Paradoxo da Corte

O uso do cachimbo deixa a boca torta: a favor do "contra"

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

27 de outubro de 2023, 8h00

Como a memória não me costuma falhar, lembro-me que há mais de 30 anos, o estimado Colega e Amigo Sérgio Bermudes escreveu algumas páginas num providencial artigo intitulado A favor do "contra", estampado na Revista de Processo (volume 65, 1992, página 219 e ss.)  cujo título permito-me tomar emprestado nesta oportunidade , para defender, com muita acuidade, que desde tempos imemoriais a ação judicial é promovida contra o réu.

Ressaltava ele que as pessoas, com razoável frequência, designam imprecisamente e até de modo automático, um fenômeno, ou atribuem certa denominação a determinada situação, apenas por fidelidade ao costume, como, por exemplo, "arregaçar as mangas", "amigo da onça", "cara de pau"…

Spacca
É exatamente o que ocorre com o emprego indevido da expressão "ação movida em face do réu". Como é ressabido, eclodido o litígio, o pleito de tutela se dirige efetivamente contra o Estado, detentor do monopólio da prestação jurisdicional.

Cunhou-se, então, com o passar do tempo, a locução em face de, com o declarado intuito de deixar bem compreensível que o demandante não ajuíza a ação contra o réu, mas, sim, contra o Estado.

A rigor, como bem pontua Sérgio Bermudes, o exacerbado vezo de procurar ser exato, sobretudo no emprego da linguagem técnica, pode mesmo ensejar dúvida. É dizer: o empenho para esclarecer demasiadamente e até com certo perfeccionismo as coisas que nos circundam, em algumas ocasiões, pode ensejar confusão aos olhos do homem comum, "destinatário da administração da justiça, que entende, perfeitamente, até por atavismo, que uma ação haja sido proposta contra ele, mas queda perplexo e nervoso, quando ouve dizer que uma ação foi proposta em face dele…".

Ora  complementa Bermudes, "se os avanços científicos convenceram os processualistas brasileiros de que a ação se exerce contra o Estado, e não contra o réu, não chegaram a influir na sua linguagem, como revelam eloquentes amostras, colhidas em apressada e perfunctória consulta, nos mananciais mais abundantes", como, por exemplo, nas conhecidas obras de Pontes de Miranda, José Frederico Marques, Moacyr Amaral Santos e José Carlos Barbosa Moreira, em particular, este último, "de notórios desvelos com o apuro da linguagem técnica".

O demandante provoca a jurisdição por meio da ação dirigida contra o Estado-juiz, para que o requerido seja convidado a se manifestar. Não obstante, caso o autor tenha razão, é contra o demandado que o órgão dotado de jurisdição imporá a tutela pleiteada.

Assim sendo, sem se deixar influenciar pelos desvios que alguns cometem ao seguir, de forma irrefletida, o que ouvem ou leem, na verdade, não há inexatidão alguma, sob a perspectiva técnica, em dizer ou escrever, que a ação é ajuizada contra o réu, que, de fato, é aquele que tem de defender-se no jogo do processo, representativo de um realístico "duelo civilizado", como bem destacava Piero Calamandrei (Il processo come giuoco, Rivista di diritto processuale, Padova, Cedam, 1950, págs. 23-51).

Tudo bem! Nada de errado em utilizar a expressão "ação aforada em face do réu", se admitirmos rigorosamente o conceito dogmático de relação processual triangular, que se desenvolve entre autor-Estado-juiz e Estado-juiz-réu.

Preciosismo à parte, em atenção aos mais jovens, não posso deixar de observar, por outro lado, que errado, bem errado mesmo, é a utilização,  sem qualquer reflexão, da expressão "recurso interposto em face da sentença", por pura imaginação por demais equivocada de que o termo contra deve ser banido do vocabulário jurídico, em especial, da terminologia técnico-processual.

Bobagem grosseira!

É mais do que evidente que, no processo, a parte irresignada se insurge contra a decisão, jamais em face dela.

Primeiro, porque o ataque do litigante vencido dirige-se, antes de mais nada, contra a ratio decidendi, isto é, contra os fundamentos do ato decisório.

Ademais, quem escreve "recurso interposto em face da sentença", desconhece profundamente o sentido da expressão, que significa "diante de", "face a face", não podendo obviamente ser manejado um recurso "diante do ato decisório", com a precípua finalidade de enfrentá-lo.

É correto dizer, à guisa de exemplo, que, em face das informações fornecidas, não poderei, como advogado, patrocinar esse caso…; ou, que, em face de todo o exposto, o autor requer a procedência do pedido… No entanto, o "uso do cachimbo" consagrou o hábito crescente, de todo esdrúxulo  para dizer o menos —, de empregar a expressão “vem interpor o recurso em face da decisão”.

Os manuais de redação jurídica, nessa hipótese, indicam o uso de contra e criticam, com acerto, o emprego de "recurso em face da sentença".

Concluo, portanto, afirmando que interpor um recurso de agravo de instrumento, de apelação ou de qualquer outro em face da decisão interlocutória ou da sentença constitui lapso imperdoável, quando nada, por manifesto desconhecimento da função técnica do recurso e, pior, do vernáculo.

Por essa justificada razão é que sempre fui a favor do contra!

Autores

  • é sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo), professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

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