Paradoxo da Corte

Limites subjetivos da coisa julgada na ação coletiva italiana

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

8 de setembro de 2023, 8h00

O ordenamento jurídico italiano, possivelmente pelo acentuado perfil conservador da dogmática processual peninsular, demorou décadas para prestigiar a tutela jurisdicional de natureza coletiva.

Spacca
Depois de muitos anos de discussão parlamentar, a ação coletiva foi finalmente introduzida no direito italiano pela Lei nº 244, de 24 de dezembro de 2007, que inseriu o artigo 140-bis no Codice del Consumo.

Restrita aos direitos homogêneos decorrentes das relações jurídicas consumeristas, a proposta de alteração legislativa entrou em vigor apenas em 2009, tendo sofrido modificações pelo Decreto-lei nº 1/2010, que foi convertido na Lei nº 27/2012.

O aludido artigo 140-bis, de fato, instituiu a ação coletiva para a tutela dos direitos individuais homogêneos dos consumidores. A legitimação para agir veio então assegurada a qualquer um dos integrantes do grupo, bem como, de forma concorrente, às associações de classe (artigo 137 do Codice del Consumo), inscritas no Ministério de Atividades Produtivas, além de outras reputadas pelo juiz representativas dos interesses coletivos em jogo.

Nessa última hipótese, as associações legitimadas agem como verdadeiras substitutas processuais daqueles que são titulares do direito lesado.

Inspirando-se no clássico modelo de class action norte-americana, o nº 9 letra b do artigo 140-bis, preceitua que, ao admitir a processamento a ação coletiva, o juiz deve estabelecer um prazo, não superior a 120 dias, no qual os potenciais interessados adiram, vale dizer, exerçam o respectivo direito de opt in, mediante requerimento a ser depositado na secretaria do juízo.

Daí porque, todos aqueles que formalmente aderirem à demanda, nos moldes da intervenção de terceiros, regrada pelo artigo 105 do Código de Processo Civil italiano, passam a integrar o polo ativo da demanda, ostentando a qualidade de parte. A demanda, contudo, é conduzida pela parte que foi reconhecida idônea pelo tribunal (adequacy of representantion). Desse modo, verifica-se que nenhum poder autônomo de natureza processual é reconhecido pelo legislador aos aderentes, nem mesmo aquele de impugnação contra a decisão que vier a ser proferida na ação de classe (cf. Luciano Panzani, La class action nel diritto italiano e ne diritto europeo, www.distretto.Torino.Giustizia.it, acesso 27.07.2020).

A coisa julgada, qualquer que seja o resultado do processo, de procedência ou improcedência do pedido, atinge todos os consumidores que intervieram no processo.  Pelo contrário, aqueles que não aderiram, por serem considerados terceiros, jamais serão afetados pela eficácia da sentença proferida na ação coletiva (artigo 140-bis, nº 5).

Assim, estes que não foram tangidos pelos limites subjetivos da coisa julgada podem ajuizar ações individuais, antes, durante ou mesmo após o julgamento da ação coletiva.

O sistema italiano, como se observa, abandonou de uma vez por todas a noção reconhecidamente equivocada da coisa julgada secundum eventum litis.

Mais recentemente, introduzindo substancial reforma no sistema anterior, o direito italiano ampliou a abrangência da ação coletiva.

Pela Lei nº 31, de 12 de abril de 2019, foi inserido o artigo 840-bis e seguintes no Código de Processo Civil italiano, para vigorar depois de um ano de sua publicação (cf. artigo 840-septies), vacatio essa prorrogada até 18 de novembro de 2020 (ex vi do artigo 8º, nº 5, do Decreto-lei nº 132, de 30.12.2019).

A primeira observação a ser feita concerne à considerável ampliação do instituto, que passa a abranger quaisquer situações de direitos individuais homogêneos (illeciti plurioffensivi), assegurando-se, nesse particular, amplo acesso à justiça.

Desse modo, a teor do artigo 840-bis, os direitos subjetivos tuteláveis por meio da ação coletiva são aqueles conexos com um mesmo ilícito plurissubjetivo. Trata-se, a rigor, de direitos subjetivos, reconhecidos no plano substancial, de sujeitos identificados ou identificáveis, que também podem agir individualmente.

Na ação de classe, como assevera Gianpaolo Caruso, efetiva-se uma agregação, num único processo, de mais de uma situação substancial individual, exercida cumulativamente, dada a homogeneidade dos direitos tuteláveis (La nuova azione di classe: una peinture d’impression, Judicium — Il processo civile in Italia e in Europa, Pacini Giuridica,  https://www.judicium.it/, 14.07.2020. V., também, Sara Brazzini e Pier Paolo Muià, La nuova class action alla luce della legge 12 aprile 2019, n. 31, Torino, Giappichelli, 2019).

Por meio da atual class action italiana é possível pleitear tutela de natureza condenatória (artigo 840-bis, nº 2); ou, ainda, provimento inibitório coletivo, visando à cessação ou proibição de conduta comissiva ou omissiva (artigo 840-sexties).

No tocante à legitimação ativa ad causam, o atual artigo 840-bis do Codice di Procedura Civile mantém a sistemática do já referido artigo 140-bis do Codice del Consumo, atribuindo pertinência subjetiva direta a qualquer integrante da classe e ainda a organizações e associações sem fins lucrativos, inseridas num rol junto ao Ministério da Justiça, que tenham como objetivo estatutário a tutela dos direitos homogêneos.

Consoante dispõe o artigo 840-quinquies, nº 1, do diploma processual italiano, dentro do prazo peremptório de 60 a 150 dias da data da publicação da decisão (ordinanza) que admite a petição inicial, qualquer interessado, desde que preencha os pressupostos legais, tem a faculdade de aderir à demanda.

Todavia, além desse momento processual, o interessado também poderá pleitear o seu ingresso no processo numa fase sucessiva, após ter sido proferida a sentença que reconhece a responsabilidade da parte demandada.

Anota ainda Gianpaolo Caruso que a temática atinente à legitimação para agir, no âmbito das ações coletivas, pressupõe, à evidência, íntima correlação com o conceito de adequada representação. Realmente, segundo dispõe o artigo 840 ter, ao ensejo do juízo de admissibilidade da demanda deve ser verificado se o autor se encontra em posição de "curare adeguatamente i diritti individuali omogenei" e que não "versi in stato di conflitto di interessi nei confronti del resistente".

Caso resulte alguma incompatibilidade ou conflito no curso da demanda, entre a parte que conduz o processo e a requerida, qualquer aderente-interveniente poderá assumir a condução do processo. Por força do nº 3 do artigo 840-quater, na hipótese de não haver interesse na condução por outro legitimado aderente, fica preservado o exercício de sucessiva ação coletiva.

Cumpre também registrar que a vigente lei italiana que regulamenta as ações de classe, continua prevendo que a eficácia da sentença atinge apenas aqueles que participaram do processo.

O legislador confirmou a opção de manter a técnica do opt in, de forma que a sentença não projeta seus efeitos automaticamente a todos que integram determinada classe, mas apenas àqueles que aderiram ao processo (v., a propósito, R. Donzelli, L'ambito di applicazione e la legittimazione ad agire, in B. Sassani, Class Action  Commento sistematico alla legge 12 aprile 2019 nº 31, Pisa, Pacini Giuridica, 2019, pág. 7).

Assim, diferentemente do modelo da class action norte-americana, que estende os limites subjetivos da coisa julgada tanto às partes em sentido técnico, quanto aos membros que não exerceram o right to opt out, a lei italiana delineia-se mais restritiva, e deveras assemelhada ao regime acolhido pelo direito processual brasileiro.

Ademais, a legislação italiana que hoje vigora na Itália ainda prevê, no artigo 840-sexies, como acima frisado, a possibilidade daquele que não aderiu ao processo da ação coletiva na fase de conhecimento, intervir ao ensejo da liquidação do quantum debeatur de sua própria pretensão. É certo que esse caminho somente será possível se o interessado não tiver escolhido a via do ajuizamento de demanda individual com fundamento nos mesmos elementos objetivos (causa petendi e petitum).

Por fim, importa anotar que a sentença de procedência parcial ou de improcedência, proferida na ação coletiva, não é oponível pela parte requerida no âmbito da demanda individual.

Autores

  • é sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo), professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

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