Opinião

As Constituições prima facie são capazes de enfrentar os desafios à democracia?

Autor

  • Vitalino Canas

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa presidente do Fórum de Integração Brasil Europa e advogado.

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28 de outubro de 2023, 6h04

É conhecida a teoria das vagas de democratização de Samuel Huntington (1991).

A primeira vaga de democratização iniciou-se na década de 1820 e terminou em 1922 (ascensão de Mussolini ao poder); a segunda teve início após o termo da 2ª Guerra e prolongou-se até 1962; a terceira teve início em 1974, com a revolução portuguesa, inclui o sul da Europa, a redemocratização na América Latina (desde as eleições na República Dominicana em 1978, até as eleições em El Salvador em 1994) e no leste europeu, depois da queda do bloco soviético, alguns países africanos como a África do Sul e países lusófonos, a Coreia do Sul e Taiwan.

Alan Santos/PR
Encontro entre Bolsonaro e Putin, em 2022
Alan Santos/PR

Já é da minha própria lavra, mas eu diria que esta terceira vaga terminou com a subida de Putin ao poder, no final da década de 1990.

Nem sempre é sublinhado é que esta teoria de aparente visão otimista sobre as ondas da democratização, é temperada por uma visão dialética. Entre as ondas ou vagas de democratização, Huntington identificou vagas de retrocesso democrático: a primeira, de 1922 até ao final da 2ª Guerra, quando existiam apenas 12 democracias; a segunda de 1960 a 1975.

Não vou discutir a aceitabilidade, do ponto de vista conceptual, metodológico e até normativo da periodização de Huntington. Creio que a muitos suscita dúvidas a colocação do início da primeira onda de democratização nos anos 20 do século 19, quando praticamente nenhum país ainda cumpria os requisitos mínimos formais da democracia tal como enunciados, por exemplo, por Robert Dahl.

Pelo seu valor heurístico, vou assumir como aceitável — porque parece empiricamente fundada — a teoria de que a democracia se tem propagado por ondas ou vagas, com períodos de retrocesso.

Nessa medida, creio que ninguém contesta que hoje estamos num período de retrocesso democrático. Não houve recentes transições democráticas; os estados autoritários reforçaram a sua posição; e algumas democracias, incluindo relativamente antigas — como a Índia —  enfrentam desafios importantes.

Portanto a questão que se coloca é: vai este retrocesso democrático ter a mesma dinâmica que os anteriores e ser um mero interregno no caminho generalizado para a democratização ou desta vez é mais profundo e mais estrutural?

Como evitá-lo ou, pelo menos, contrariá-lo?

Uma das tendenciais respostas, passa por recuperar os quadros da chamada democracia militante ou combatente.

Já aqui se recordou Karl Loewenstein (1891-1973), geralmente apontado como o criador do conceito de democracia militante (militant democracy)[1]. Ele dizia que "the exaggerated formalism of the rule of law which under the enchantment of formal equality does not see fit to exclude from the game parties that deny the very existence of its rules".

O quadro teórico e conceptual de Loewenstein suscita uma controvérsia intemporal. Dos seus ensaios na The American Political Science Review,  consta a proposta de redefinição “transitória” de democracia: "the application of disciplined authority, by liberal-minded men, for the ultimate ends of liberal government: human dignity and freedom" [2].

Analisando medidas tomadas em estados da Europa Ocidental e no Canadá Loewenstein identifica vários mecanismos de democracia militante:

– proibição da constituição de partidos extremistas (comunistas e fascistas);
– limitação de algumas liberdades, perseguição de manifestações de militarismo, como na Finlândia;
– tolerância de métodos antidemocráticos de contenção do extremismo, incluindo poderes quase ditatoriais do presidente, como na Estônia;
– proibição de partidos, grupos ou movimentos subversivos;
– estabelecimento de inelegibilidades e de perdas de mandatos dos membros dessas organizações;
– confisco de propriedade de organizações e pessoas subversivas;
– limitações à liberdade de expressão e inclusive alguns entorses constitucionais (perpetrados pelas autoridades e convenientemente não submetidos ao Tribunal Constitucional), como na Checoslováquia;
– proibição de posse de armas por militantes partidários, de exércitos, corpos militarizados, milícias ou brigadas de segurança dos partidos, de treino militar por pessoas não autorizadas, do uso de uniformes ou de qualquer traje que tenha parecenças militares, posse de armas.

Uma panóplia significativa de ferramentas.

Ora, olhando para estes mecanismos à luz do que sabemos hoje — e que Karl Loewenstein, obviamente, não podia saber na década de 1930 —, eles têm problemas a vários níveis: (i) teoréticos; (ii) de eficácia; (iii) simbólico; (iv) de adequação.

Dos problemas teoréticos não cuidarei agora, embora, como muitos têm apontado, sejam ponderosos. A compatibilidade da democracia militante com os parâmetros clássicos da teoria da democracia é difícil de estabelecer.

Mencionarei brevemente os outros três núcleos problemáticos.

Em primeiro lugar, aqueles mecanismos não impediram o primeiro e o segundo retrocesso democrático, não o atenuaram sequer, e não estão hoje, em geral, a impedir a paulatina instalação da sensação de inverno democrático.

Mesmo no contexto político constitucional em que os mecanismos de democracia militante foram instituídos, aprofundados e aplicados, o da Lei Fundamental de Bona de 1949, tais mecanismos foram eficazes para colocar fora do sistema dois partidos, mas não estão a ser eficazes, por exemplo, para impedir que a extrema direita da Alternativa para a Alemanha apareça à frente nas sondagens.

Os mecanismos de democracia militante também não tiveram qualquer relevância para a derrota do autoritarismo e a vitória da democracia nas segundas e terceiras vagas de democratização.

A segunda vaga decorreu da vitória das democracias na 2ª Guerra.

A terceira vaga decorreu da vitória das democracias na Guerra Fria e em outras frentes.

Em todos esses casos, as democracias beneficiaram de vantagens superiores: foram mais eficientes a fazer a guerra, foram mais eficientes a fazer um discurso mobilizador, foram mais eficientes a promover o desenvolvimento, a prosperidade econômica e a satisfazer a vontade de bem estar. Foram mais eficientes que os vários autoritarismos, de esquerda ou direita, e por isso os venceram.

Em segundo lugar, o discurso da democracia militante — pelo menos na versão loewensteiniana original — não tem condições para ser mobilizador do ponto de vista simbólico e normativo.

Loewenstein aceitava o autoritarismo para combater o risco de autoritarismo, a suspensão transitória do sistema constitucional, constituições democráticas de tipo autoritário e a preservação da democracia por métodos antidemocráticos. Fala da prevenção da guerra totalitária através da paz totalitária.

Não se trata, portanto, simplesmente, de aceitar que a democracia se defenda dos que a querem eliminar, dentro de limites proporcionais, mas de admitir que ela se transforme, ainda que transitoriamente, no seu contrário. Tolera-se o autoritarismo para garantir um futuro democrático.

Em terceiro lugar, os mecanismos da democracia militante também não parecem adequados para combater as ameaças mais graves da atualidade. Estas não provêm de partidos ou movimentos que deliberadamente e francamente anunciam que querem desfazer a democracia e substitui-la por outra coisa. As ameaças vêm de forças políticas que nominalmente aceitam os processos democráticos, mas contestam a democracia representativa e procuram mostrar a sua corrupção e ineficiência; disputam eleições com discursos adaptados ao sentimento de camadas importantes da população; atuam na legalidade, sem pretensões de discursos ou atuações bélicas; aproveitam as tecnologias de comunicação para operações massivas de manipulação que atingem milhões de pessoas.

Estas são práticas substancialmente diferentes da ação do Partido Nazi na década de 1930, que se prevaleceu dos mecanismos da Constituição de Weimar para ascender ao poder e para  destruir e eliminar as instituições democráticas.

Os novos céticos ou inimigos da democracia mantém mais ou menos nominalmente as instituições democráticas, mas tornam-nas frágeis ou dóceis, para manter no poder um líder, um partido, um grupo. Em alguns casos transitam de democracia para autocracias competitivas ou autocracias eleitorais[3], como ocorreu na Rússia, na Venezuela, na Turquia. A oposição não é suprimida. Aqui e ali pode até conquistar posições em eleições. Mas o tabuleiro está inclinado pela aplicação de expedientes vários: o packing de instituições de fiscalização, como o Tribunal Constitucional ou instituições judiciárias; a manietação de instituições que deveriam funcionar com independência, como o ombudsman; o bulling sobre pessoas ligadas à oposição; o controlo dos media e das redes sociais; o uso abusivo de recursos públicos.

Em última análise, torna-se quase impossível a responsabilização e o controlo vertical pelo público.

Contra este novo modo de erosão das estruturas democráticas, as ferramentas da democracia militante, ao modo das da Constituição alemã e de outras, são, pelo menos, insuficientes se não mesmo inapropriadas.

 

Clique aqui para ler o artigo na íntegra

 

 


[1] Da época, interessa um conjunto de escritos publicados na The American Political Science Review, por Karl Loewenstein: “Autocracy versus Democracy in Contemporary Europe, I”, The American Political Science Review, vol. 29, nº. 4 (1935), pp. 571-593; “Autocracy versus Democracy in Contemporary Europe, II”, The American Political Science Review, vol. 29, nº. 5 (1935), pp. 755-784; “Militant democracy and fundamental rights I”,  American Political Science Review, vol. 31 (1937), pp. 417–32. Acessível em: https://warwick.ac.uk/fac/arts/history/students/modules/hi290/seminars/revolution/lowenstein_militant_democracy_i.pdf ; “Militant democracy and fundamental rights II”, Am. Polit. Sci. Rev., vol. 31 (1937), pp. 638–58. Acessível em: https://warwick.ac.uk/fac/arts/history/students/modules/hi290/seminars/revolution/lowenstein_militant_democracy_ii.pdf . Loewenstein, de ascendência judaica e pensamento de esquerda, deslocou-se para os EUA depois da conquista do poder pelos nazis. Estes textos foram publicados depois da fixação do autor nos EUA. Cfr. o enquadramento por P. B. Cliteur / B. R. Rijpkema,  “The Foundations of Militant Democracy”, in M. G. Ellian A. (ed.), The State of Exception and Militant Democracy in a Time of Terror, Republic of Letters Publishing,  Dordrecht, 2012, pp. 227-272.

[2] “Militant democracy and fundamental rights II”, p. 658.

[3] David Landau, “Abusive Constitutionalism”, University of California, Davis, vol. 47 (2013), p. 199.

Autores

  • é fundador e sócio principal da Vitalino Canas & Associados. Professor na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, advogado e ex-deputado em Portgual.

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