Repensando as drogas

Salvem os loucos!

Autor

  • Mário Henrique Cardoso Caixeta

    é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Goiás mestre em História pela PUC-GO graduado em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e membro do coletivo Repensando a Guerra às Drogas.

18 de agosto de 2023, 8h00

Antes tarde do que nunca, diz o adágio popular para se referir a alguma medida necessária, e até desejada, porém, tomada a destempo, com atraso. Refiro-me aqui à Resolução nº 487 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que determinou, em uma canetada, a desativação dos estabelecimentos  que não são de saúde [1]  destinados à internação psiquiátrica de pessoas com problemas, também mentais, relacionados à lei penal.

Não se trata de excessiva rabugice, mas, francamente, desde 2001 vigora a Lei 10.216, que instituiu a política antimanicomial, e então a Resolução é, para dizer o mínimo, chover no molhado, me valendo de outro ditado, embora se reconheça a importância da iniciativa (no direito o óbvio sempre deve ser dito!).

ConJur
Percebendo isso, já no longínquo ano de 2010 o colega Haroldo Caetano, amigo promotor de justiça do Ministério Público de Goiás, autor do Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (Paili), escreveu sobre a ilegalidade na internação de pessoas nesses ditos manicômios judiciários. O autor enfatizou que "a Lei nº 10.216/2001 humaniza o atendimento à saúde mental, transferindo o foco do tratamento para serviços comunitários e abertos".

"A Lei da Reforma Psiquiátrica ou Lei Antimanicomial, como é conhecida, alcança a internação compulsória determinada pela justiça criminal como medida de segurança. Agora, deve o juiz preferir o tratamento ambulatorial, somente optando pela internação 'quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes', caso em que será precedida de 'laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos'." [2]

Voltemos à canetada do CNJ… Excepcionando os terraplanistas, que em pleno século 21 exigiram que Galileu Galilei se retratasse, para problemas complexos, não há soluções simples! Aqui surge o calcanhar de Aquiles, porque a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) [3] está em frangalhos. Passou por um completo desmonte nos últimos quatro anos, o que era de se esperar, e ainda sofre com o subfinanciamento [4] [5].

E é essa Raps a foz natural da demanda que, espera-se, desaguará da aplicação da Resolução nº 487 do CNJ. Mas o que a luta antimanicomial tem a ver com a guerra às drogas? Tudo. A internação psiquiátrica compulsória, muito comum para drogaditos, é irmã siamesa da política proibicionista caracterizada pela guerra às drogas. Explico melhor. A encarcerização e a internação psiquiátrica caminham de braços dados.

Ambas, em arremate, nulificam o indivíduo, mormente os indesejáveis, sob aspectos sociais, v.g., econômicos, raciais (na ampla conceituação de raça), e pretendem o controle, custe o que custar. Claro que em alguns casos a única saída é a internação, quando recursos extra-hospitalares forem reconhecidamente insuficientes para o tratamento (o que deve ser aferido com parcimônia, pois muitas vezes a necessidade de internação decorre da falta dos demais tipos de tratamento); e essa, se ocorrer, terá que ser por prazo determinado, apenas o suficiente para estancar a crise do enfermo.

O que se nota, porém, é que a internação ainda é descaradamente usada para segregar. Neste ponto, ambas, a prisão e a internação são um sucesso absoluto: autorizam o controle e a execução de pretos, pobres e, preferencialmente, das periferias; encarcerizam em massa; autorizam violações de domicílio por agentes do Estado; geram elementos estranhos à política de atenção à saúde mental, como as comunidades terapêuticas, de nítido viés mercantilista, e por aí vai.

Mas, voltemos à vaca fria, me valendo de mais um adágio popular, comum por essas bandas do Brasil. Se o Estado, via CNJ, pretende acabar com os manicômios judiciários, em "uma canetada", outras medidas, igualmente complexas, devem ser adotadas por esse mesmíssimo Estado, as quais exigem um cado de coragem  o que a vida quer da gente é coragem, não é mesmo?, como diz Guimarães Rosa  e de mudança de paradigma de ação, para que o Estado se guie pela dignidade da pessoa humana.

Estancar essa absurda guerra contra pessoas apanhadas com drogas reputadas ilícitas (porque há outras tantas iguais ou mais deletérias à saúde, como o álcool e tabaco) e fortalecer todos os componentes da Raps, expurgando dessa rede resquícios manicomiais, é o mínimo que agora se espera! Perguntas simples já podem ser feitas pelos rincões do Brasil…

Quantos são os Caps instalados em determinado território? São suficientes e funcionam bem? Há leitos psiquiátricos em hospitais gerais no território? Os serviços de atenção básica (unidades básicas de saúde, por exemplo) funcionam em articulação com os equipamentos típicos da rede de atenção à saúde mental? Há residências terapêuticas no território, ou apenas as tais comunidades terapêuticas? Enfim, algumas poucas perguntas, aqui exemplificadas, serviriam para um panorama bem verdadeiro sobre a situação da rede de atenção à saúde mental, que, definitivamente, não vai bem da cabeça!

Assim, a canetada da CNJ deve tingir de tinta também os inquéritos e processos de criminalização de pessoas (os mesmos de sempre) e também os processos estruturantes que cuidam da Raps, e que buscam fortalecê-la, ou, do contrário, a canetada será apenas uma canetada, e a vaca, sinceramente, não sairá do brejo (e continuaremos chorando pelo leite derramado).

Nesse quadro pavoroso, de proibicionismo e manicomialização de mãos dadas, o cuidado às pessoas que enfrentam problemas decorrentes do uso abusivo de drogas, quaisquer que sejam, com a oferta aos usuários dos serviços em saúde já preconizados na Raps, pode encontrar esperança na mudança de estratégias de abordagem da problemática, mudando a porta de entrada do usuário abusivo de drogas da delegacia de polícia para o equipamento em saúde! E não há melhor hora para propor essa alternativa, quando se aguarda, com ansiedade, a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a descriminalização de porte de drogas para consumo pessoal (RE 635.659).

Já temos uma grande demanda aos componentes da Raps, que estão fragilizados. Essa demanda só tende a aumentar, tanto por conta da aplicação da Resolução 487 do CNJ, como também porque o ser humano, naturalmente, é consumidor de drogas, desde a antiguidade conhecida! Negar esse fato é tapar o sol com a peneira!

Uma saída bastante razoável seria regulamentar a produção e difusão de "substância que, em vez de 'ser vencida' pelo corpo (e assimilada como simples nutriente), é capaz de vencê-lo" (ESCOHOTADO, 2004, p. 9) [6], as drogas, taxando e cuidando das condições sanitárias das substâncias em circulação, como se faz com álcool e o tabaco!

Sobre os recursos advindos dessa taxação  lembremo-nos do princípio de direito tributário herdado do Império Romano: pecunia non olet , um destino legítimo seria o fortalecimento dos componentes da Raps, para a efetiva tutela da saúde pública (curiosamente, o fundamento do proibicionismo é a proteção da saúde pública, porém, essa política consome recursos do estado exclusivamente no aparelhamento dos órgãos de repressão!).

No que se refere ao controle das condições sanitárias das substâncias em circulação  outro evidente benefício da regulamentação da produção e circulação de drogas , havendo, por exemplo, o transporte de drogas em desacordo com determinação regulamentar, chamemos o personagem Lineu Silva, fiscal sanitário, vivido em sua segunda aparição pelo grandioso Marco Nanini em A Grande Família! Seriam a tampa e panela, o fim do proibicionismo e a manicomialização, e teríamos uma alternativa à violência seletiva caracterizada pela guerra às drogas; o fortalecimento dos componentes de atenção à saúde preconizados pela Raps, mediante o aporte de recursos advindos da taxação; o controle, inclusive sob a perspectiva da qualidade  ou um pouco de controle  das substâncias em circulação; e, enfim, a possibilidade de garantir um tratamento digno a drogaditos, com a previsão e expansão de ações como de "redução de danos", por exemplo, sem medo de a polícia levar no camburão.

"Eu não quero viver assim, mastigar desilusão
Este abismo social requer atenção
Foco, força e fé, já falou meu irmão
Meninos mimados não podem reger a nação."
(Menino Mimado — Criolo)

 


[1] Recomendo fortemente a leitura do livro Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex, publicado pela editora Geração, que descreve as torturas, eufemisticamente falando, impostas aos internos do Hospital Colônia de Barbacena;

[3] Anexo V da Portaria de Consolidação nº 3: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prc0003_03_10_2017.html (acesso em 27/07/2023);

[6] ESCOHOTADO, Antonio. História Elementar das Drogas. Lisboa, Portugal, Ed. Antígona, 2004.

Autores

  • é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Goiás, mestre em História pela PUC-GO, graduado em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e membro do coletivo Repensando a Guerra às Drogas.

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