Repensando as Drogas

Guerras, festas e drogas: da Terra Prometida às favelas brasileiras

Autor

  • Guilherme Roedel Fernandez Silva

    é mestre em Sociedade Ambiente e Território pela UFMG/Unimontes professor efetivo de Processo Penal na Universidade Estadual de Montes Claros e promotor de Justiça na comarca de Montes Claros (MG).

27 de outubro de 2023, 10h11

A festa na Terra Prometida foi interrompida de forma aterrorizante, acirrando uma antiga e sangrenta guerra entre irmãos. O ataque terrorista ao festival de música eletrônica que acontecia no deserto de Negev contabilizou quase 250 mortos e outros tantos descendentes de Abraão foram sequestrados da festa e levados para esconderijos do Hamas na Faixa de Gaza. Apesar de toda comoção e especificidades em relação aos ataques ocorridos na faixa palestina do Oriente Médio, mortes em festivais de música não são tão raros. Já aconteceram em diversos países, inclusive no Brasil.

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As expectativas para a festança em Israel eram altas: um verdadeiro "Woodstock com música eletrônica", segundo o veterano DJ de psytrance, o britânico Martin Freeland. Ninguém esperava o ataque, afinal, era um festival para celebrar a união de pessoas que "só queriam festejar com seus amigos, ouvir a música e dançar em paz" [1]. A cena eletrônica em Israel é famosa e remonta ao final da década de 1980. A cidade de Tel Aviv é mundialmente conhecida por sua agitada vida noturna regada a muito álcool e diferentes psicoativos [2].

Para compor a magia do festival, além da companhia de amigos, belezas naturais e música eletrônica, muitos dos participantes  como acontece com frequência em festivais de todo tipo de música  administraram em seus corpos diferentes substâncias naturais ou sintéticas, lícitas e ilícitas, que lhes garantiam maior plasticidade neural para novas experiências sensoriais. A onda boa daquele ambiente festivo foi subitamente cortada e substituída pelo pânico e terror.

Não foi a primeira vez que um festival de música foi interrompido por um ataque provocado por vingança e ódio de grupos terroristas. No ano de 2015, em Paris, integrantes do Estado Islâmico abriram fogo contra o público de 1,5 mil pessoas que assistia ao show da banda Eagles of Death Metal, matando 130 pessoas e deixando mais de 300 feridas. Em 2017, nos Estados Unidos, um atirador americano matou quase 60 pessoas que assistiam a um festival de música country em Las Vegas, disparando armas de grosso calibre do 32º andar de um hotel.

Os massacres em Israel, França e Estados Unidos têm raízes em históricas disputas territoriais, fundamentalismo religioso, preconceito, racismo, ódio e desejo por vingança. Na questão entre Israel e Palestinos há ainda interesses (geo)políticos e econômicos inconfessáveis que estimulam e agravam o conflito por meio de bilionários financiamentos para as forças (para)militares. O próprio Hamas, responsável pelo ataque ao festival que acontecia nas imediações da Faixa de Gaza, se fortaleceu na década de 80 devido ao apoio militar concedido pelo governo de Israel, que pretendia dividir a resistência palestina para facilitar a ocupação daquele território [3].

As centenas de mortes de mulheres, crianças e idosos israelenses provocadas pelos ataques do Hamas acirraram o ódio entre os filhos de Abraão. O primeiro ministro de Israel, Benjamim Netanyahu, não esperou o prato esfriar para saciar a fome de vingança. Seu poderoso exército de primeiro mundo não economizou mísseis teleguiados e a mais moderna tecnologia militar disponível para contra-atacar imediatamente alvos em Gaza.

Os ataques aéreos promovidos pelo governo de Israel mataram e mutilaram milhares de mulheres, crianças e idosos palestinos. Trata-se de indesejável  aceitável?  "efeito colateral" da necessária(?) caçada aos terroristas. Além dos mais de 7.000 mortos já contabilizados desde o início dos ataques, outros milhares agonizam de dor e fome. O rigoroso embargo israelense, vigente desde 2007, se transformou num "cerco total" que impedia, até recentemente, a chegada de qualquer ajuda humanitária com água, comida, remédios e médicos para os refugiados na Faixa de Gaza.

Mas, além da Faixa de Gaza no Oriente Médio, há no Rio de Janeiro uma outra Faixa de Gaza. O histórico de tiroteios com projéteis luminosos traçando os morros do Rio de Janeiro e o número de mortes violentas superior ao contabilizado nos conflitos na Terra Prometida renderam a determinados territórios da cidade maravilhosa o sugestivo apelido. A Gaza carioca é composta por um conglomerado de favelas que abrange o Complexo do Alemão, da Maré e do Jacarezinho, territórios controlados por grupos criminosos que concorrem no mercado varejista de drogas criminalizadas. As semelhanças entre as favelas cariocas e a Faixa de Gaza não se limitam à intensa violência armada pela disputa territorial.

A criação da Faixa de Gaza às margens do Mediterrâneo, fruto da criação do Estado de Israel em 1948 e a consequente desterritorialização de milhões de palestinos que ali habitavam, guarda certa semelhança com o processo de gentrificação e ocupação dos morros cariocas no início do século 20. Ambos os casos decorrem da expropriação de territórios habitados por populações vulneráveis para apropriação da terra e acumulação de capital com a exploração de riquezas naturais e edificação de obras a serem usufruídas pelos ricos.

Em A invenção da favela. Do mito de origem à favela.com, Licia do Prado Valladares (2005) identifica nos cortiços a semente da favela. Os cortiços eram definidos na legislação municipal carioca no final do século 19 como habitações coletivas, em regra constituídas por pequenos quartos de madeira, instalados nos fundos de prédios ou outros cantos de difícil acesso, às vezes construídos um sobre os outros, e geralmente com espaços de cozinha, aparelhos sanitários e lavanderias compartilhados por mais de uma família pobre. Os cortiços eram o locus da pobreza, da sujeira e da doença, onde residiam os vagabundos, os criminosos e alguns poucos trabalhadores, onde a "classe perigosa" fixava residência.

Àquele tempo, na virada do século 19 para o século 20, a municipalidade do Rio de Janeiro, fundamentada no discurso da saúde pública, já desenvolvia uma "guerra aos cortiços", mediante a promulgação de leis impedindo a construção de novos cortiços e a destruição forçada dos já existentes, inclusive o "Cabeça de Porco", o mais importante cortiço carioca do final do século 19 [4]. É especialmente a partir do deslocamento forçado dos moradores dos antigos cortiços, até então estabelecidos nas  e às  margens dos centros de poder, que as encostas e pés de morros cariocas passam a ser invadidos irregularmente com maior intensidade.

A ocupação do Morro da Providência pelas famílias deslocadas dos cortiços e por militares reformados, que ali se instalaram para pressionar o Ministério da Guerra a pagar seus soldos pela participação na guerra de Canudos, dá origem ao "Morro da Favela". A planta "favela", encontrada no Morro da Providência e também na região de Canudos, acaba dando nome à aglomeração.

A geografia naturalmente acidentada e o modelo excludente de parcelamento e ocupação do solo verificados no processo de urbanização relegaram à população carente as vertentes dos morros próximos dos bairros elitizados. A ocupação das encostas, a partir da década de 1950, se transformou na ocupação de morros inteiros, fazendo surgir os grandes conglomerados de favelas que hoje são apelidados de Faixa de Gaza.

A origem da violência que caracteriza o conflito sangrento entre Israel e Palestina  ou ente árabes e judeus , todavia, é mais antiga, complexa e difusa que aquela vivenciada no Rio de Janeiro. A violência no Rio tem marco temporal bem mais recente, a partir da década de 1980, com a ampliação do mercado de cocaína e a disputa pelos lucrativos pontos de comércio da droga na cidade [5]. A maior parte do dinheiro que corrompe agentes estatais que desviam armas e vendem facilidades com a Justiça Criminal, que compra os fuzis e metralhadoras que protegem seus estoques de drogas, e que matam traficantes rivais e policiais destemidos advém do lucro com a venda de drogas criminalizadas.

A matança por aqui não ocorre apenas entre grupos criminosos que disputam territórios na nossa Faixa de Gaza. O Estado  através dos seus agentes alistados para a famigerada guerra  também mata, e muito. Não por fundamentalismo religioso ou por divergências na interpretação de textos sagrados. Por aqui a motivação é (supostamente) nobre: o Estado mata para defender a saúde pública. Mata para defender as crianças das famílias de bem contra os riscos das drogas. Mata porque "o tráfico de drogas ilícitas tem sido uma praga que vem corroendo os pilares da sociedade, desestruturando famílias e dizimando vidas" [6]. Mata porque traficante nem gente é.

Na Faixa de Gaza carioca, um baile funk no complexo do Salgueiro acabou com sete jovens mortos depois da subida de um blindado da polícia. Fontes oficiais informaram que a ação visava capturar dois traficantes de perigosas substâncias psicoativas. Na semana anterior, curiosamente, um policial havia sido baleado no pescoço num confronto naquela favela [7].

Outro baile funk, esse na favela de Paraisópolis em São Paulo, também acabou em massacre. Nove jovens entre 14 e 23 anos foram pisoteados até a morte depois que a polícia criou pânico e tumulto ao chegar ao local soltando bombas de gás lacrimogêneo e disparando balas de borracha para impedir a venda e consumo de drogas. No Jacarezinho, para combater o comércio de drogas, a Polícia Civil carioca fez operação que resultou em pelo menos 29 mortes. Nas favelas cariocas e paulistas, e em muitas outras cidades brasileiras, milhares de mortes têm origem na famigerada guerra às drogas.

É justo ficarmos horrorizados e comovidos com as guerras, todas elas negociatas onde muitos morrem e uns poucos ganham rios de dinheiro. A ideia de um mundo livres das drogas é ilusória, irracional e nunca irá acontecer, pois desde que o mundo é mundo elas são encontradas livremente na natureza e desde sempre são consumidas. Mesmo com rigorosa proibição, mais mortes e muita prisão, as drogas continuarão sendo vendidas e consumidas, nas esquinas e nos presídios, no silêncio do campo e na agitação das cidades, nas festinhas e nos festivais.

A cada ano, em nosso país, são mortos muito mais brasileiros que árabes e judeus no conflito no Oriente Médio. A cada morte violenta  de um traficante, um policial ou um inocente , a fome de vingança faz o Senhor da Guerra salivar. O que devemos nos livrar é da guerra às drogas, substituindo-a por políticas mais modernas, baseadas em evidências, como um crescente número de países já começaram a adotar.

 


[1] Tradução livre. Raz Gaster, para Rolling Stone < https://www.rollingstone.com/music/music-features/hamas-israel-nova-music-festival-massacre-1234854306/amp/ Acesso em 25 de out. 2023.

[4] VALLADARES, Lícia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem a favela. Rio de Janeiro: FGV. 2005. 204p

[5] GLENNY, Misha. O dono do morro: um homem e a batalha pelo Rio. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

[6] Trecho extraído de decisão que na comarca de Montes Claros/MG, proferida no plantão do dia 15 de outubro de 2023.

Autores

  • é promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais, professor efetivo da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) e especialista em Inteligência de Estado e Segurança Pública (Fundação Escola Superior do MPMG-Newton Paiva).

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