualquer de suas variantes contemporâneas, é calcada no dogma de que as partes envolvidas não podem mudar sua estratégia durante o acordo. O câmbio de estratégia desconfigura o equilíbrio, de que depende toda a racionalidade do instituto.

Mesmo que não se aceite a noção de equilíbrio como base da delação, ela certamente depende de um fator derivado: a previsibilidade da conduta das partes. Aquele que delata tem de contar com um compromisso do Estado, e aqui está o ponto débil do instituto na América Latina: aguardar que o Poder Público mantenha sua posição ao largo do tempo, quando o Judiciário é o primeiro em dar giros em sua visão, é uma quase utopia [10].

Para nós, uma conclusão é obrigatória: como nação, estamos ainda desprovidos de maturidade política, jurídica ou institucional para aplicar a delação premiada, no modo ideal como foi importada. Disso derivam duas opções, em minha humilde opinião: ou suspendemos sua vigência até que consigamos tal maturidade mínima para a hermenêutica do instituto; ou, como segunda opção, aceitamos com resignação que indivíduos sejam instrumentalizados, até um futuro em que a jurisprudência, por construção dialética não livre de desvios constantes, alcance estabilidade e, claro, isonomia.

 

 


[1] Como alerta, esclarecemos que não temos qualquer vínculo com qualquer dos casos citados (Lava Jato e Mauro Cid), nem mesmo qualquer aproximação político-partidária.

[2] Os termos desse acórdão, na inconveniência de aproximar o Direito penal da negociação contratual já haviam sido por nós notadas em RODRÍGUEZ, Víctor, A nova punibilidade e seu imprescindível papel nos pressupostos de justiça premial: como a Parte Geral do Código pode legitimar os acordos de delação premiada, in: Coleção 80 anos do Código Penal – Volume IV – Miguel Reale Jr. e Maria Thereza de Assis Moura, Coleção 80 anos do Código Penal – Volume IV – (1.º Edição), especialmente item 06.l

[3] Consta da ementa do referido julgado: "6. Por se tratar de negócio jurídico personalíssimo, o acordo de colaboração premiada não pode ser impugnado por coautores ou partícipes do colaborador na organização criminosa e nas infrações penais por ela praticadas, ainda que venham a ser expressamente nominados no respectivo instrumento no 'relato da colaboração e seus possíveis resultados'" (artigo6º, I, da Lei nº 12.850/13)”. HC 127.483/PR, relator ministro Dias Toffoli).

[4] "Enfim, em última análise, não distinguiram, propositadamente, inocentes de criminosos. Valeram-se, como já disse em julgamento da Segunda Turma, de uma verdadeira tortura psicológica, UM PAU DE ARARA DO SÉCULO XXI, para obter 'provas' contra inocentes". RCL 43007, p. 13, relator ministro Días Toffoli, 06 set. 2023 (Caixa alta no original).

[5] Veja-se "5.5 La delación como tortura", in: RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel; GOMES, Ana Cristina. La delación premiada frente a la prohibición de proporcionar prueba contra sí mismo: comparación entre América Latina y España. RBCCrim, vol. 188. ano 30. p. 337-397.

[6] Essa é, cremos, uma das grandes oposições a que à Polícia caiba a negociação em delação: ela não é a entidade competente para formar a convicção acusatória, senão de maneira provisória.

[7] Não temos acesso ao texto da decisão judicial, mas retiramos da imprensa a notícia de que o desencarceramento do delator ocorre logo após tal homologação. Veja-se: "Cid é libertado após Moraes homologar delação que pode envolver Bolsonaro", OESP, 11 set 2023, p. A6

[8] Sobre o tema, na imprensa, veja-se o Editorial do Estado de São Paulo "O Dever do STF de respeitar o cidadão", de 11 de setembro de 2023.

[9] Pessoalmente, não acredito que a noção de equilíbrio de Nash seja aplicada à delação premiada. Diferentemente é com o acordo de leniência, quando há real suspeita de cada membro de um cartel acerca da delação espontânea de algum (first to blow the whistle).

[10] Veja-se a Antinomia do Estado traidor, in: RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel, Delación Premiada: Límites Éticos al Estado, Bogotá: Temis, 2019, especialmente pp. 181-182.

Autores

  • é professor Livre-Docente de Direito Penal da USP, membro do Prolam/USP e autor do livro “Delação Premiada: Limites Éticos ao Estado”, com versão ibero-americana pela Ed. Temis (Colômbia e Argentina). Bolsista da Fundación Carolina/España, para professor convidado na Universidad de Granada e, pela Capes, na Autónoma de Madrid.

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