Opinião

Recente reforma do direito e do processo penal italiano

Autor

  • Andrea Marighetto

    é advogado doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália) e doutor em Direito summa cum laude pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

31 de outubro de 2023, 12h18

O Conselho de Ministros (CdM) e o Parlamento italiano aprovaram a reforma da Justiça Penal da Itália, que prevê —  particularmente —  (i) a ab-rogação do crime de abuso de autoridade (abuso d'ufficio), (ii) a limitação sobre o uso das intercepções telefônicas, (iii) limitações à apelação e ao recurso promovidos por parte do Ministério Público, (iv) a redefinição do crime de tráfico de influencias ilícitas e (v) a reformulação acerca a aplicação da prisão cautelar.

A intervenção pretendida é quase cirúrgica em relação às normas específicas do Código Penal e de Processo Penal. E foi obtida por meio do anteprojeto de lei aprovado pela unanimidade do Conselho de Ministros em reunião de 15 de junho deste ano, com base na proposta do ministro da Justiça, Carlo Nordio, e assinada pelo presidente da República cinco dias depois após aprovação por parte do Parlamento (Reforma Nordio).

Spacca
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É interessante observar que dentro das demais modificações, duas específicas chamaram mais a atenção: (i) a abrogação do artigo 323 do CP com o consequente cancelamento do abuso d'autoridade (abuso d'ufficio); e (ii) a nova normativa que regulamenta, de forma mais estrita, a publicação do conteúdo das interceptações durante a fase das investigações preliminares (indagini preliminari), mesmo após de ter entrado na disponibilidade do investigado.

Pela reforma, o conteúdo poderá ser divulgado unicamente se inserido especificadamente na motivação de um procedimento, como por exemplo uma medida cautelar. Os críticos, porém, alertam sobre o risco concreto que muitas interceptações — mesmo que de importante relevância — permaneçam totalmente ignoradas e (ou) ocultadas à opinião pública.

A abrogação do crime do abuso d'ufficio — como acima destacado — representa com certeza a intervenção mais relevante. No especifico, o texto do artigo 323 Código Penal estabelecia que:

"1. Com exceção de quando o fato constitui crime mais grave, o funcionário público ou encarregado de publico serviço que, no exercício das suas funções ou serviço, violar a lei ou o regulamento, ou se abster na presença de um interesse próprio ou de parente próximo ou nos outros casos previstos, obter dolosamente vantagem pecuniária injusta para si ou para outrem ou causar dano injustificado a outrem é punido com pena de prisão de um a quatro anos.
2. A pena é agravada nos casos em que a vantagem ou prejuízo seja de natureza particularmente grave." 
[1] (tradução livre)

A ratio do crime de abuso de autoridade era encontrado na própria necessidade de tutelar o bom andamento, a eficiência e a imparcialidade da Administração Pública, além da transparência da ação administrativa, de acordo e em linha com quanto previsto pelo artigo 97 da Constituição, que estabelece no 2º parágrafo:

 "Os cargos públicos são organizados de acordo com o disposto na Lei, de forma a garantir o bom funcionamento e a imparcialidade da administração" [2] (tradução livre), de forma que não sejam criadas assimetrias ou violações ao direito de igualdade dos cidadãos frente à Administração Pública [3]

Em relação à segunda grande alteração, a redefinição do crime do tráfico de influências ilícitas (traffico di influenze illecite), como previsto pelo artigo 346-bis do Código Penal que — na versão novamente proposta — prevê que (i) as relações entre mediador/intermediário e Oficial Público devem ser utilizadas concretamente (não unicamente "vangloriadas") e devem ser existentes (não unicamente "asseridas"); (ii) as relações devem ser utilizadas "intencionalmente"; (iii) a utilidade dada ou promissa ao mediador/intermediário deve ser econômica; (iv) o dinheiro ou outra utilidade deve ser data/prometida para remunerar o sujeito público ou para fazer ao mediador/intermediário uma mediação ilícita (da qual é dada uma definição normativa); (v) o tratamento sancionatório é agravado e o mínimo é estabelecido de 1 ano a 1 ano e 6 meses.

A norma literalmente estabelece (tradução livre):

"Qualquer pessoa, salvo nos casos de cumplicidade nos crimes referidos nos artigos 318, 319, 319 ter e nos crimes de corrupção referidos no artigo 322 bis , explorar ou vangloriar-se de relações existentes ou alegadas com funcionário público ou responsável de serviço público ou um dos outros assuntos referidos no artigo 322 bis, faça com que sejam dados ou prometidos indevidamente dinheiro ou outros benefícios, a si ou a terceiros, como preço da sua mediação ilícita para com um funcionário público ou responsável por um serviço público ou uma das demais matérias referidas no artigo 322 bis, ou para remunerá-lo relativamente ao exercício das suas funções ou poderes, é punido com pena de prisão de um ano a quatro anos e seis meses. A mesma pena se aplica a quem dá ou promete indevidamente dinheiro ou outros benefícios. A pena é aumentada se a pessoa que indevidamente fizer com que dinheiro ou outros benefícios sejam dados ou prometidos a si ou a terceiros tenha a qualidade de funcionário público ou responsável por serviço público. As penas também são aumentadas se os factos forem cometidos em relação ao exercício de atividade judicial, ou para remunerar o funcionário público ou o responsável por um serviço público ou um dos outros assuntos referidos no artigo 322bis em relação ao desempenho de ato contrário aos deveres oficiais ou de omissão ou atraso em ato de seu cargo. Se os factos forem particularmente tênues, a pena é reduzida." [4]

Outras alterações abrangem o próprio código de processo penal (CPP) no que relevam as interceptações de conversações e comunicações.

A reforma prevê que seja de fato ampliada a proibição de publicação do conteúdo das interceptações, que portanto será consentida unicamente quando o conteúdo é reproduzido pelo juiz na motivação do ato judiciário ou no próprio debate processual (no dibattimento).

A ratio dessa limitação deriva da exigência de tutela da privacidade dos cidadãos, que encontra previsão no próprio artigo 27, 2º parágrafo, da Constituição, que estabelece que há a se considerar todos inocentes até sentença definitiva de condenação. Da mesma forma, a reforma prevê a proibição de inserir nos verbais de interceptação os dados relativos aos sujeitos diferentes das partes sempre que resultem relevantes aos fins das investigações. E proíbe ao juiz de adquirir as gravações e os verbais de interceptação que abrangem sujeitos diferentes das partes, sempre que não seja demonstrada a relevância.

Outra importante norma direita a tutela a privacidade dos investigados é representada da proibição para o Ministério Publico de indicar na demanda de aplicação de medida cautelar, com relação às conversações interceptadas, os dados pessoais dos sujeitos diversos das partes, salvo que isso seja indispensável para a exposição.

Todas as medidas da reforma se inserem — pelo relatório de justificação — em um mais amplo projeto que "interessa" diretamente o Direito Penal e Processual penal como todo, cuja ratio é a de querer eliminar do ordenamento jurídico — principalmente — a disposição [crime de abuso de autoridade ou abuso d’ufficio] considerada mais relevante aos fins dos efeitos da assim chamada "síndrome da assinatura" — principalmente — em relação à autorização dos procedimentos de licitação para a realização de obras publicas e o desenvolvimento de determinadas áreas.

Por síndrome da assinatura doutrina e jurisprudência se referem ao fenômeno em que o funcionário publico sofra qualquer forma de "medo" e (ou) "particular e excessiva atenção" em assinar atos autorizativos, assinações ou qualquer documentos que comporte  formas de responsabilidade e (ou) despesas publicas, temendo de ser acusados ou investigados por parte do Ministério Publico em mérito à legitimidade e à responsabilização pelo erário da própria operação econômica. É, outrossim, importante evidenciar também a visão da doutrina e jurisprudência que individua as causas da síndrome da assinatura na própria falha de funcionamento da cadeia de comando que define os poderes de controle de legalidade dentro do exercício de funcionamento do aparado administrativo.

Por isso, além destas considerações, entendemos que a discussão sobre a própria ab-rogação do abuso d'ufficio haja a se colocar em um contesto mais amplo e complexo. 

Por meio desta dura e decisiva intervenção que prevê principalmente a ab-rogação da própria factispécie criminosa do abuso d'ufficio, o governo tenta atribuir aos funcionários públicos e aos políticos uma forma de "proteção" contra a paralisação da Administração Pública a causa do medo que os administradores locais possuem em relação à autorização de obras, entre outras.

Pelo ministro Carlo Nordio, a atual configuração do crime de abuso de autoridade (abuso d'ufficio) limita o agir do funcionário público e da Administração em si. Em outras palavras, muitas obras resultam obstaculizadas a causa desta previsão normativa que cria este fenômeno chamado de síndrome da assinatura.

E que esta factispécie criminosa tenha sida questionada várias vezes é demonstrado pelo fato que o crime de abuso d'ufficio há sido mudado cinco vezes em 90 anos.

Pelo ministro Nordio, a reforma, portanto, concretiza a mudança garantista aos citados institutos de natureza penal substancial e processual: (i) a ab-rogação do abuso de autoridade (abuso d'ufficio) se justificaria sobretudo pelas poucas sentenças de condenação em sede Judiciaria frente à alta demanda de processos criminais (a maioria dos quais teriam terminados com sentença de absolvição); (ii) a limitação no uso das interceptações seria justificada na ausência de violações das regras sobre o tratamento dos dados pessoais, assim como confirmado pela própria autoridade a tutela da privacidade (garante da privacy).

Inútil destacar como as alterações aos Códigos Penal e de Processo Penal, assim como as argumentações aportadas, provocaram muitas criticas in primis próprio por parte da magistratura.

Em particular, a Associação Nacional dos Magistrados (ANM) evidencia como a ab-rogação (literalmente chamam de abolição) do crime de abuso de autoridade (abuso d'ufficio) se coloca em contrasto com o endereço politico perseguido internacionalmente, que consiste no reforço dos instrumentos de prevenção e repressão da corrupção e expõe a Itália ao risco de procedimentos de infração [5].

Em relação ao tráfico de influência, a ANM alerta sobre riscos de render lícitos determinados comportamentos perigosos para formação de decisões da Administração Pública, suscetíveis de "poluir" o processo de decisão em relação aos diferentes interesses envolvidos [6]. Ainda, a ANM evidencia dificuldades na atuação do controle do juiz sobre a iniciativa cautelar e o eventual problema de ilegitimidade constitucional sobre a limitação do poder de apelação por parte do Ministério Publico [7]

É, de qualquer forma, importante lembrar que a sustentar a necessidade de mudança e (ou) alteração da previsão normativa há sido consequência de um tanto antigo mas quanto atual debate entre magistrados e políticos, que consideram o abuso d'ufficio: do lado politico, qual instrumento utilizado instrumentalmente pelos opositores para denunciar até temerariamente um politico, para acionar assim o inexorável mecanismo da maquina investigativa da Justiça capaz — quando utilizada de forma abusiva ou instrumental — de arruinar e (ou) comprometer — só pelo fato de aparecer publicamente o objeto de determinadas investigações — o bom nome de qualquer cidadão comum e ainda mais o do próprio profissional da vida politica; do lado judiciário, qual indicador ou crime-espia.

De fato, pela magistratura, a presença do abuso d'ufficio é verdadeiro sinal de alarme, em quanto o mesmo [abuso d’ufficio] é apto a esconder factispécie criminosas de natureza mais grave, como — entre as demais — a associação a delinquir de natureza mafiosa, etc.

O debate sobre a atual reforma penal — por alguns garantista demais, ao ponto de 'reprimir" a atividade investigativa da magistratura — lembra os debates ainda atuais sobre o fenômeno italiano de Tangentopoli (ou mãos limpas), e a forte crítica de uma parte da política contra a magistratura,  para lembrar como eram utilizados certos poderes investigativos de indiciar e (ou) submeter a custodia cautelar (prisão) os investigados para obter uma confissão e (ou) colaboração com as autoridades de Justiça.

Em particular, se pense ao forte impacto midiático dos interrogatórios Judiciários e da aplicação de medidas cautelares. É possível observar que criaram-se assimetrias (talvez verdadeiras rupturas) entre Poderes do Sistema Democrático de Direito: não unicamente entre política e magistratura, mas também dentro da própria magistratura.

Sinal que opiniões e movimentos — mesmo que em alguns casos exasperadamente "justicialistas a qualquer custo" — tiveram importância determinantes na sociedade, juntamente ao desenvolvimento da ação judiciaria.

O debate sobre "o que aconteceu" durante estas essas fases necessariamente provocou e provoca discussões e propostas atuais com a finalidade de querer "curar" essas assimetrias e rupturas entre Poderes, assim como — no caso da Itália —  descrito muito claramente pelo recente artigo "A guerra dos 30 anos entre magistrados e politica" [8].

 

 


[1] Cf. art 323 CP em italiano: “Salvo che il fatto non costituisca un più grave reato, il pubblico ufficiale o l’incaricato di un pubblico servizio che, nello svolgimento delle funzioni o del servizio, in violazione di norme di legge o di regolamento, ovvero omettendo di astenersi in presenza di un interesse proprio o di un prossimo congiunto o negli altri casi prescritti, intenzionalmente procura a sé o ad altri un ingiusto vantaggio patrimoniale ovvero arreca ad altri un danno ingiusto è punito con la reclusione da uno a quattro anni. La pena è aumentata nei casi in cui il vantaggio o il danno hanno un carattere di rilevante gravità”.

[2] Cf. art 97 Costituzione em italiano: “I pubblici uffici sono organizzati secondo disposizioni di legge, in modo che siano assicurati il buon andamento e l'imparzialità dell'amministrazione”.

[3] Cf. AA.VV., Codice penale, I, T. PADOVANI, (a cura di), Milano, 2014; ANTOLISEI F., Manuale di diritto penale, Parte speciale, II, Milano, 2003; CONTIERI E., (voce) Abuso innominato d'ufficio, in Enc. Dir., I, Milano, 1958, p. 187; FIANDACA G. — MUSCO E., Diritto penale, Parte speciale, I, Bologna, 2006; MANFREDI PARODI G., (voce) Abuso innominato di ufficio, in Dig. Disc. Pen., I, Torino, 1987, p. 41; PAGLIARO A., Principi di diritto penale, Parte speciale, I, Milano, 2000; RICCIO S., (voce) Abuso di ufficio, in Noviss. Dig. It., I, Torino, 1957, p. 107.

 

[4] Cf. art. 346-bis do CP em italiano: “Chiunque, fuori dei casi di concorso nei reati di cui agli articoli 318, 319, 319 ter  e nei reati di corruzione di cui all'articolo 322bis, sfruttando o vantando relazioni esistenti o asserite con un pubblico ufficiale o un incaricato di un pubblico servizio o uno degli altri soggetti di cui all'articolo 322bis, indebitamente fa dare o promettere, a sé o ad altri, denaro o altra utilità, come prezzo della propria mediazione illecita verso un pubblico ufficiale o un incaricato di un pubblico servizio o uno degli altri soggetti di cui all'articolo 322bis, ovvero per remunerarlo in relazione all'esercizio delle sue funzioni o dei suoi poteri, è punito con la pena della reclusione da un anno a quattro anni e sei mesi. La stessa pena si applica a chi indebitamente dà o promette denaro o altra utilità. La pena è aumentata se il soggetto che indebitamente fa dare o promettere, a sé o ad altri, denaro o altra utilità riveste la qualifica di pubblico ufficiale o di incaricato di un pubblico servizio. Le pene sono altresì aumentate se i fatti sono commessi in relazione all'esercizio di attività giudiziarie, o per remunerare il pubblico ufficiale o l'incaricato di un pubblico servizio o uno degli altri soggetti di cui all'articolo 322bis in relazione al compimento di un atto contrario ai doveri d'ufficio o all'omissione o al ritardo di un atto del suo ufficio. Se i fatti sono di particolare tenuità, la pena è diminuita”.

 

Autores

  • é advogado, doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália) e doutor em Direito, summa cum laude, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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