Opinião

Violação à intimidade do investigado em consultas processuais penais

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6 de setembro de 2023, 7h07

Acreditem, o artigo 5º, inciso XLVII, "b", da Constituição, não proíbe penas perpétuas. Vai além: proíbe a estigmatização eterna da pessoa, por qualquer meio, pois o evoluir civilizatório temperou a pena com uma nota de moderação e a dignidade humana passou a ser o fundamento da ordem política e social, o prius lógico e ontológico para a existência e especificação dos demais direitos, passando da reação desmedida e vigorosa para o ideal da sanção proporcional.

O axioma pétreo abrange qualquer mancha irrevogável e indelével em face do cidadão em decorrência do exercício do jus puniendi, impondo, assim, freios para além dos efeitos principal e secundários da condenação, previstos no Código Penal e em leis especiais.

Com isso, a diretriz constitucional alcança também as informações processuais e os registros criminais em certidões disponibilizadas e emitidas pelo Poder Judiciário, pelo Ministério Público e demais órgãos da administração pública, o que, não raro, não é observado.

O artigo 748 do Código de Processo Penal prevê que a condenação ou condenações anteriores não serão mencionadas na folha de antecedentes do reabilitado, nem em certidão extraída dos livros do juízo, salvo quando requisitadas por juiz criminal.

Por sua vez, a Lei de Execução Penal dispõe no artigo 202 que cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados ou certidões fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça, qualquer notícia ou referência à condenação, salvo para instruir processo pela prática de nova infração penal ou outros casos expressos em lei.

O Código Penal, em seu artigo 93, caput, também estabelece que a reabilitação alcança quaisquer penas aplicadas em sentença definitiva, assegurando ao condenado o sigilo dos registros sobre o seu processo e condenação.

A Resolução nº 680/2020, do Conselho da Justiça Federal, dispõe no artigo 14, caput, que constará da certidão criminal apenas os processos em tramitação ou com condenação até que seja lançado o registro do cumprimento ou da extinção da pena fixada, bem como, no artigo 16, inciso II, que a certidão judicial criminal será negativa quando houver processos distribuídos que tenham redundado em suspensão condicional da pena, transação penal, suspensão condicional do processo, acordo de não persecução penal, ou nos quais a pena já tenha sido extinta ou cumprida, hipóteses em que não constarão do rol da certidão.

As normas acima não tratam explicitamente sobre os casos de arquivamento de inquérito, trancamento da ação penal, rejeição da denúncia ou absolvição, o que tem sido, pasmem, interpretado como permissivo para a divulgação dos dados criminais no sistema de consultas processuais e de emissão de certidões de nada consta de alguns tribunais e do Ministério Público.

O fato é que a omissão normativa não prejudica o sentido da proteção jurídica, pois vale a ampla proibição de estigmatização perene do investigado, haurida diretamente da Lei Maior. E naturalmente, por simetria lógica, quem pode o mais pode o menos, conforme o brocardo latino a maiori, ad minus, de modo que não faria sentido conferir-se proteção a quem foi declarado culpado e nenhuma a quem foi absolvido ou teve o inquérito arquivado ou a acusação contra si rejeitada por reconhecida atipicidade ou ausência de justa causa, por exemplo.

Sobre isso, o Superior Tribunal de Justiça pacificou há muito tempo que, por analogia ao que dispõe o artigo 748 do CPP (…) devem ser mantidos nos registros criminais sigilosos os dados relativos a inquéritos arquivados e a processos, em que tenha ocorrido a absolvição do acusado por sentença penal transitada em julgado, com o devido cuidado de preservar a intimidade do cidadão (STJ, RMS 28.838/SP, relator ministro Humberto Martins, T2, j. 1º/10/2009).

Assim, se por um lado as informações sobre os processos criminais não podem ser eliminadas totalmente dos bancos de dados, por outro, assiste aos cidadãos o direito ao sigilo das informações, as quais só podem ser fornecidas mediante requisição judicial (STJ, RMS 19.153/SP, relator ministro Celso Limongi, T6, j. 7/10/2010).

Quanto às consultas processuais penais na internet, especialmente nos sites dos Tribunais e do Ministério Público, a proteção à intimidade e à dignidade do investigado não é diferente.

Por ocasião da 96ª Sessão Ordinária do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao julgar o Pedido de Providências nº 2009.10.00.002905-0, instaurado por iniciativa da Procuradoria da República no Município de Canoas/RS, criou-se Grupo de Trabalho para definir a amplitude do princípio da publicidade do processo eletrônico ou das informações processuais disponibilizadas na rede mundial de computadores.

A iniciativa gerou o Ato Normativo nº 0001776-16.2010.2.00.0000, no qual o CNJ concluiu que o sigilo deve ser diferenciado em matéria penal, pois a ampla divulgação de dados dos processos criminais, conquanto não vulnere o princípio da presunção de não-culpabilidade, compromete o direito à ressocialização e o desenvolvimento de programas sociais voltados à quebra do preconceito quanto ao aproveitamento da mão de obra de pessoas acusadas, condenadas ou egressas do sistema carcerário, de modo que, após o trânsito em julgado da decisão absolutória, a extinção da punibilidade ou o cumprimento da pena, a consulta deverá ficar restrita ao número do processo.

A partir desse julgamento, aprovou-se a Resolução n. 121/2010, na qual o CNJ definiu quais são os dados de processos criminais que podem ser disponibilizados em sistemas de consulta eletrônica. E no artigo 4º, §1º, inciso I, a citada norma é expressa em estabelecer que o sigilo é aplicável aos processos criminais arquivados, considerando-se informação sigilosa os nomes das partes, dos advogados e seus respectivos registros junto à OAB, devendo ser mantido tão somente o número do processo.

No âmbito do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), editou-se a Resolução nº 89/2012, que, ao regulamentar a Lei de Acesso à Informação para o Ministério Público da União e dos Estados, dispôs, em seu artigo 7°, inciso XIV, que cada Ministério Público deverá disponibilizar, em seus respectivos sítios eletrônicos, informações de interesse coletivo ou geral que produzam ou tenham sob sua responsabilidade, dentre elas os registros dos procedimentos preparatórios, procedimentos de investigação criminal, inquéritos civis e inquéritos policiais, incluindo o respectivo andamento no âmbito do Ministério Público.

A Resolução nº 89/2012 do CNMP também é omissa quanto ao tratamento aos processos criminais arquivados, o que também não afasta a proteção à intimidade e dignidade do investigado e a necessidade de adequação dos portais de transparência do Ministério Público.

Nesse sentido, a Procuradora-Geral de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, no processo tabularium nº 08191.075427/2021-14, determinou que, havendo disponibilidade técnica, suprima do Portal da Transparência  "consulta processual", os registros nominais de envolvidos em feitos de natureza criminal arquivados.

Portanto, os tribunais e o Ministério Público devem harmonizar com as normas vigentes os seus respectivos serviços de informações processuais penais, de emissão de certidões criminais e de transparência, em observância ao sigilo dos registros criminais, ao espírito da Constituição e à dignidade humana.

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