Embargos Culturais

A codificação do direito privado e a polêmica Savigny e Thibaut

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

10 de setembro de 2023, 8h00

Na Alemanha, a polêmica entre Savigny e Thibaut, ocorrida no século 19, opôs os defensores de um direito de inspiração popular aos defensores de um direito codificado. Anton Thibaut, professor na Universidade de Heildelberg, publicou, em 1814, um libelo defendendo a necessidade da codificação na Alemanha (Über die Notwendigkeit eines allgemeinen bürgerlichen Rechts in Deutschland), inclusive, como meio para a unificação do país, que então se processava. Imbuído de forte espírito iluminista, entusiasmado pela concepção de leis gerais, Thibaut invocava uma percepção científica do direito, que poderia ser alcançada, de modo matemático, por textos normativos de abrangência geral.

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Seus detratores o identificaram com o pensamento francês. Thibaut pretendia superar particularismos localizados em favor da simplificação do ordenamento, que na Alemanha deteria validade geral. Thibaut pretendia enfrentar a confusão normativa e jurídico-institucional que reinava na Alemanha, em cujo espaço territorial conviviam inúmeros ordenamentos, ainda que pretensamente radicados em um direito romano recepcionado.

Savigny respondeu com um opúsculo, insistindo na vocação de seu tempo para a legislação e para a jurisprudência (Vom Beruf unsrer Zeit für Gesetzgebung und Rechtswissenschaft), concebendo o direito como realidade cultural com semelhanças estruturais com as línguas faladas, e submetido a leis que não podem ser alcançadas ou alteradas por legislação artificial.

Savigny nasceu em Frankfurt, e tinha dez anos quando os revolucionários parisienses tomaram a Bastilha (1789). Combateu o legado jurídico da Revolução Francesa: não compreendia o conteúdo metafísico das premissas de igualdade, bem como não admitia o construído pouco empírico do contrato social. Sintetizou em sua trajetória o romantismo jurídico alemão do século 19, do que faz prova inclusive uma intensa reprodução iconográfica em torno de sua pessoa.

A família de Savigny era de refugiados franceses, de onde seu nome, por alguns pronunciado à moda francesa. Casou-se com Cunigunda Brentano, também de família aristocrática, que o aproximou dos círculos culturais da época, ligados ao romantismo. Protestante, apaixonado por arquitetura e pela literatura greco-romana, estudou Direito, História e Filosofia em Marburgo e em Göttingen. Foi professor catedrático na Universidade de Berlim, onde foi recebido por Wilhelm von Humboldt. Francisco Sosa Wagner nos narra que Savigny era extremamente vaidoso; em seu livro sobre a história da germanística jurídica Sosa Wagner conta-nos que Savigny não passava perto de um riacho sem olhar para a própria imagem refletida nas águas…

Savigny era inimigo da codificação, formulação que havia triunfado entre os franceses. Repudiou o movimento que visava a sistematização do Direito Civil alemão. Para Savigny a codificação do Direito conduziria ao congelamento de uma latente e realizada experiência cultural e normativa. Identificado como o maior nome da chamada escola histórica do direito, afirmava que nenhuma etapa histórica vive por si mesma; todo momento histórico é, necessariamente, a continuidade do passado. Para essa escola, o homem é fundamentalmente um ser histórico.

Liderou a chamada escola histórica do direito, cuja metáfora constitutiva radicava na ideia de organismo, concepção que se fundava na possibilidade de relação entre as várias instâncias da vida social, que transitavam da língua para os costumes, no contexto mais amplo do romantismo alemão. A atuação de Savigny transcendeu ao contexto da academia. Foi também conselheiro do estado da Prússia (1817) e ministro da reforma legislativa (1842-1848).

Reconhecendo que havia um movimento pela construção de um direito nacional unificado, creditava essa tendência a uma reação à dominação francesa, escrevendo que, passada a opressão, os alemães queriam ser dignos de sua época. Seu repúdio à presença e influência francesas comprovam-se em passagem na qual observou que o código francês se espalhava pela Alemanha como uma "grangena que se propagava sem cessar sua ação corruptora".

Savigny não concordava como o fato de que os defensores dos códigos proclamavam um texto que iria garantir com exatidão mecânica a administração da justiça, dispensando-se o magistrado de qualquer juízo próprio, limitando-o a um papel de simples intérprete literal do código, que seria construído livremente em relação a qualquer influência histórica, obra de uma "solene e estranha abstração", disponível a todos os povos, de todos os tempos.

A polêmica Savigny versus Thibaut configura-se como um dos momentos mais tensos na construção do direito alemão no século 19, projetando-se seus efeitos para debates em outros países, até cotidianamente. Essa disputa revelou uma tensão entre o racionalismo iluminista e o historicismo que marcou o romantismo alemão, traduzida por dissensos que havia em torno do direito romano. Um ponto central para quem estuda o tema da codificação, hoje fragilizado pela jurisprudência, que tudo pode, tudo é, tudo faz, tudo permite, tudo proíbe.

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. É sócio do escritório Hage, Navarro & Godoy.

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