Diário de Classe

Como sobrevivem as democracias? 

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21 de outubro de 2023, 16h33

O constitucionalismo garante a democracia? Como poderíamos melhorar nossas instituições democráticas e seus arranjos? Essas foram algumas das perguntas que grandes pensadores brasileiros se esforçaram para responder durante o VI Colóquio de Crítica Hermenêutica do Direito. Neste Diário de Classe, gostaríamos de apresentar algumas das principais ideias e proposições dos palestrantes de nosso último colóquio. 

A primeira fala do colóquio ficou a cargo de um dos protagonistas dos últimos grandes eventos da República brasileira. Com um toque de humor e uma eloquência admirável, o ministro do Supremo Tribunal Federal e professor da USP Alexandre de Moraes abriu o colóquio de forma brilhante, lançando-se no desafio de desvendar o que está por trás da sobrevivência das democracias diante das crises que enfrentam na contemporaneidade. 

O ministro nos provocou ao questionar como as democracias podem resistir a ataques modernos que são inéditos em vários aspectos. O ministro fez-nos refletir sobre como a extrema direita nos Estados Unidos e no Brasil percebeu a importância das redes sociais, espaços distantes dos meios de comunicação tradicionais. Alexandre traçou uma conexão intrigante entre a astúcia dos extremistas de direita como Steven Bannon, que aprenderam com os agentes da Primavera Árabe o potencial política das redes sociais. O ministro apontou que, enquanto os militantes árabes utilizaram as redes sociais para tentar promover a democracia e desafiar o status quo, a extrema direita usou o potencial das redes para atacar as instituições democráticas. 

O uso de algoritmos engenhosos e que direcionam mensagens específicas nas redes sociais, moldando narrativas sob medida para grupos específicos, criou uma espécie de lavagem cerebral coletiva que fez com que muitos indivíduos se radicalizassem. A mídia tradicional perdeu espaço para "especialistas de redes sociais" que falam da frente de suas estantes falsas de livros com ares de autoridade sem qualquer responsabilidade e com um alcance jamais visto. 

Os ataques às urnas, a manipulação de algoritmos e a persistente lavagem cerebral representaram ameaças sérias. Mas que em certa medida foram freadas no exercício das competências constitucionais pelas autoridades. Ele enfatizou a necessidade de responsabilizar aqueles que perpetuam esses ataques, reforçando a importância do Estado de Direito. 

No cerne de sua argumentação, Alexandre nos revelou que as democracias podem sobreviver com base em um binômio: uma sólida arquitetura institucional e a coragem dos atores envolvidos. Ele apontou para o exemplo do Brasil, onde a forma como os constituintes moldaram o sistema judiciário desempenhou um papel vital em garantir a democracia no país. Portanto, para sobreviver, as democracias precisam não apenas de boas estruturas e bons arranjos institucionais, mas também de agentes corajosos.  

Quem deu sequência à fala de Alexandre foi o professor da Unisinos, pesquisador da Universidade de Columbia e juiz federal Gabriel Wedy, que ressaltou que os atos do 8 de janeiro não se limitaram ao vandalismo, e, sim, foram atos de atentado à democracia instados por agentes políticos. Ele sublinhou a importância da distribuição de renda e da educação para fortalecer as bases democráticas. Wedy enfatizou que o Estado deve primariamente servir a propósitos cívicos, não meramente econômicos. Quando essa prioridade se perde, as pessoas passam a perseguir interesses individuais em detrimento dos interesses públicos e republicanos. Isso torna o Estado mais suscetível a crises democráticas, sendo fundamental evitar que o ressentimento se torne o principal fator político. 

Destacando uma abordagem de Direito e literatura, o professor da UFF e da Unesa Eduardo Manuel Val afirmou que o constitucionalismo por si só não garante a democracia! Bolívia, Venezuela e Equador são exemplos disso. O professor destacou, assim como o ministro Alexandre de Moraes, que a coragem dos agentes públicos para cumprir suas funções constitucionais é algo importante. Para o professor, as forças da democracia conseguiram resistir, mas o ovo da serpente das forças contra a democracia ainda está sendo gestado na América Llatina, e a popularidade em ascensão de políticos como Javier Milei é um demonstrativo disso. 

Com pitadas de Dworkin e Habermas, a professora da UFPR Vera Karam de Chueiri encerrou as falas da primeira noite destacando as relações entre constitucionalismo e democracias. As democracias constitucionais não nasceram sem conflitos ou disputas, mas, sim, foram traduzidas a partir do constitucionalismo como uma disputa contínua. Nos dizeres da conferência da professora, respondendo à pergunta do painel — o constitucionalismo garante a democracia? —, na verdade, não há constitucionalismo sem democracia, assim como não há democracia sem constitucionalismo. Ambos andam juntos, ainda que esse caminho seja tortuoso. Por isso, a professora alerta que grupos não liberais podem fazer uso do próprio constitucionalismo para ferir a democracia. Na sua opinião, então, para que ambos vinguem dentro de um plano político-liberal, há uma necessidade de um arranjo entre democracia e constitucionalismo que esteja aberto a mudanças.  

Mudanças devem ser vistas com a devida importância, para que se sedimente um grau de legitimidade. Constitucionalismo e democracia não podem ser conciliados de uma forma não controversa. A revisão judicial das leis pode ser jurídica e prudentemente justificável, mas tal revisão tem de ser realizada com critérios popularmente legitimados. 

Voltando à pergunta da professora: há como pensar em um constitucionalismo que não seja democrático ou em uma democracia que não seja constitucional? Assumindo um ponto de vista normativo, é possível pensar um constitucionalismo democrático, como um constitucionalismo não democrático. E é possível pensar em uma democracia constitucional e uma democracia não constitucional. O que importa é como o arranjo constitucionalista consegue defender a sua inexorabilidade do que significaram e significam os ataques e as tentativas de destruir esse arranjo. 

As falas do segundo dia do colóquio, na mesa intitulada "O papel do Judiciário na manutenção da democracia", foram abertas por Luís Rosenfield. O professor dos programas de pós-graduação em História e em Filosofia da PUC-RS fez uma fala mais voltada para a história do Poder Judiciário. Ele destacou que a Suprema Corte nunca foi fechada, porém lembrou dos expurgos que o STF sofreu durante o Estado Novo e a ditadura militar, quando a Suprema Corte não foi fechada, porém ministros democratas e legalistas foram afastados. 

Rosenfield destacou a importância do pensamento de autores e pensadores brasileiros como Alcides Lima, Pedro Lessa e Rui Barbosa. O professor lembrou que Barbosa era um campeão de perder Habeas Corpus no Supremo, porém a luta do jurista não foi à toa, suas tentativas de reconhecer liberdades individuais em um ambiente muito hostil ajudaram a moldar muitas das ideias que criaram o ambiente democrático que temos hoje. Ideias de liberdade, de autonomia dos poderes e sobriedade sobre questões como a autonomia do Judiciário que foram se firmando no imaginário brasileiro. Em sua época, suas vozes pareciam ecos que ressoavam em um deserto, porém suas ideias permaneceram e ajudaram a formar muitos de nossos avanços institucionais. 

Rosenfield foi seguido por seu ex-orientador do doutorado, o professor coordenador do PPGD da Unisinos, especializado em Teoria do Estado e Direito Comparado, Anderson Vichinkeski Teixeira. Em sua exposição, ele traçou paralelos entre a situação da democracia constitucional brasileira e a democracia francesa. O professor destacou a existência dos backlashes institucionais que acontecem no Brasil e em outros países. Os backlashes, na sua visão, são retaliações de um poder a ações de outros. Um claro exemplo de backlash pode ser representado nas ações do Legislativo contra ações "iluministas" do Supremo Tribunal Federal, que, ao pautar causas progressistas como aborto, descriminalização das drogas etc., acaba causando um refluxo institucional que faz com que tais direitos acabem recrudescendo ainda mais nas mãos do Legislativo. 

Na segunda noite do evento, a mesa "Como compreender a democracia?" contou com uma abertura do economista, empresário e engenheiro Eduardo Moreira. O palestrante destacou nossos déficits democráticos, a partir do que entendemos pela palavra democracia, que deve ser muito mais do que o "simples" sufrágio universal. Para Moreira, democracia também é inclusão, democracia também é justiça e justiça também é equidade. E temos um déficit disso no Brasil. Para ilustrar o ponto, Moreira relatou que foi a Dourados (MS) por recomendação de João Pedro Stédile, uma cidade de aproximadamente 200 mil habitantes, e diz que viu na cidade uma situação perturbadora. Segundo Moreira, Dourados, originalmente um grande território indígena, é a Faixa de Gaza brasileira. Lá, pessoas morrem assassinadas todos os dias, indígenas são mortos como bichos na cidade. A morte é banalizada e ricos e pobres estão separados por uma barreira enorme. Narrando diversos casos reais que vivenciou, o economista destacou que o patrimonialismo e a falta de republicanismo são uma infeliz marca da desigualdade no Brasil e que, para termos justiça e democracia, precisamos concretamente combater isso. 

A segunda fala da noite foi do professor e promotor de Justiça do MP-RS Francisco Borges Motta, que falou diretamente de Cambridge, onde está realizando seus estudos sobre a ruptura democrática. O professor começou sua fala descrevendo o que é democracia constitucional, que, segundo ele, envolve uma forte relação entre soberania popular e limitação de poderes. 

O professor falou sobre a ascensão do populismo, que se materializa em uma derrocada antidemocrática e no antipluralismo que acontece quando a democracia deixa de ser para todo o povo e passa a ser apenas para a suposta "parte virtuosa do povo". Isso, somado a uma derrocada institucional, é uma das mais antigas e famosas receitas para destruir a democracia através de populismos. O professor destacou que agentes do Direito e pesquisadores da democracia têm de perceber e denunciar quando isso começa a acontecer. As democracias vêm sendo desconstruídas por dentro e não mais por tanques nas ruas. Temos de combater o uso abusivo do Direito por líderes populistas que tentam atacar as estruturas institucionais da democracia. Temos de combater o "legalismo autoritário", e também temos, como cidadãos e juristas (lawyers), de combater o uso do Direito contra a democracia. No Ocidente contemporâneo, os autocratas não vêm mais acompanhados de falanges de homens armados, mas, sim, de pessoas que pensam formas "jurídicas" de minar as instituições. Esses atos são extremamente hostis à democracia.  

Motta lembra de Mark Tushnet, que propõe que a proteção da democracia constitucional cabe não só aos juristas, mas aos jornalistas e à cultura da população. Não basta protegermos a democracia apenas por meio do institucionalismo democrático. Precisamos de instituições públicas cujas tarefas fundamentais sejam a defesa e a tutela das democracias e das instituições democráticas. Precisamos pensar em arranjos institucionais que incluam nas funções de instituições como o Ministério Público e os Tribunais de Contas a defesa da democracia. As Constituições não se salvam a si mesmas, elas precisam de pessoas e de modos de agir que incorporem reações responsivas a hostilidades autocráticas. Para o professor, a democracia precisa perceber atos hostis a ela como sendo antijurídicos. Portanto, precisamos de uma democracia militante: as regras da Constituição não podem servir de salvaguarda para as pessoas que querem destruir a democracia. A democracia não pode ser um pacto suicida, ela deve se proteger. 

Na última fala da noite, e encerramento do evento, contamos com nosso coordenador. O que podemos aprender, afinal, com o evento? O professor Lenio Streck, para encerrar as falas, começou com uma provocação. Afirmou o professor, falando da obra Como as democracias morrem, dos cientistas políticos americanos  Steven Levitsky e Daniel Ziblatt: "Sou chato com isso, mas sempre acho que aqui no Brasil nós vivemos as coisas antes de elas serem serem publicadas por autores estrangeiros famosos; somos colonizados também nesse ponto." 

Streck alerta que, como num palimpsesto, em que a pergunta deve ser invertida, não se deve mais explicar platitudes de como as democracias chegam ao fim, mas, sim, deve-se explicar o fenômeno de como elas sobrevivem. Assim, o professor alertou para o componente contingencial de nossa salvação democrática. Não que seja menosprezável o papel do Supremo, que de fato salvou a democracia brasileira, nas palavras do professor, mas não se pode deixar de fazer o alerta de que nosso sistema ficou à mercê do protagonismo judicial para salvá-lo. Muitas instituições com as quais contávamos falharam conosco, entre elas o Ministério Público e a própria imprensa, pilares importantes de qualquer democracia que se diga liberal. Dessa forma, o alerta que fica de Streck é que possamos construir bases para uma democracia substantiva, que não dependa do protagonismo de atores individuais para salvá-la, para que, assim, não precisemos mais sobreviver, mas, sim, vivenciar e compreender a democracia. 

Desinformação, ódio, desequilíbrios institucionais e a desigualdade são algumas coisas que os professores destacam que merecem ser observadas e tratadas como verdadeiros predadores da democracia. As respostas para a pergunta "como as democracias sobrevivem?" são múltiplas, mas todas elas passam pela vivência democrática substantiva, com opinião pública a partir de uma esfera pública, com economia pujante, mas Justiça distributiva, mas também com juristas que se importem com o Direito e com a Constituição, que contribuam para a educação jurídica para que esta siga avançando — e não regredindo — na formação de novos juristas, que também levem os direitos a sério e sigam avançando no projeto democrático. Constitucionalismo e democracia, faces da mesma moeda, são, nas palavras de Streck, fazer Direito pelo Direito. Todos os juristas e acadêmicos citados neste texto nos clamam pelo mesmo: que possamos responder à altura ao chamado desse projeto democrático. 

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