Direito Eleitoral

Votação mínima do quociente eleitoral para acesso a sobras partidárias

Autor

  • Fernando Carlos Dilen da Silva

    é advogado procurador da Câmara Municipal de Serra (ES) mestre em história social das relações políticas especialista em teoria da Constituição e Direito Constitucional e conselheiro estadual e presidente da Comissão Estadual de Direitos Políticos e Eleitoral da OAB/ES.

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23 de outubro de 2023, 14h21

Muito embora sem previsão de aprovação, a Câmara dos Deputados concluiu a votação da denominada "minirreforma eleitoral" e, dentre os diversos pontos debatidos, gerou grande debate a exigência de votação igual ou superior ao quociente eleitoral para disputa das cadeiras na segunda fase de sua distribuição.

De fato, assim restou aprovado o caput do artigo 109 do Código Eleitoral, que somente terão direito às famigeradas "sobras eleitorais" aqueles partidos "que tenham obtido votação igual ou superior ao quociente eleitoral".

Para alguns críticos da redação aprovada, seria um "retrocesso absurdo" ou que isso prejudica a democracia na medida em que dificultaria o acesso às vagas nos parlamentos dos partidos menores, violando o pluralismo político, a lógica do sistema representativo e o atual modelo vigente.

Nesse sentido, este artigo pretende analisar, especialmente numa perspectiva histórica, se esta mudança encontra-se de acordo ou não com a Constituição, em especial com a redação formulada pela Emenda Constitucional 97/2017, que institui o término das coligações de partidos e instituiu "cláusulas de barreira" para o acesso aos fundos públicos de financiamento eleitoral. Para o leitor mais apressado, já adianto que a forma aprovada me parece constitucionalmente adequada ao espírito do artigo 17 da Constituição, senão vejamos:

Análise histórica prévia a EC 97/2017
Desde a publicação da Lei nº 6.767 de 20 de dezembro de 1979, em que foi decretado o fim do bipartidarismo artificial instituído pelo regime militar (Arena e MDB), ocorreu um movimento de incentivo à disseminação de partidos políticos no Brasil, dentro da ideia de que a pluralidade de ideologias políticas é parte indissociável da democracia.

De pessoas jurídicas de direito público (entidades estatais), os partidos passaram à condição de pessoas jurídicas de direito privado na nova Constituição, cuja personalidade jurídica surge com o registro no cartório de pessoas jurídicas, nos estritos termos do § 2º do artigo 17 da Constituição. Também como resultado da própria fragmentação política da Assembleia Constituinte, a liberdade de criação partidária foi considerada cláusula pétrea, incluindo a sua fusão, incorporação e extinção.

De fato, com a promulgação da Constituição de 1988, seria legítimo que surgissem variadas ideologias políticas que, de fato, legitimam a criação de partidos políticos. Mas no caso do Brasil a criação de partidos ocorreu em virtude do fisiologismo de muitos dirigentes partidários, que viram na criação de partidos políticos a oportunidade de fazer "balcão de negócios", operando de aluguel períodos eleitorais, visando exclusivamente a angariar mais dinheiro público e tempo de rádio e TV.

De maneira contrária a este fenômeno, o Congresso alterou a lei de partidos para instituir uma espécie de "cláusula de barreira", mecanismo segundo o qual limitavam-se o acesso aos fundos partidários de acordo com o desempenho obtido pelo partido nas urnas. Todavia, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a "cláusula de barreira" permitindo a continuidade do recebimento de recursos partidários por qualquer partido político.

Neste julgamento, o STF enfrentou as Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 1.351 e 1.354, as quais impugnaram a alteração promovida no artigo 13, 41, 48, 49, 56 e 57 da lei 9.096.

Tais artigos limitavam o acesso aos fundos públicos e tempo nas redes públicas de comunicação para partidos com, no mínimo, 5 % dos votos apurados e distribuídos entre um terço dos estados da Federação, sem proibir a criação de novos partidos políticos, mas tão somente restringiram o acesso aos recursos públicos por critérios meritórios objetivos.

Neste julgamento, dominou o entendimento de que as alterações legislativas seriam uma "cláusula de exclusão", "cláusula de barreiras" e de exclusão das minorias, com risco ao regime democrático.

Com efeito, ainda havia 1% de acesso ao fundo partidário a todos os partidos indistintamente, como se a existência de um partido político dependesse de verbas e aparelhamento estatal. Confirmando esta impressão, já foram feitos estudos demonstrando que, se houvesse sido aprovada, somente existiriam sete partidos em 2018, o que facilitaria a compreensão popular sobre o papel de cada uma das ideologias partidárias.

Como reconhecido pelo próprio ministro do STF Gilmar Mendes, este julgamento impediu uma tentativa de "racionalizar" o Sistema Partidário Brasileiro, fazendo com que o Congresso somente realizasse outra alteração nas regras partidárias 11 anos após este julgamento de 2006, ou seja, através da promulgação da Emenda à Constituição nº 97 de 04 de outubro de 2017.

Na prática, a cada novo partido que era criado no Brasil, se abria uma "nova janela política" para o parlamentar se desobrigar com os deveres de fidelidade pelo partido ao qual logrou êxito no pleito eleitoral, fomentado pela Resolução 22.610 de 2007, que previa que não perderia o mandato o parlamentar que migrasse para um novo partido criado.

Em virtude destas decisões judiciais, o sistema partidário brasileiro chegou a possuir quase 40 políticos registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), além de outros 24 em formação, segundo o noticiário da BBC Brasil.

A emenda constitucional 97/2017
Antes da proposição da emenda acima referida, o Congresso implementou minirreforma eleitoral em 2015, instituindo cláusulas mínimas de desempenho para acesso às vagas de mandato político. Ainda que indiretamente, o Congresso buscava racionalizar o sistema eleitoral privilegiando partidos e pessoas que tivessem voto, em virtude das distorções provocadas pela possibilidade de um puxador de voto eleger pessoas com centenas de voto (efeito Tiririca).

Nesse momento político, foi feita a PEC (Proposta de Emenda a Constituição) 36/2016, que buscava proibir as coligações partidárias, bem como instituir cláusulas mínimas de desempenho dos partido para acesso aos fundos partidários, tempo no rádio e televisão e funcionamento parlamentar.

Em sua justificativa, observou-se que a grande fragmentação partidária desestimulava a criação de legendas com alicerces programáticos e ideológicos, motivo pelo qual teve forte apelo político e foi aprovada gerando a emenda constitucional 97/2017.

De fato, desde o julgamento do STF, mas principalmente a partir da emenda constitucional 97/2017, com a retomada da inserção das "cláusulas de barreiras partidária", observou-se um movimento pendular inverso ao verificado até então, de tentativa de diminuir a fragmentação partidária e tornar menos tormentosa a relação entre o Executivo e o Legislativo na busca por consensos políticos de governabilidade.

É neste contexto de tentativa de fragmentação partidária que são promulgadas as leis que instituíram a figura das "federações de partidos", bem como as modificações nas regras das sobras partidárias feitos pela lei 14.211, que ainda disciplina a distribuição das "sobras eleitorais". De antemão, por esta perspectiva histórica, o Congresso buscou uma norma que privilegiasse os partidos que tivessem maiores votações, ou seja, atingindo o quociente eleitoral.

Assim, numa análise histórica, um dos objetivos da emenda 97 foi diminuir a fragmentação partidária, criando uma nova escala para o acesso dos partidos aos fundos públicos e acesso ao rádio e televisão nas eleições de 2018, progredindo até 2026, além de proibir expressamente a celebração de coligações nas eleições proporcionais, esta última com vigência postergada para as eleições municipais de 2020.

Embora parte da doutrina considere que esta Emenda nº 97 teve por finalidade ajudar os "grandes partidos", é possível entendê-la sob a ótica da necessidade de racionalização do sistema político, com a diminuição da fragmentação partidária no Congresso, o que, em tese, facilitaria a criação de "consensos públicos" em deliberações parlamentares e por consequência diminuiria o fenômeno do "presidencialismo de coalizão".

Embora aparentemente os grandes partidos políticos sejam os principais beneficiados com a distribuição das sobras, nada impede que um novo partido, com efetivo apoio popular se registre, tenha seu grupo de candidatos e os eleja, criando capilaridade nacional. Bem ou mal, foi um critério objetivo de êxito para se estabelecer o percentual do recebimento de fundo partidário e inserção no horário eleitoral.

Com relação à eficácia, a emenda à Constituição nº 97 de 2017 teve seus efeitos postergados para as eleições municipais de 2020, sob a justificativa política de que o fim das coligações alterava profundamente as regras políticas, muito embora pudesse ter sido aplicada para as eleições gerais de 2018. Politicamente, tratou-se de tentativa de sobrevivência política dos integrantes daquele poder constituinte reformador.

Politicamente, o término das coligações gerou maior respeito aos Partidos e a formação de reais "grupos políticos" para a disputa do pleito eleitoral, situação que era colocada em segundo plano quando existia a possibilidade de coligações nas eleições proporcionais, quando um candidato único poderia se coligar e ser eleito, inclusive elegendo pessoas com poucas centenas de votos em Estados como São Paulo (efeito Tiririca).

Lei 13.488/2017
Acesso às "sobras eleitorais" a qualquer partido político

Em nosso entender, numa contradição com a emenda constitucional 97, naquele mesmo ano, o Congresso também editou a Lei 13.488/2017, permitindo aos partidos que não atingiram o quociente eleitoral a disputarem as "sobras eleitorais", tendo vigência nas eleições municipais de 2020, mediante nova redação do § 2ª do artigo 109 do Código Eleitoral: "Poderão concorrer à distribuição dos lugares todos os partidos e coligações que participaram do pleito".

De fato, esta norma redundou na permanência da fragmentação política em nível municipal, bem como o fato de que dificilmente algum partido conseguiu eleger mais do que três vagas nas Câmaras de Vereadores. Provocado através da Ação de Inconstitucionalidade 5.420 por violação à emenda constitucional 97, foi decidido que era constitucional esta mudança legislativa.

Na prática aumentou-se o número de partidos com vagas nas câmaras de vereadores, fazendo que os prefeitos quase nunca consigam a maioria de Vereadores de seu partido eleito para governar, ocasionando a manutenção do fenômeno do "presidencialismo de coalizão", isto é, a necessidade do Executivo em ter que dialogar com outros partidos que não compuseram sua base ideológica ou de apoio eleita, o que muitas vezes acaba descambando para o famigerado "toma lá dá cá".

Sobre este assunto, o magistério do professor Jaime Barreiros Neto em sua obra Direito Eleitoral onde disserta às folhas 123:

"É inegável que em um sistema pluripartidário, como o existente no Brasil, a formação de coalizões entre partidos políticos para a formação dos governos, se torna fundamental ao alcance da governabilidade. Dificilmente, em um sistema pluripartidário, um partido político, isoladamente, conquistará base de apoio parlamentar suficiente para governar, fato que incentiva a formação destas coalizões."

Diante desse contexto, observa-se que a regra de divisão das sobras eleitorais instituída pela Lei 13.488/2017 estava em desarmonia com a lógica do sistema proporcional estabelecido pela Constituição, além de contrariar as regras contidas na Emenda Constitucional nº 97/2017.

O retorno da exigência de votação mínima para acesso às sobras eleitorais: a atual regra “meio termo” da divisão das "sobras eleitorais"
O projeto de lei 783/2021, que redundou na atual lei 14.211, que disciplina a divisão das cadeiras nos Parlamentos, teve origem no Senado em 8 de março de 2021.

Sua justificativa foi adequar o Código Eleitoral à emenda constitucional 97/2017, com a finalidade específica de revogar as disposições da lei 13.488/2017, que permitia a qualquer partido político participar da divisão de vagas nas sobras eleitorais, conforme justificativa do projeto:

"É necessário, portanto, que haja uma redefinição do critério das sobras eleitorais, a fim de que a distribuição seja realizada somente entre os partidos que obtiverem quociente eleitoral."

O texto aprovado no Senado não fazia nenhuma menção ao desempenho individual de candidatos, mas tão somente à necessidade do desempenho do Partido em 70% do quociente eleitoral:

§ 2º Só poderão concorrer à distribuição dos lugares os partidos que tiverem obtido, no mínimo, 70% (setenta por cento) do quociente eleitoral, desprezada a fração se igual ou inferior a meio e equivalente a um se superior.

Infelizmente, a redação final do artigo, limitando o acesso às sobras eleitorais para partidos que tivessem atingido 80% do quociente eleitoral, está gerando inúmeros questionamentos que redundaram no ajuizamento das ADI´s 7.228, 7.263 e 7.325, que ainda se encontram sob apreciação do STF na presente data.

Por fim, a Câmara dos Deputados aprovou novas regras para a distribuição das cadeiras da Câmara, disciplinando que o acesso às vagas será dos partidos que atingirem o quociente eleitoral na primeira e segunda fase, e permitindo a todos os partidos o acesso às sobras eleitorais, caso nenhum partido tenha atingido votação superior ao quociente eleitoral, ao nosso juízo, de maneira coerente com o que decidiu o STF até o presente momento.

Conclusão
Pelo exposto, considerando todo o histórico de tentativa de diminuição de fragmentação partidária, concluímos que o projeto aprovado na Câmara dos Deputados é constitucional quando volta a exigir a votação mínima dos partidos políticos para acesso às vagas nos Parlamentos nas primeiras e segundas fases das distribuições de cadeiras. Lembrando, esta regra sempre foi considerada desde o início do Código Eleitoral em 1965, tendo sido alterada somente em 2017 e na última reforma eleitoral de 2020.

E o que resta aos "partidos pequenos"? Unirem-se com outros partidos com ideologias semelhantes em federações de partidos e conquistar o apoio do povo, por meio do voto.

Autores

  • é advogado, procurador da Câmara Municipal de Serra (ES), mestre em história social das relações políticas, especialista em teoria da Constituição e Direito Constitucional e conselheiro estadual e presidente da Comissão Estadual de Direitos Políticos e Eleitoral da OAB/ES.

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