Opinião

Mudanças e continuidades no novo marco fiscal buscam estabilidade econômica

Autor

  • Antonio Moreira Maués

    é advogado e professor associado da Universidade Federal do Pará doutor em Direito pela Universidade de São Paulo e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

24 de outubro de 2023, 6h01

Após vários meses de negociações no Congresso, o novo marco fiscal proposto pelo governo Lula foi instituído pela Lei Complementar nº 200, de 30 de agosto de 2023. Sob o nome pomposo de "regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do país e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico", a nova legislação não esconde as dificuldades que o governo enfrentará para assegurar os objetivos de sua política econômica, sobretudo em um contexto internacional caracterizado pela insegurança.

Essas dificuldades, porém, marcam a própria vigência da Constituição de 1988, cujas normas sobre política fiscal foram constantemente modificadas e ampliadas por meio de dezenas de emendas constitucionais, incluindo aquelas que estabeleceram vinculações orçamentárias dos gastos sociais. Além de refletir a constitucionalização dos conflitos distributivos da sociedade brasileira, a trajetória das normas constitucionais sobre tributação e orçamento evidencia a instabilidade dos acordos políticos sobre essas matérias.

Após o fracasso do teto dos gastos aprovado no governo Temer pela Emenda Constitucional nº 95/16, o novo marco fiscal representa mais uma tentativa de definir os limites do gasto público e o espaço de atuação do Estado na economia. No que se refere às políticas sociais, essas normas também definem de que modo o poder público poderá agir para promover a redistribuição da renda e da riqueza do país, questão que é central para o fortalecimento da democracia. Sob esse aspecto, enquanto a EC nº 95/16 previa que as despesas públicas seriam corrigidas apenas pela inflação, diminuindo a proporção do gasto público em relação ao PIB, a LC nº 200/23 permite o aumento dessas despesas, que poderão variar entre 0,6% e 2,5% acima da inflação.

Outra inovação do novo marco fiscal diz respeito ao instrumento jurídico adotado para sua implementação. Desde a criação do Fundo Social de Emergência, pela Emenda Constitucional de Revisão nº 1/94, várias outras emendas constitucionais tiveram como objetivo promover o ajuste fiscal por meio da contenção dos gastos públicos. Assim, o Fundo de Estabilização Fiscal foi criado e prorrogado pelas Emendas Constitucionais nº 10/96 e 17/97, e a Desvinculação das Receitas da União foi objeto das Emendas Constitucionais nº 27/00, 42/03, 56/07, 68/11, 93/16 e 126/22, tendo sido mantida por todos os governos desde sua criação.

Conforme o disposto no artigo 9º da EC nº 126/22, a entrada em vigor do novo marco fiscal revogou o teto dos gastos e permitiu que a matéria fosse regulada em lei complementar. Tal mudança facilita a obtenção de maioria parlamentar para revisão das medidas de ajuste, além de conferir ao presidente da República a prerrogativa do veto, diminuindo o poder dos partidos de direita na atual composição do Congresso. Com efeito, o presidente Lula vetou as disposições do projeto de lei que reduziam os gastos com investimento e proibiam a exclusão de despesas primárias na apuração da meta de resultado fiscal.

Além de dotar o governo de maior liberdade para gerir os gastos públicos, o novo marco fiscal preservou a hierarquia constitucional das vinculações orçamentárias dos gastos sociais, o que as protege de modificações por lei complementar. Embora haja notícias de que setores do governo pretendem rever o cálculo dos pisos constitucionais da saúde e da educação, eventuais mudanças terão que obter maiorias qualificadas no Congresso Nacional para serem aprovadas. Na área da educação, vale lembrar que o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) foi excluído do cálculo do limite de despesas que deverá ser respeitado pela União.

Sem embargo, cabe examinar em que medida a nova legislação preserva os gastos sociais. O regime instituído pela LC nº 200/23 objetiva gerar superávits primários, previstos para 0,5% do PIB em 2025 e 1,0% do PIB em 2026. Embora bastante inferiores às metas fiscais estabelecidas nos governos petistas anteriores, a adoção dessas regras significa que os gastos sociais podem não aumentar de modo suficiente para atender às demandas da população, mantendo-se em seus patamares mínimos.

Embora o novo marco fiscal traga melhorias em relação ao regime anterior, ele também indica que a ordem constitucional de 1988 continuará operando como uma Constituição "antipobreza" que não evolui para se tornar uma Constituição redistributiva. De acordo com a análise que desenvolvemos em nosso livro "O Desenho Constitucional da Desigualdade" (Tirant lo Blanch, 2023), o primeiro tipo de Constituição adota políticas que diminuem a pobreza, especialmente em sua forma extrema, mas a insuficiência dos recursos destinados aos direitos sociais e o caráter regressivo do sistema tributário impedem que haja uma redução estrutural das desigualdades de renda e riqueza da sociedade. Por sua vez, a Constituição redistributiva combina políticas sociais universais com financiamento baseado em tributação progressiva.

A Constituição de 1988 possibilitou que o gasto social no Brasil alcançasse 17% do PIB e melhorasse as condições de vida da população de baixa renda, porém, a universalização dos direitos sociais ainda requer aumento significativo dos recursos públicos destinados a eles. Além disso, o impacto redistributivo do gasto social no Brasil é limitado pelo perfil regressivo do sistema tributário, que faz com que os mais pobres paguem proporcionalmente mais tributos do que os mais ricos. Cabe observar que, na proposta de reforma tributária em discussão no Congresso, a mudança do caráter regressivo do sistema não aparece como tema prioritário.

Assim, podemos prever que o novo marco fiscal permitirá manter o patamar dos gastos sociais já alcançado no país, sem modificar os limites que o ajuste fiscal e o sistema tributário impõem a seu caráter redistributivo. As mudanças positivas em relação ao regime criado pela EC nº 95/16 não invalidam a conclusão de que os conflitos distributivos da sociedade brasileira continuarão se manifestando de modo acentuado e exigindo soluções estruturais.

Autores

  • é advogado e professor associado da Universidade Federal do Pará, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

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