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LC 200/2023: oportunidade perdida na revisão do regime de austeridade

Autor

  • Élida Graziane Pinto

    é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

5 de setembro de 2023, 10h27

No último dia 30 de agosto foi editada a Lei Complementar nº 200, que teve por finalidade instituir "regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do país e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico, com fundamento no artigo 6º da Emenda Constitucional nº 126, de 21 de dezembro de 2022, e no inciso VIII do caput e no parágrafo único do artigo 163 da Constituição; e altera a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal)".

À luz do artigo 9º da Emenda 126/2022, o advento do aludido diploma normativo implicou a revogação do teto de despesas primárias dado pela Emenda 95/2016. Tal circunstância trouxe, durante a tramitação do PLP 93/2023 (que deu origem à LC 200/2023), severos constrangimentos para a possibilidade de uma reflexão ampliada sobre a inépcia das estratégias de ajuste fiscal estritamente focados na contenção de despesas primárias.

Spacca
Muito embora a agenda do Executivo federal tenha tentado deslocar parcialmente o foco do ajuste fiscal, para que fosse pautado — em maior ou menor medida — o esforço de aprimoramento da gestão das receitas tributárias; aludida mudança não só tem sido empreendida de maneira muito discreta e lenta, como também está condicionada, desde o seu nascedouro, à revisão dos pisos constitucionais em saúde e educação.

Eis a razão pela qual há mais continuidade do que ruptura hermenêutica no modo como foi concebida essa nova rodada de regime de austeridade fiscal. Seus pressupostos seguem alicerçados em meta de resultado primário e em limite relativamente linear de despesa primária (independentemente dos desafios legados pelo contexto pós-pandemia). A bem da verdade, a margem legalmente autorizada para expansão da ação governamental comporta níveis de oscilação muito estreitos e dependentes da arrecadação estatal.

Conduzida como uma espécie de reforma incremental em face do teto e, antes dele, em relação à Lei de Responsabilidade Fiscal e à desvinculação de receitas da União, a LC 200/2023 deixou de pautar a reflexão qualitativa sobre como custear suficiente e intertemporalmente o conjunto das obrigações que perfazem o tamanho constitucionalmente necessário do Estado brasileiro.

A tônica primordialmente contracionista de tais agendas de ajuste fiscal não está interessada em aprimorar o planejamento governamental, nem almeja prevenir a ocorrência de passivos judicializados, tampouco se preocupa com a existência de filas de espera no acesso a direitos fundamentais que têm a natureza jurídica de despesa obrigatória (seja na seara assistencial, seja na previdenciária).

Subsiste uma apriorística e ontológica interdição à possibilidade de demandar melhor ação estatal se tal empreitada, porventura, implicar concomitantemente expansão de despesa primária. Em face da relação dívida pública do governo geral e produto interno bruto (DBGG/PIB), o pressuposto conceitual do que seria "regime fiscal sustentável" enviesada e necessariamente passa pela contenção e, se possível, redução do numerador, sem que jamais seja questionada a longa trajetória de estagnação do denominador, o que tem empobrecido a população brasileira em valores médios ao longo dos últimos 40 anos.

Eis o contexto em que a realidade brasileira muito se assemelha com aquilo que Yanis Varoufakis, em seu livro "Adultos na sala", chamou de "prisão da dívida", uma vez que regras fiscais se sucedem em renovadas exigências de austeridade fiscal que retroalimentam a iniquidade social e a estagnação econômica, sem que os problemas basilares sejam efetivamente enfrentados e saneados.

Nessa obra, Varoufakis descreve as rodadas de negociação do recém-eleito governo de Alexis Tsipras (partido Syriza), no primeiro semestre de 2015, com os credores internacionais da Grécia, principalmente a Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional). Segundo o autor, o auge dramático da crise grega se deu com o plebiscito de 5 de julho de 2015, no qual os cidadãos tiveram a oportunidade de expressar sua opinião sobre as políticas econômicas e fiscais que estavam sendo negociadas com os credores internacionais.

A rejeição de um novo ajuste da dívida do governo grego com a Troika se sagrou vencedora, mas pouco tempo depois foi francamente deixada de lado e descumprida pelo mesmo governo que havia convocado aquela consulta popular. Teria havido, de certa forma, uma mera manipulação da opinião pública para que a convulsiva rejeição às medidas de austeridade e às condições impostas pelos credores pudesse ser formalmente canalizada e logo adiante descartada.

As regras fiscais impostas pela Troika ao governo grego, muito embora sejam um exercício assimétrico e exógeno de poder dos credores internacionais, parecem trazer consigo uma dimensão semelhante de leitura moral da noção de "austeridade fiscal". Para os ortodoxos que autodenominam como "Adultos na sala", os cidadãos trariam para o ciclo democrático demandas que os políticos, de forma supostamente irresponsável e infantil, seriam incapazes de gerenciar.

Regras draconianas de ajuste fiscal seriam necessárias para resguardar a garantia de "sustentabilidade" da dívida pública, ainda que os diversos e subsequentes acordos de renegociação se revelassem, no contexto europeu do pós-crise de 2008, francamente inexequíveis.

Voltando à realidade brasileira, tal como os cidadãos gregos tragicamente imersos na prisão da dívida com a unificação da política monetária em torno do euro, as promessas civilizatórias da Constituição de 1988 supostamente precisariam ser interditadas como francamente infantis e, portanto, suscetíveis de serem relegadas ao estágio de pura e simples inexecução.

Desse modo, nosso país experencia — há mais de três décadas — um crônico tensionamento entre estabilização monetária, de um lado, e efetividade dos direitos sociais inscritos no pacto constitucional civilizatório, de outro. Tal contexto explica porque regras fiscais contracionistas têm sido superpostas ao longo do tempo, para impor um prolongado e alegadamente inevitável regime de austeridade fiscal, o qual se renovaria em rodadas cada vez mais gravosas de exigências normativas, ainda que essas acabassem se revelando como fortemente indutoras de estagnação econômica e de iniquidade social.

Assim como as negociações entre o governo grego e a Troika literalmente expuseram a inexistência de compromisso com qualquer filtro de legitimidade democrática; a revogação do teto de despesas primárias, tal como empreendida pela Lei Complementar 200/2023, revela igualmente uma oportunidade perdida de revisão do regime de austeridade fiscal.

Na condição de ex-Ministro das Finanças do seu país, Varoufakis descreve como, ao longo do tempo, a Grécia ficou presa em uma série de acordos e emendas que superavam os ajustes anteriores em termos de exigências de austeridade. Isso criou um ciclo onde as medidas de austeridade aumentavam a pressão sobre a economia e a sociedade gregas, muitas vezes levando a uma estagnação econômica. O livro "Adultos na sala" traz o testemunho vívido de como negociações de ajuste fiscal frequentemente ocorriam em um contexto em que as vozes dos cidadãos gregos eram limitadas, levando a uma perda de densidade democrática. Tal como o Brasil, a Grécia tem estado sobrecarregada com elevados encargos de sua dívida, o que retroalimenta e agrava suas crises econômico-sociais.

No contexto da Lei Complementar 200/2023, o questionamento acerca das despesas financeiras também teria sido relevante, a despeito de sequer ter vindo à tona, como deveria, caso tivesse havido uma real e efetiva preocupação com a noção de "trajetória sustentável da dívida", na forma do inciso VIII do artigo 163 da Constituição brasileira.

Fato é que, ao longo do tempo, a austeridade fiscal — tratada como um fim em si mesmo — enseja um círculo vicioso de desigualdades crescentes, em que resta limitado o acesso da maioria da população a serviços públicos de qualidade, algo tido como inevitável pelos "Adultos na sala" que prescindem de balizas democráticas e pouco se importam com preceitos constitucionais civilizatórios.

Além disso, a austeridade também tende a enfraquecer a democracia, uma vez que as escolhas orçamentárias são frequentemente feitas em detrimento do debate público e do envolvimento dos cidadãos.

Tal como começa a se evidenciar com mais clareza no Brasil, a partir do debate da tributação sobre fundos exclusivos e offshores, a concentração de riqueza no topo da sociedade traz severas implicações na esfera política. O poder econômico concentrado pode influenciar a política de maneira desproporcional, levando a decisões que favorecem os interesses dos mais ricos em detrimento da maioria. Isso agrava o risco de uma erosão da democracia, onde a representação e a participação efetiva dos cidadãos podem ser comprometidas.

Enfrentar a desigualdade, restaurar a confiança na democracia e encontrar maneiras de equilibrar os interesses dos agentes superavitários da economia com as necessidades sociais dos cidadãos mais vulneráveis são questões cruciais que muitos países estão tentando abordar, sem que tenham sido obtidos quaisquer avanços dignos de registro. Aliás, esse é talvez o desafio mais premente das democracias em todo o mundo desde o desvendamento da extrema desigualdade pelas crises de 2008 e da Covid-19.

Cumpre reconhecer que políticas econômicas e sociais são altamente complexas e muitas vezes são moldadas por uma variedade de fatores políticos, econômicos e sociais. O debate sobre essas questões continua sendo uma parte central das discussões políticas em muitos lugares, à medida que as sociedades buscam encontrar um equilíbrio entre a eficiência econômica e a justiça social. É preciso questionar, porém, que as condutas de tomar a austeridade como um fim em si mesmo e de apenas resguardar a primazia do controle inflacionário são escolhas políticas que tendem a favorecer os mais ricos no conflito distributivo e, com isso, potencialmente são capazes de mitigar a democracia. Dito de forma ainda mais direta, a austeridade monetarista induz e acaba por legitimar a plutocracia.

Seja na crise da dívida da Grécia, seja no cipoal de regras fiscais que se sucedem freneticamente no Brasil, as políticas de austeridade geralmente envolveram cortes nos gastos públicos e, em alguns casos, aumento de impostos incidentes primordialmente sobre os mais pobres. Essas medidas historicamente afetaram desproporcionalmente os cidadãos de baixa renda, ao mesmo tempo em que preservaram os interesses dos mais ricos. Ao longo do tempo, tal padrão de austeridade fiscal acentuou as desigualdades econômicas, concentrando ainda mais a riqueza nas mãos de uma extremamente reduzida e poderosa elite econômica.

Vale lembrar também que a redução dos gastos públicos tende a impor cortes nos serviços públicos, como saúde, educação e assistência social. Os mais ricos têm recursos para acessar serviços privados de alta qualidade, enquanto os mais pobres, via de regra, permanecem presos em sistemas públicos subfinanciados e cada vez mais precários.

Todas as dimensões acima expostas explicam por que consideramos que a LC 200/2023, ao deixar de debater estruturalmente o regime de austeridade fiscal, incorreu no mesmo erro do plebiscito de julho de 2015 na Grécia. Ambos os eventos históricos representaram uma espécie de desperdício de oportunidade em pautar o peso desproporcionalmente alto das despesas financeiras sobre o orçamento público de cada qual dos países em decorrência dos encargos da dívida pública. Com isso, houve, mais uma vez, o adiamento da reflexão coletiva sobre o conflito distributivo por meio de regras fiscais francamente ineptas e temporalmente datadas.

Contudo, há um limite para essa estratégia de apenas postergar o problema, mediante novas rodadas de renegociação da Grécia com a Troika ou mediante sucessivas regras fiscais, sejam elas colocadas dentro ou fora da Constituição brasileira.

A austeridade, quando percebida como injusta, tende gerar descontentamento social e político. Em termos internacionalmente observáveis, tal percepção evolui para protestos, manifestações e até mesmo ocasiona o puro e simples enfraquecimento da confiança nas instituições democráticas. O descontentamento resultante pode ter implicações na estabilidade política e social, como aliás, o Brasil tem experenciado desde as manifestações de junho de 2013, que acabaram se deteriorando ao ponto de culminarem em absurdas tentativas de erosão democrática, tal como as empreendidas em 8 de janeiro deste 2023.

Em última análise, quando políticas de austeridade levam a uma crescente concentração de riqueza e poder nas mãos de uma elite econômica, isso pode minar a própria essência da democracia. Uma democracia saudável deve ser caracterizada pela representação equitativa dos interesses de todos os cidadãos, e a concentração de poder econômico excessiva pode corroer essa representação. Não há como ocultar tanto cinismo fiscal por meio de regras superpostas para postergar esse impasse indefinidamente…

Como uma espécie de criança rebelde, Varoufakis denunciou a iniquidade grega em seu livro ora recomendado. Nossa insolência infantil aqui nos permite formular a indagação nuclear que a LC 200/2023 deixou de empreender em torno da relação entre juros desproporcionalmente altos e tributação aviltantemente regressiva no Brasil. Qual a relação entre ambos? Seriam faces da mesma moeda?

Como muitos são os países imersos em situação de interdição fiscal das suas instituições democráticas e das suas balizas constitucionais civilizatórias, "Adultos na sala" é uma obra que merece ser trazida como alerta reflexivo, inclusive para a recém-editada LC 200/2023 no Brasil… Afinal, até quando suportaremos pueril e ingenuamente a renovação de engodos fiscais que tendem a erodir nosso pacto social de 1988 e a comprometer a nossa tão frágil democracia?

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  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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