Opinião

Vamos executar provisoriamente a pena de morte?

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27 de outubro de 2023, 15h24

"É essencial que as palavras das leis despertem em todos os homens as mesmas ideias".
(Montesquieu) [1]

Tema dos mais controversos no processo penal é, sem dúvida, a execução provisória da pena, pois que a sua admissão atrita diretamente com o mais caro princípio do processo penal: a presunção de inocência. A Convenção Americana de Direitos Humanos estabelece a presunção de inocência por meio de uma redação bem aberta.

Diz o artigo 8.2. do referido tratado: "Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa". Essa redação, como se percebe facilmente, permite muito bem que se considere comprovada a culpa de uma pessoa com a simples sentença condenatória. Por outro lado, no artigo 8.2, "h", a Convenção diz que toda pessoa tem o "direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior". 

Poder-se-ia, então, dizer que a culpa não pode ser considerada provada pela mera sentença condenatória, mas sim pelo acórdão que a confirma, dado o direito ao duplo grau de jurisdição que a Convenção confere ao acusado. Uma coisa é certa: o referido tratado não menciona o trânsito em julgado para que a presunção de inocência possa ser considerada vencida.

A Convenção Europeia de Direitos Humanos trilhou o mesmo caminho da Convenção Americana, e dispôs no artigo 6.2: "Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada". O enfoque de ambas as Convenções é com relação à comprovação legal da culpa, vale dizer, dá à presunção de inocência aquela necessidade de se provar a culpa dentro dos parâmetros legais e constitucionais. Na linha dos dois tratados acima, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos traz a mesma redação no artigo 14.2: "Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa". Mais uma vez, nada de trânsito em julgado como requisito para se vencer a presunção de não culpabilidade. O homem se presume inocente até que seja declarado culpado: uma sentença que assim o declare é o suficiente para vencer a dita presunção.

A Constituição brasileira, sabemos todos, positivou a presunção de inocência no artigo 5º, LVII, e colocou o trânsito em julgado como conteúdo insuprimível desse princípio: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". No plano infraconstitucional, o legislador foi ainda mais explícito, ao impedir a prisão de qualquer pessoa, a título de pena, antes do trânsito em julgado, nos termos do artigo 283: "Artigo 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado". 

O legislador infraconstitucional explicitou o estado de inocência do acusado antes do trânsito em julgado, impedindo o acusado de ser preso para cumprir sua pena até que esse momento processual preciso e delimitado no tempo se consume. Portanto, vedou ao Estado tratá-lo como culpado antes do trânsito em julgado.

A Constituição brasileira, é importante dizer, não é isolada no cenário internacional. Os portugueses, conforme se lê do artigo 32.2 da Constituição de 1976, positivaram a presunção de inocência até o trânsito em julgado: "Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa". 

A Constituição Italiana de 1948, no artigo 27.2., estabelece: "L'imputato non è considerato colpevole sino alla condanna definitiva". A presunção de não culpabilidade perdura até que a sentença transite em julgado, impondo aquela vedação que o estado de inocência impõe ao Estado, vale dizer, tratar o acusado como culpado, logo, veda a execução da sua pena.

Quid juris? Os tratados internacionais estão corretos? Ou corretas estão as Constituições brasileira, portuguesa e italiana? A pergunta que fica é evidentemente uma: é necessário aguardar o trânsito em julgado da sentença condenatória para que se possa considerar uma pessoa culpada? Melhor ainda: o trânsito em julgado da sentença condenatória é requisito sine qua non da cessação da presunção de inocência? A contradição é mais aparente do que real: os tratados exigem sim o trânsito em julgado pois a comprovação legal da culpa da pessoa não se faz sem esse momento processual preciso.

Deixar legalmente comprovada a culpa é deixar esta culpa fora de dúvida, já que, em qualquer sistema processual penal, a dúvida favorece o acusado, e a ausência do trânsito em julgado deixa o processo em situação de dúvida. E por isso a culpa legalmente comprovada exige o trânsito em julgado.

Para deixar isso claro, é preciso se debruçar sobre o trânsito em julgado enquanto fenômeno processual inconfundível. Uma sentença ou acórdão transitam em julgado quando contra eles já não caibam mais qualquer recurso. Di-lo a Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro: "Artigo 6º. (…). §3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso". Se o recurso é o meio de impugnar uma decisão, e, portanto, de reformá-la, a coisa julgada é, por outras palavras, a sentença irrecorrível, imutável. Diz-se, então, que a sentença, com o trânsito em julgado, adquire a autoridade da coisa julgada. Essa autoridade da coisa julgada consiste em um "atributo de imutabilidade que vai se juntar aos efeitos da sentença, não apenas ao declaratório, mas ao constitutivo e executório" [2].

Segundo uma fecunda observação de Carnelutti [3], deve-se distinguir o que ele chama de eficácia ou imperatividade da sentença da sua imutabilidade. A imperatividade é um atributo que toda sentença possui, independentemente do trânsito em julgado, pois a sentença não é um parecer do juiz ou uma consulta acadêmica. Por outro lado, na visão de Liebman [4], eficácia e autoridade da sentença são duas coisas diversas; enquanto que autoridade e imutabilidade seriam a mesma coisa.

A autoridade, diz Liebman, é um modo de ser da eficácia consistente na sua imutabilidade. Por outros termos, a sentença transitada em julgado é aquela cujo comando imperativo que ela impõe se torna imutável. Se a sentença fixa alimentos em dois salários mínimos e ela transita em julgado, o valor dos alimentos em dois salários mínimos se torna imutável. Se a sentença fixa cinco anos de prisão em regime fechado mas não transita em julgado, o prazo de cinco anos de pena e o regime fixados podem ser alterados. A distinção tem evidentes repercussões práticas, e é sobretudo sobre essa distinção que repousa toda a solução do problema.

Como anota Tornaghi, "não se deve confundir a força da coisa julgada com a executoriedade, que não provém dela, mas decorre da própria sentença. Sempre que o recurso não tem efeito suspensivo, a sentença é imediatamente exequível" [5]. Exequível no sentido carneluttiano: é eficaz ou imperativa, embora não imutável.

No processo civil, essas distinções doutrinárias são facilmente visualizáveis: quando o recurso não tem efeito suspensivo, a sentença é desde logo imperativa, e, portanto, passível de atribuir o objeto da prestação jurisdicional ao favorecido desde a sua publicação. A sentença que condena a pagar alimentos não é imutável, não tem autoridade de coisa julgada, mas é imperativa, eficaz (artigo 1.012, §1º, II, CPC). Sendo o efeito suspensivo o efeito de impedir a eficácia da sentença, o recurso privado deste efeito que é interposto, embora impeça a autoridade (imutabilidade) da sentença, não lhe impede a imperatividade.

Assim, o condenado a pagar alimentos pode ser constrangido a pagá-los mesmo com a possibilidade de reduzir a quantia fixada ou até mesmo com a possibilidade de comprovar, após ter passado meses ou anos pagando os alimentos, que não é o devedor legítimo do alimentando. Diz-se, assim, que "provisória" não é a execução, mas sim o título sob o qual ela se fundamenta. Se se executa provisoriamente uma sentença que condenou o réu a pagar R$ 10.000, o processo não irá executar metade desses R$ 10.000, ou apenas R$ 2.000, depois mais R$ 2.000… ela irá executar "provisoriamente" os R$ 10.000 integralmente.

No processo penal, essas distinções já não são tão apreciáveis precisamente pelo efeito suspensivo indireto que decorre da presunção de inocência: por exigir o trânsito em julgado para o início da execução da pena, a presunção de inocência faz coincidir  e portanto confundir  a imperatividade (eficácia) da sentença com a sua autoridade, vale dizer, com o atributo de sua imutabilidade.

Uma vez que só com a coisa julgada é que a presunção de inocência autoriza a imperatividade da sentença condenatória, a sentença no processo penal parece adquirir  e de fato assim o é  imperatividade (na linguagem de Carnelutti) somente com a autoridade (na linguagem de Liebman). Por outras palavras, a presunção de inocência, tal como regulada pela Constituição brasileira, desloca a imperatividade da sentença penal condenatória para o momento em que essa imperatividade adquire a autoridade (da coisa julgada).

Como anota Malatesta, "a pena, já pelo princípio em que se inspira, já pelo fim a que tende, só pode impor-se legitimamente, quando se obteve a certeza do fato da criminalidade" [6] A pergunta que se deve fazer então é: a sentença recorrível, isto é, passível de ser impugnada  e, portanto, reformada , fornece essa certeza que a sociedade precisa para autorizar o direito de punir contra um de seus consorciados? A resposta não pode ser senão pela negativa, pois essa certeza só é obtida com o trânsito em julgado.

A sentença recorrível não fornece essa autoridade precisamente porque não tem o atributo da imutabilidade, e somente com a coisa julgada é que essa autoridade advém, e a coisa julgada, por sua vez, exige a sentença irrecorrível. Sem esse momento preciso e delimitado da persecução penal, a certeza de que foi feita justiça, certeza de que depende a Justiça, não é nunca atingida. Como lembra Carnelutti, "a auctoritas iudicati não tem outra razão de ser que a certeza; isto quer dizer que quando menos predomina a certeza sobre a justiça, tanto menos se impõe essa autoridade" [7], donde a necessidade de se aguardar o trânsito em julgado, que é o elemento que fornece essa certeza, ainda que uma certeza relativa que decorre das limitações humanas.

Desse modo, a presunção de culpabilidade exige o trânsito em julgado, pois até esse momento muitas verificações ainda ficam pendentes de serem analisadas, o que impede afirmar, com absoluta certeza, que o Estado adquiriu legalmente o direito de punir aquele cidadão.

Essa distinção entre imperatividade e imutabilidade demonstra o risco de se permitir a execução da pena antes do trânsito em julgado. A melhor maneira de visualizar esse risco é colocar sobre a base de toda essa discussão um tipo de pena que realmente nos leva refletir sobre os perigos de uma execução penal fundada em um título sem o atributo da imutabilidade: a pena de morte. É verdade que não temos a pena de morte senão nos casos de guerra, mas, por amor ao debate e abstraindo as discussões sobre a legitimidade desse tipo de pena, imaginemos então que a pena a ser aplicada é a pena capital.

Nesse caso, os defensores da execução provisória ainda assim a defenderiam? O valor do trânsito em julgado fica nítido principalmente para o Estado, pois, se ele pretendesse executar semelhante pena, fá-lo-ia certamente quando o título que lhe confere esse poder se tornasse imutável. Sentença recorrível é sentença mutável, sentença cujo conteúdo que se pretende imperativo pode ser alterado, e, portanto, permitir a execução da pena antes do trânsito em julgado seria permitir o Estado executar o cidadão que pode ainda ser declarado não culpável.

A pena de morte demonstra a impossibilidade de coexistência da presunção de inocência com a execução "provisória" da pena, ou, por outras palavras, da coexistência mutabilidade do comando emergente da sentença penal condenatória com a imperatividade. Como seria essa execução “provisória” da pena de morte? Mata-se o réu aos poucos? Dá-se 10% da injeção letal? 20%? Deixa-se o réu em coma, e, assim que chegar o trânsito em julgado, desliga-se os aparelhos? Não, a execução "provisória" seria matar o réu e, se a sentença for reformada…

Vê-se que é induvidoso que não há como a presunção de inocência não ter outro alcance que não até o trânsito em julgado da sentença condenatória. Poder-se-ia opor que se deve tirar essa discussão da pena de morte e trazê-la para o campo da pena privativa de liberdade, que é a que efetivamente se pretende impor. Mas o recurso à pena de morte é útil apenas para demonstrar os perigos da execução provisória da pena, seja ela qual for.

Como ensina Carnelutti, o processo penal diz respeito ao "ser", enquanto que no processo civil se discute o "ter" [8]. Impor desde logo a obrigação a um suposto pai de pagar alimentos ao pretenso filho que posteriormente é reconhecido como sendo de outro pai é tolerável, dado que reversível a situação: pode-se sempre adquirir o dinheiro perdido injustamente. Mas a vida suprimida e os dias de privação de liberdade não se recuperam.

Portanto, é preciso ser enfático: pena não se executa "provisoriamente", seja ela qual for. É difícil compreender como possa existir uma discussão de conteúdo tão divergente de um texto tão claro como o do artigo 5º, LVII, da Constituição. Essa discussão, longe de ser hipotética, nos causa assombro e ao mesmo tempo desânimo quando nos damos conta da existência de jurisprudência em certo momento gestada no Superior Tribunal de Justiça exigindo o trânsito em julgado para o início da execução das penas restritivas de direito, enquanto que, pari passu, vinham admitindo a execução provisória da pena privativa de liberdade… Contradição que nos faz lembrar uma pequena passagem de Carnelutti, onde ele nos fala do "esforço para conservar a vida de um condenado à morte que tenta suicidar-se, a fim de que possa vir a ser legalmente morto; episódio nefando, no qual parece perfilhar-se uma atroz caricatura de nossa pretensa civilização penal" [9].

 

 


[1] MONTESQUIEU. Do espírito das leis, Trad. Roberto Leal Ferreira, 2ª Ed., São Paulo: Martin Claret, 2014, p. 753.

[2] TORNAGHI, Hélio. Instituições de processo penal, Vol. 1, Rio: Forense, 1959, p. 449.

[3] Studi di diritto processuale, Volume terzo, Padova: Cedam, 1939, p. 63.

[4] Efficaccia e autorità della sentenza, Milano: Giuffrè, 1935, XIII apud Studi di diritto processuale…, p. 63.

[5] Op. cit., p. 450.

[6] A lógica das provas…, p. 17. (itálico no original)

[7] CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal, Vol. 4, Trad. Francisco José Galvão Bruno, Editora Bookseller, 2004, p. 97.

[8] Lições sobre o processo penal, Vol. 2…., p. 234.

[9] Lições sobre o processo penal, Vol. 1…, p. 153.

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