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Regime especial é mandatório para as profissões regulamentadas

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6 de setembro de 2023, 8h00

Na nossa última coluna, intitulada "Às sociedades profissionais, um regime adequado", demonstramos que, apesar de a PEC da reforma tributária, em trâmite no Senado, ter previsto extensa lista de atividades para as quais será criado um regime específico de tributação mercado financeiro, planos de saúde, parques de diversão, empresas imobiliárias, hotéis, restaurantes, bares, entre outras , as profissões regulamentadas, que, exclusivamente em razão das suas especificidades, foram, desde sempre, submetidas a tratamento diferenciado, não foram contempladas pelo projeto com a previsão de que seriam elegíveis a um regime tributário que as tratasse adequadamente.

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Em seguida à nossa coluna, houve algumas manifestações isoladas, não contrariamente ao constrangedor tamanho daquela lista e aos itens que a compunham, mas adversas à óbvia conclusão de que, em havendo exceções, as profissões regulamentas teriam necessariamente de ser as primeiras contempladas.

Os argumentos trazidos nessas manifestações, longe de nos convencerem, reforçaram ainda mais as nossas conclusões, razão pela qual resolvemos, por mero amor ao debate, retornar ao tema uma vez mais. 

Restringiremos a nossa abordagem a dois aspectos que nos pareceram merecedores de serem retomados, para torná-los ainda mais claros:

– a exatidão dos fundamentos que levaram o principal autor da reforma de 1965, Rubens Gomes de Sousa, a entender que os autônomos e as sociedades profissionais deveriam ser submetidos a um regime de tributação fixa pelo Imposto sobre Serviços (ISS); e

– a natureza falaciosa do argumento de que as sociedades profissionais que atuarem no meio da cadeia não sofrerão qualquer prejuízo ou aumento de carga tributária, tendo em vista que as novas incidências serão integralmente repassadas aos tomadores dos respectivos serviços.

Mas, antes de adentrarmos o exame desses dois aspectos, vale frisarmos que esses problemas tributários que decorrerão da reforma, caso aprovado o projeto na forma em que está, dizem respeito não somente aos escritórios de advocacia, como parecem sugerir aquelas manifestações isoladas a que nos referimos acima, mas a todas as sociedades que tenham por objeto profissões regulamentadas (médicos, dentistas, engenheiros, arquitetos, contadores etc.).

São todas sociedades que se sujeitam a um mesmíssimo tratamento tributário e não privilégio , que lhes impõe o pagamento do ISS fixo, em razão exclusivamente das suas especificidades, entre elas a de serem pessoalmente responsáveis pelos serviços que prestam, o que as diferencia de uma tinturaria, por exemplo, em que somente a pessoa jurídica responde por malpractice, e não os executores dos serviços em si.

É verdade que os advogados são os que mais se posicionam em relação a essa matéria e os que normalmente representam as demais profissões nesse debate. Mas isso decorre exclusivamente das suas especialidades, que lhes permitem ver, com mais clareza, a absoluta irrazoabilidade e a ganância fiscal tsunâmica com que aquelas sociedades serão tratadas com as novas regras.

Feita essa ressalva, vamos agora abordar os dois tópicos que planejamos discutir.

Primeiro tópico: A plena exatidão e constitucionalidade do regime especial atribuído há 55 anos às sociedades profissionais.

Quanto a esse aspecto, há que se ter de início em mente que o maior defensor dessa regra foi, nada mais, nada menos, que Rubens Gomes de Sousa, um dos maiores e mais relevantes doutrinadores de Direito Tributário que este país já conheceu. Esse estupendo jurista foi o principal autor intelectual do anteprojeto do qual resultou a Emenda Constitucional 18/1965 e o Código Tributário Nacional, esses sim, consubstanciadores de uma reforma com "R" maiúsculo, que, de forma disruptiva e inédita, introduziu na nossa legislação um efetivo Sistema Tributário Nacional, extremamente inovador e atual para a época.

Não estamos querendo com isso dizer que Gomes de Sousa esteja imune à prática de equívocos.  Claro que não! Estamos tão somente trazendo à mesa a ponderação de que a crítica às suas teorias deve ser sempre feita, tendo-se em mente a envergadura doutrinária, curricular e histórica desse jurista.

Mas como, enfim, surgiram as regras de tributação fixa do ISS?

O ISS, como se sabe, substituiu o antigo Imposto sobre Indústrias e Profissões (IIP), cuja base de cálculo se evidenciava imprecisa e permitia a sobreposição entre as competências tributárias dos municípios e da União Federal, que, na Constituição Federal (CF) de 1946, associavam-se à tributação da renda, do consumo de mercadorias e das atividades comerciais. O IIP foi criado na CF de 1891, com a sua competência originalmente outorgada aos Estados (posteriormente, transferida aos municípios).

Sim, ao examinar essa evidente sobreposição, o STF, equivocadamente (com a devida e máxima vênia), posicionou-se, naquela prisca era e em relação ao tributo que vigia à época (IIP), pela inexistência de vícios que tornassem imprópria essa dupla incidência do IIP e de tributos como o Imposto de Renda (IR) sobre a mesma base.

Foi exatamente em razão de esse entendimento do STF não se coadunar com a melhor doutrina (da época e atual [1]), que, visando justamente "impedir a reprodução dos vícios econômicos e jurídicos que tornam imperativa a revisão total da situação existente", a EC 18/65 alterou a CF de 1946, para substituir o IIP pelo ISS, de forma a sanar aqueles e outros vícios decorrentes da tributação sobre as indústrias e profissões.

É o que se verifica com clareza da seguinte passagem do Anteprojeto para Reforma da Discriminação Constitucional de Rendas, elaborado pela Comissão de Reforma do Ministério da Fazenda em 1965, nos termos da Portaria n. GB-30, de 27 de janeiro de 1965:

"(…) Dentre as diferentes bases de cálculo ensaiadas para o imposto de indústrias e profissões, subsistiu como praticamente a única, por ser a um tempo a mais produtiva e a mais fácil de administrar, o chamado 'movimento econômico', que outra coisa não é, entretanto, senão a receita bruta da atividade tributada.

Mas, com isso, o imposto de indústrias e profissões converteu-se numa duplicação do imposto federal sobre a renda, em sua forma mais primária e antieconômica, ou mesmo numa espécie de 'adicional' do imposto estadual de vendas e consignações.

É comum, com efeito, o caso de Municípios, dentre os menos desenvolvidos, e portanto menos aptos para manter uma administração fiscal eficiente, cobrarem, a título de imposto de indústrias e profissões, simplesmente uma porcentagem do montante pago ao Estado, pelo mesmo contribuinte, sobre o total bruto de suas vendas.

(…)

Por essa razão, a Comissão entende que o imposto de indústrias e profissões converteu-se num exemplo flagrante daquela interpenetração dos campos tributários privativos, a que de início fez referência, exacerbando assim os defeitos inerentes à sua condição de tributo falho de base econômica real, pois o mero exercício de qualquer atividade – que configura o seu fato gerador – justificará, quando muito, uma presunção de capacidade contributiva, mas nunca fornecerá a medida dessa capacidade.

Justifica-se, por isso, a propositura de sua substituição por um imposto sobre serviços, campo não diretamente coberto por qualquer dos outros impostos previstos na Emenda 'B', e adequadamente utilizável pelo Município, mas, ainda assim, sob as limitações previstas no parágrafo único do art. 16, e destinadas a impedir a reprodução dos vícios econômicos e jurídicos que tornam imperativa a revisão total da situação existente." (IBRE. Reforma da discriminação constitucional de rendas (anteprojeto) v. 6. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas/Comissão de Reforma do Ministério da Fazenda, 1965, p. 32-34 – grifos nossos)

Com fundamento nesse racional, desde a sua criação até os dias atuais, o ISS incide sobre o preço do serviço prestado, mas, também desde o início, sempre ressalvou-se dessa regra a prestação de serviços realizadas sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte.

Estabeleceu-se, neste caso, que o imposto deveria (como ainda deve) ser calculado com base em "alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço e outros fatores pertinentes, não compreendida nestes a renda proveniente da remuneração do próprio trabalho".

A razão de ser desse dispositivo, repita-se, foi eficientemente resumida por Rubens Gomes de Sousa [2], um dos autores do anteprojeto que deu origem ao CTN, da seguinte forma: "(…) A finalidade da ressalva era, evidentemente, evitar que o ISS viesse a confundir-se com o imposto de renda [3] sobre honorários ou salários, como acontecia com o antigo imposto de indústrias e profissões".

Posteriormente, como todos também sabem, por meio do art. 9º, parágrafo 3º, do DL 406/68, essa regra foi estendida às sociedades de profissões regulamentadas, tendo em vista que, como já dito, os seus sócios respondem pessoalmente pelos serviços que prestam. Essas sociedades são, na verdade, mero agrupamento de profissionais liberais que se utilizam das pessoas jurídicas que as compõem como instrumento pelo qual prestam serviços, assumindo responsabilidade pessoal por tudo que fazem.

Por isonomia, portanto, a tributação fixa foi estendida às sociedades profissionais.

A constitucionalidade desse regime especial foi abençoada em, pelo menos, duas ocasiões pelo STF:

(a) na primeira, no RE 236.604-PR, por onze votos a zero repetimos, por onze votos a zero o tribunal deixou absolutamente clara a sua posição de que esse tratamento é condizente com as especificidades das sociedades profissionais e não configura privilégio nem benefício fiscal, tendo, portanto, sido recepcionado pela CF de 1988, por não ferir qualquer dos seus princípios, inclusive o que veda isenções heterônomas;

(b) na segunda, no RE 940.769 , por sete votos a um, a mais alta Corte derrubou todos os cerceamentos inconstitucionais criados por lei municipal para que as sociedades profissionais fizessem jus à tributação fixa; entre eles, destacou-se aquele, o mais esdrúxulo de todos, de que as sociedades que tivessem sido organizadas sob o formato societário de limitada (Ltda.) não fariam jus à tributação diferenciada.

Também no Congresso, projetos de lei (PLs) apoiados e incentivados pelos municípios propuseram a revogação expressa dos dispositivos ora examinados (exemplo desses PLs foram aqueles dos quais resultaram a lei complementar (LC) 116/03, a LC 157/16 e a LC 175/20, fora outros, avulsos, que não foram convertidos em lei).

Em todos esses casos, a matéria foi discutida nas várias comissões que compõem ambas as casas legislativas, e o artigo 9º, §§1º e 3º se manteve, até hoje, em pleno vigor.  Na LC 116/03, inclusive, revogaram-se todos todos os dispositivos do DL 406/68 que tratavam da incidência do ISS, menos o acima referido, que dispunha sobre a tributação fixa.

Ainda assim, os municípios tentaram incrivelmente sustentar a revogação tácita desse dispositivo sobrevivente, o que foi rechaçado com veemência pelas duas turmas do STJ.

Vê-se, portanto, que esse regime especial de tributação concedido às sociedades profissionais resistiu, durante 55 anos, a todos os tipos de críticas e ataques sem fundamento como os que estão ocorrendo agora e sobreviveu, com o apoio expresso tanto dos mais altos tribunais do país (STF e STJ) quanto do Legislativo.

Indiscutível, portanto, a sua constitucionalidade e adequação. E esse fato faz com que voltemos a afirmar que, se houver qualquer exceção às regras de incidência criadas pelo projeto em trâmite no Senado, a relativa às sociedades profissionais terá que vir em primeiro.

Segundo tópico: A natureza falaciosa do argumento de que as sociedades profissionais não sofrerão qualquer aumento de carga porque gerarão créditos aos seus clientes.

Os que costumam tentar suavizar o brutal aumento de carga tributária que as sociedades profissionais sofrerão com a implantação da nova tributação do consumo usualmente argumentam que as que atuam no meio da cadeia não sofrerão qualquer aumento de carga tributária, porque as novas incidências serão, por meio de créditos, integralmente repassadas aos seus clientes, tomadores dos respectivos serviços.

Essa linha de argumentação demonstra absoluta falta de vivência por parte de quem a sustenta, inclusive sobre a forma como se dá o dia a dia da prestação de serviços por sociedades profissionais.

A preocupação com a dicotomia entre a teoria e a prática é absolutamente mandatória quando se está diante da elaboração de novas normas constitucionais. Mais ainda quando essas normas mudam de forma disruptiva a tributação de um subsetor de serviços que é de suma importância para a economia nacional e se posiciona entre os que mais empregam no país.

Não é razoável imaginar que os costumeiros tomadores dos serviços prestados pelas sociedades profissionais (compostas por engenheiros, arquitetos, contadores, administradores etc.), mesmo que se creditem do valor dos novos tributos a serem criados, aceitem de bom grado o aumento de fluxo financeiro que advirá das novas regras.

Os que imaginam ser isso possível certamente não têm talvez pelas funções que exerçam (acadêmicos, funcionários públicos etc.) a experiência de como se dá, na prática, a negociação de honorários profissionais entre prestadores de serviços e seus clientes.

Somente isso justificaria alguém imaginar crível que bastará um contato com o tomador do serviço para lhe dizer que, a partir de tal data, o preço usual será acrescido de 27% a 33% (como chegam a estimar alguns), que já estará tudo certo.

Para os desavisados, e com fundamento em quase quatro décadas de profissão, informamos que o que esses clientes dirão é que esse aumento de fluxo não será admissível, e que o excesso deverá ser inserido na margem dos prestadores, de forma a que o valor total a ser pago seja o mais próximo possível do que se pagava antes.

Isso, para não falar da competição predatória que surgirá daí por parte daqueles menos bem posicionados no mercado, que aceitarão até assumir como custo o valor integral do tributo, para atrair novos clientes.

Há que se entender que as negociações de honorários entre prestadores e tomadores de serviços em regra ocorrem para diminuí-los, e não para aumentá-los. E que a pressão econômica regularmente exercida pelas grandes empresas sobre os profissionais no momento da fixação dos seus preços encontrará forte amparo no incremento do fluxo financeiro decorrente do vertiginoso aumento nominal das alíquotas que essa reforma propiciará para os prestadores de serviços.

Note-se que nem estamos nos referindo a situações em que o downside será muito mais agravado, como, por exemplo, as prestações a pessoas físicas consumidoras finais dos serviços (que não terão o que fazer com créditos), exportadores (cujos créditos serão, no máximo e com sorte, reembolsados pelo Estado, sabe-se lá quando) e, no caso da advocacia, os honorários de sucumbência (situação em que não há a quem os créditos serem repassados). 

São todas situações em que haverá aumento de tributação "na veia"!

Enfim, tudo acima foi dito com o único objetivo de demonstrar que, se há críticas a serem feitas e há muitas , que os esforços sejam direcionados ao debate das demais exceções previstas na PEC, que, com fundamentações fantasiosas, foram contempladas para atender especificidades que, no caso, não existem. E não despendidos na resistência ao ingresso das sociedades profissionais nesse rol, já que, na verdade, são as mais merecedoras dessa atenção.

Temos de debater todos os aspectos que propiciem uma reforma tributária que esteja efetiva e exclusivamente focada na eliminação dos reais entraves do sistema atual.  Deve-se, também, de forma republicana, garantir que a redução da carga tributária de alguns setores não seja feita às custas de outros que, historicamente, sempre representaram o maior sustentáculo econômico deste país.

 


[1] SOUSA, Rubens Gomes de. O Imposto sobre Serviços e as Sociedades Prestadoras de Serviços Técnicos Profissionais. Revista de Direito Público 20/1972, p. 64; TORRES, Ricardo Lobo. Parecer inédito não publicado, de 02.10.2003, apud REZENDE, Condorcet; BRIGAGÃO, Gustavo; SOUZA, Alisson Carvalho. A base de cálculo do ISS devido pelas sociedades profissionais. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.). ISS na lei complementar n. 116/2003 e na Constituição. São Paulo, Manole, 2004. p. 413; ATALIBA, Geraldo. Estudos e Pareceres de Direito Tributário. São Paulo: RT, 1978, Vol. I, p. 116-117; BARRETO, Paulo Ayres. Das alterações promovidas pela Lei do Município de São Paulo nº 17.719/2021 no regime de ISS das sociedades profissionais. In: Questões Polêmicas do Regime Tributário do ISS das Sociedades Profissionais. Alexandre Evaristo Pinto; Gustavo Brigagão; e Paulo Ayres Barreto (Coords.). São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 371; GRECO, Marco Aurélio. ISS de sociedades de advogados e a Lei nº 12.719, de 26 de novembro de 2021, do Município de São Paulo. In: Questões Polêmicas do Regime Tributário do ISS das Sociedades Profissionais. Alexandre Evaristo Pinto; Gustavo Brigagão; e Paulo Ayres Barreto (Coords.). São Paulo: Quartier Latin, 2022, pp. 413-429; SCAFF, Facury Scaff. Alexandre Evaristo Pinto; Gustavo Brigagão; e Paulo Ayres Barreto (Coords.). Da análise da constitucionalidade do art. 13 da Lei nº 17.719, de 26 de novembro de 2021, do Município de São Paulo, que alterou a base de cálculo do ISS das sociedades de advogados. Questões Polêmicas do Regime Tributário do ISS das Sociedades Profissionais. São Paulo: Quartier Latin, 2022, pp. 389/411.

[2] SOUSA, Rubens Gomes de. O Imposto sobre Serviços e as Sociedades Prestadoras de Serviços Técnicos Profissionais. Revista de Direito Público 20/1972, p. 64.

[3] Referida preocupação com a invasão de competências também marcava, por exemplo, a redação original do art. 71 do CTN, com a competência dos municípios em subsidiariedade, para tributar, exclusivamente, o"serviço que não configure, por si só, fato gerador de imposto de competência da União ou dos Estados".

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