Como a biodiversidade vem sendo tratada pelo Poder Judiciário
2 de setembro de 2023, 17h33
Em artigo anterior, mencionei a biodiversidade, sua importância e como os humanos a vêm tratando e tentando protegê-la desde o alvorecer da consciência jurídica ambiental; mencionei também a Convenção da Diversidade Biológica ou Convenção da Biodiversidade, promulgada no Brasil pelo Decreto nº 2.519/98, e os variados diplomas internacionais dela decorrentes, com programas e metas.1 Relacionei depois a extensa legislação nacional que cuida da biodiversidade, direta ou indiretamente2.
Hoje, veremos como a biodiversidade vem sendo tratada em juízo. Na área penal, Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas e, em cuidadoso trabalho3, delinearam que o bem jurídico protegido é o meio ambiente em toda a sua plenitude, que afeta a comunidade como tal de forma direta ou indireta, mediata ou imediata, um bem jurídico de todos estreitamente vinculado às necessidades existenciais dos sujeitos (fls. 39, citando Maurício Libster); e tipificação na LF n 9.605/98 do crime ambiental como um crime de perigo e não mais de dano, como ocorria antes (pág. 40). Disso decorre a reduzida aplicação do princípio da insignificância) na seara ambiental, como se nota nos julgados do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça:
[…] Dessa forma, o aproveitamento dos recursos naturais também deverá ser regulamentado pelo Direito Internacional (tratados internacionais), tendo como finalidade a regra protetiva do art. 225 da Constituição Federal, pois a exploração dos recursos biológicos e minerais pode essencialmente causar problemas de poluição e degradação, e, consequentemente, sua proteção atende ao princípio da precaução e ação preventiva. A necessidade de preservação dos recursos naturais e, consequentemente, a manutenção do equilíbrio mínimo necessário ao meio ambiente estarão sempre a exigir uma adaptação dos conceitos tradicionais do Direito – principalmente, o direito de propriedade – para fins de aplicação, pois, como bem ressaltado por PASCALE KROMAREK, existe a necessidade de uma adaptação de certos conceitos para o combate à poluição da água e do ar. […] Como se depreende do excerto transcrito, as circunstâncias do fato não evidenciam a alegada atipicidade da conduta, sendo possível diagnosticar ao menos perigo de lesão (potencial, em termos de risco) ao bem jurídico tutelado, na medida em que a conduta do agravante (pesca em local proibido mediante uso de petrechos não permitidos), tem inegável potencial de dano ao meio ambiente. Nesse contexto, não há espaço para a incidência do denominado princípio da insignificância. Ainda, a resposta estatal revela-se proporcional e suficiente para reprovação da conduta imputada ao agravante, sobretudo se considerado que a pena privativa de liberdade aplicada foi substituída por restritivas de direitos. […]4 5
Diversas decisões protegem a fauna e a flora, afirmam a prevalência das normas protetivas do Código Florestal e das áreas protegidas e reforçam a necessidade de uma atuação consistente da administração e dos órgãos de fiscalização:
[…] 6. A Resolução CONAMA nº 500/2020, objeto de impugnação, ao revogar normativa necessária e primária de proteção ambiental na seara hídrica, implica autêntica situação de degradação de ecossistemas essenciais à preservação da vida sadia, comprometimento da integridade de processos ecológicos essenciais e perda de biodiversidade, assim como o recrudescimento da supressão de cobertura vegetal em áreas legalmente protegidas. […]6
A proteção da biodiversidade na área urbana é tema controvertido; discute-se se a função ambiental ainda perdura em meio à interferência decorrente da ocupação humana. O Superior Tribunal de Justiça, rigoroso na proteção ambiental, entende que são questões a ser tratadas no caso concreto, mas tendo sempre em vista a proteção do ambiente:
6. A antropização pode, às vezes, acarretar a perda da função ambiental em Áreas de Preservação Permanente, a partir das margens de cursos d'água naturais, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, o que ensejou a alegação de proprietários ou empreendedores de não mais ser viável a sua recomposição/restauração. Contudo, a disciplina da função ambiental prevista no inciso II do artigo 3º da Lei n. 12.651/2012 informa que remanesce função ambiental na Área de Preservação Permanente e o dever de recuperação in natura quando esta possa, alternativamente e em tese: (a) preservar os recursos hídricos, (b) a paisagem, (c) a estabilidade geológica e a biodiversidade, (d) facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, (e) proteger o solo e (f) assegurar o bem-estar das populações humanas. Assim, havendo ao menos um dos elementos a caracterizar a proteção ao meio ambiente na Área de Preservação Permanente ou, ainda que não seja observado qualquer deles, mas seja tecnicamente possível a recuperação in natura da área para que ela possa readquiri-los para fins de restabelecimento da função ambiental no local, não se pode dizer que ocorreu o seu aniquilamento como efeito da antropização. Em síntese, se há um dos elementos ou sendo possível restabelecê-lo, tem-se que o fio condutor da proteção ambiental não se rompeu. Os esclarecimentos agora feitos não alteram a tese fixada no Tema 1010/STJ. O exame de eventual perda absoluta e tecnicamente irreversível in natura da função ecológica decorrente de suposta antropização em Área de Preservação Permanente de qualquer curso d'água, perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, está contido no campo das situações pontuais. São hipóteses que devem ser tratadas, caso a caso, pelas instâncias ordinárias, à luz da Súmula 613/STJ (vedação do fato consumado) e nos estritos limites e disciplina do Código Florestal, da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 6.938/1981) e dos princípios reitores do Direito Ambiental.7
O mesmo rigor, no entanto, não tem sido aplicado na posse de animal silvestre, usualmente aves ou pequenos animais; tem-se entendido que a longa permanência com humanos e o vínculo afetivo justifica a devolução do animal apreendido, contrariando a posição dos órgãos técnicos e a defesa da biodiversidade acima mencionada e colocando o interesse humano à frente do interesse da natureza:
5. No que atine ao mérito de fato, em relação à guarda do animal silvestre, em que pese à atuação do Ibama na adoção de providências tendentes a proteger a fauna brasileira, o princípio da razoabilidade deve estar sempre presente nas decisões judiciais, já que cada caso examinado demanda uma solução própria. Nessas condições, a reintegração da ave ao seu habitat natural, conquanto possível, pode ocasionar-lhe mais prejuízos do que benefícios, tendo em vista que o papagaio em comento, que já possui hábitos de ave de estimação, convive há cerca de 23 anos com a autora. Ademais, a constante indefinição da destinação final do animal viola nitidamente a dignidade da pessoa humana da recorrente, pois, apesar de permitir um convívio provisório, impõe o fim do vínculo afetivo e a certeza de uma separação que não se sabe quando poderá ocorrer.8
Em sentido diverso:
Mandado de Segurança. Monte Alto. AIA nº 20180717004111-1 de 17-7-2018. Manter em cativeiro quatro espécimes da fauna nativa com anilhas irregulares. Três papa-capins. Um pintassilgo. Suspensão das atividades. Apreensão das aves e gaiolas. Multa. Depósito das aves apreendidas. – 1. Depósito. Aves. O depósito ou guarda das aves poderia ser deferido ao impetrante caso demonstrada a impossibilidade das destinações previstas no § 1º do art. 25 da LF nº 9.605/98 (habitat natural, jardins zoológicos, fundações ou entidades assemelhadas, para a guarda e cuidado sob a responsabilidade de técnicos habilitados) (Resolução CONAMA nº 457/13, que dispõe sobre a guarda e depósito provisórios de animais silvestres apreendidos ou resgatados pelos órgãos ambientais), demonstração aqui inexistente. A jurisprudência tem feito uma leitura flexível da lei e do regulamento no caso dos psitacídeos, não ameaçados de extinção e que de alguma forma convivem bem com os humanos; mas de aves dessa família não se tratam os animais objeto destes autos, que não desenvolvem tal relação especial. – 2. Depósito. Aves. São duas questões a considerar. Uma, apesar dos vários anos vivendo na residência do impetrante, as aves são animais silvestres que conservam essa natureza: 'Na natureza passam grande parte do dia procurando alimento, voando longas distâncias, alimentando-se na copa das árvores e interagindo umas com as outras. Em cativeiro esta possibilidade de interagir com o meio ambiente e com membros do bando não existe, tornando a vida do animal um permanente tédio'. Outra, a origem das aves é desconhecida (embora o impetrante seja criador amador e devesse saber das irregularidades das anilhas ao comprar as aves de terceiros) e são as pessoas de boa-fé, como o impetrante, que indiretamente sustentam o tráfico de animais silvestres, o terceiro comércio ilegal mais rentável no mundo, e isso não pode ser ignorado. – 3. Valor prevalente. Cabe ao juiz decidir se o valor relevante é o bem-estar do impetrante e seus familiares, que se respeita, ou o bem-estar das aves, que devem ser devolvidas ao convívio com os de sua espécie para que volte a ser, digamos assim, aves, e não a companhia de humanos. Nos termos da lei e da vivência de uma Câmara especializada como esta há que prevalecerb o interesse maior da fauna silvestre; e somente a demonstração da inadequação da entidade de destino, que não foi demonstrada, ou do sofrimento das aves no novo ambiente, que só será entrevisto depois da entrega, poderia levar a outra solução. — Segurança concedida. Recurso oficial provido.9
Conforme mencionado no REsp nº 1.797.175-SP, "é necessário sempre […] sustentar a dignidade da própria vida de um modo geral, ainda mais numa época em que o reconhecimento da proteção do ambiente como valor ético-jurídico fundamental indicia que não mais está em causa apenas a vida humana, mas a preservação de todos os recursos naturais, incluindo todas as formas de vida existentes no planeta, ainda que se possa argumentar que tal proteção da vida em geral constitua, em última análise, exigência da vida humana e, acima de tudo, da vida humana com dignidade" (SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: Constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente, 5. ed., RT, p. 91-92, 2017). Segundo a doutrina especializada, a própria ideia de um tratamento não cruel dos animais deve buscar o seu fundamento não mais na dignidade humana ou na compaixão humana, mas sim na própria dignidade inerente às existências dos animais não humanos". Esse é o desafio dos tribunais: avançar na preservação da biodiversidade frente à pressão incessante da atividade econômica e do interesse social dos humanos.
1 ConJur – Nós humanos precisamos das outras espécies? 10-6-2023
2 https://www.conjur.com.br/2023-jul-22/protecao-juridica-internacional-nacional-biodiversidade.
3 VLADIMIR PASSOS DE FREITAS e GILBERTO PASSOS DE FREITAS, ‘Crimes contra a Natureza’, 9ª Ed. RT, São Paulo, 2012.
4 Celso Sonza Monteiro v. Ministério Público-PR, AgRg no RO-HC nº 221.292-PR, STF, 1ª Turma, 28-11-2022, Rel. Alexandre de Moraes. No mesmo sentido: HC nº 189.161-AgR-SP, 1ª Turma, 22-2020, Rel. Roberto Barroso; RHC nº 125.566-PR, 2ª Turma, 26-10-2016, Rel. Dias Toffoli: “6. Nesse contexto, não há como afastar a tipicidade material da conduta, tendo em vista que a reprovabilidade que recai sobre ela está consubstanciada no fato de o recorrente ter pescado em período proibido utilizando-se de método capaz de colocar em risco a reprodução dos peixes, o que remonta, indiscutivelmente, à preservação e ao equilíbrio do ecossistema aquático”; AgRg-HC nº 150.147-RS, 2ª Turma, 14-4-2019, Rel. Celso de Mello.
5 No mesmo sentido é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça: AgRg no REsp nº 1.845.406-SC, 6ª Turma, 14-8-2023, Rel. Rogério Schietti; AgRg no HC nº 581.179-SC, 6ª Turma, 12-6-2023, Rel. Rogério Schietti; AgRg no HC nº 733.585-SC, 5ª Turma, 14-6-2022, Rel. Joel Paciornik; e do Tribunal de Justiça de São Paulo: ACrim nº 1500525-44.2121.8.l26.0430, 4ª Câmara Criminal, 28-8-2023, Rel. Luis Soares de Mello; ACrim nº 1501110-76.2020.8.26.0642, 16ª Câmara Criminal, 7-7-2023, Relo. Marcos Zilli.
6 ADPF nº 748-DF, STF, Plenário, 23-5-2022, Rel. Rosa Weber. A decisão declarou a inconstitucionalidade da Resolução CONAMA nº 500/20, que revogara as Resoluções CONAMA nº 284/01, 302 e 303/02.
7 ED no REsp nº 1.770.760-SC, STJ, 1ª Seção, 23-11-2022, Rel. Benedito Gonçalves. Ver também: AC nº 2196384-67.2021.8.26.0000, TJSP, 1ª Câmara Ambiental, 18-1-2022, Rel. Torres de Carvalho; 1003079-19.2019.8.26.0126, TJSP, 1ª Câmara Ambiental, 17-6-2021, Rel. Ruy Cavalheiro.
8 Resp nº 2.797.175-SP, STJ, 2ª Turma, 21-3-2019, Rel. Og Fernandes (papagaio). Afastando a apreensão do animal: AC nº 1031913-71.2018. 8.26.0577, 2ª Câmara Ambiental, 6-5-2022, Rel. Paulo Alcides (sagui). Mantendo a apreensão: AC nº 1015993-8-.2020.8.26.0482, 1ª Câmara Ambiental, 6-10-2021, Rel. Ruy Cavalheiro (papagaio).
9 AC nº 1003648-44.2018.8.26.0291, TJSP, 1ª Câmara Ambiental, 1-8-2019, Rel. Torres de Carvalho (aves: três papa-capim e um pintassilgo).
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