Diário de Classe

Princípio da legalidade e a superação do positivismo jurídico

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  • é doutorando em Direito pela Unesa bacharel em ciências militares (Aman) e em Direito (Unesa) mestre em Administração (UFF) professor de Direito Tributário do Toth Concursos e membro do Dasein.

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7 de outubro de 2023, 8h00

Falar em segurança jurídica preconiza ter um mínimo de previsibilidade nas sentenças jurídicas. Nesse sentido, devemos buscar certo grau de constrangimento epistemológico para se evitar o solipsismo. Como afirma o professor Lenio Streck, "a doutrina jurídica deve ter um papel prescritivo, sob pena de ser apenas um discurso que sacramenta as legislações e decisões judiciais…mecanismo de controle das manifestações arbitrárias" [1]. A doutrina jurídica é vasta bem como os inúmeros princípios jurídicos. Princípios com densidade deontológica, ao contrário do inundamento de standards valorativos que proporcionam uma abertura interpretativa, fenômeno denominado pelo professor Lenio Streck de Pamprincipiologismo [2].

Decorre dessa vastidão doutrinária e principiológica que o presente artigo se debruça em questionamentos a respeito do positivismo jurídico e do princípio da legalidade, onde se busca investigar o confrontamento da mencionada teoria e do descrito princípio na construção ou seu afastamento das decisões judiciais. Esse é, portanto, o recorte teórico.

O positivismo jurídico, em prima facie não pode ser confundido com a mera aplicação da letra fria da lei. Tal descrição carece de sustentação teórica. Na verdade, o positivismo jurídico abrange doutrinadores de pensamentos jurídicos diverso, pode ser visto em sua versão clássica em que o material jurídico é produzido por uma autoridade humana legitimada, na França a lei elaborada pelo legislador nacional; na Alemanha a jurisprudência dos conceitos produzidos por juristas-professores; e na Inglaterra a jurisprudência analítica (precedentes proferidos pela autoridade política competente) [3].

De pronto se observa que o positivismo vai muito além do que a mera aplicação da lei. O que se busca demonstrar no presente trabalho é que os juristas não podem ter uma visão reducionista do positivismo, pode-se até buscar outro embasamento teórico sem, contudo, conduzir um parecer ou decisão refutando erroneamente o positivismo jurídico. No entanto, não há a pretensão de se aprofundar nas teses positivistas de autores tais como Jeremy Bentham, John Austin, Hans Kelsen, Herbert Hart e Josef Raz. O que se busca é demonstrar a complexidade e a diversidade do positivismo jurídico e, assim, provocar angústia epistemológica parafraseando o professor Lenio Streck.

Ademais poder-se-ia perguntar de que positivismo se trata, da concepção do Direito como um conjunto de normas jurídicas defendida por Kelsen e sua Teoria Pura do Direito com o positivismo normativo, em que "o Direito a aplicar forma, em todas as hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível" [4]; ou o positivismo analítico de Hart e sua tese da textura aberta, onde percebemos "imprecisão linguística na qual se funda a construção das normas jurídicas. A normatividade que garante um pouco de certeza à esfera jurídica é a mesma que se desintegra diante dos engodos da linguagem" (BAHIA, 2016, p. 228).

Há ainda outra distinção: positivismo inclusivo ou de um positivismo exclusivista, onde o cerne da questão é na admissão ou não da moral como ferramenta integrante do que é o Direito. Nesse sentido no positivismo jurídico inclusivo "a identificação do que é o direito não depende necessariamente de critérios ou argumentos morais, embora possa circunstancialmente fazê-lo" (TAVARES, 2008, p. 403). Por outro lado, segundo Josef Raz, basicamente no positivismo jurídico exclusivista, a única fonte do direito é a autoridade, assim reconhecida, ou por sua legitimidade, ou pelo exercício do poder de coação, independente de juízo de valor "é possível identificar o conteúdo do direito sem recurso a raciocínio moral" (RAZ,1998, p.1–20).

Para se superar o objetivo de se comentar o positivismo jurídico há também aqueles que acreditam ser o realismo, escandinavo ou o realismo norte-americano, nada mais que tipos de positivismo. Por exemplo o professor Lenio Streck afirma que parcela considerável da Corte Suprema brasileira e dos tribunais adota o positivismo jurisprudencialista no sentido em que constrói o fato social e sendo assim o Direito Novo tratando se, pois de um tipo de realismo onde o Judiciário assume o papel do legislador [5].

Ao se debruçar no entendimento de princípio, sobretudo, em uma época em que alguns juristas banalizaram ou deturparam o conceito de princípio, compensa-se dedicar algumas linhas ao seu entendimento de um princípio jurídico.

De início, de forma a buscar fomentar ruptura do senso comum, é importante dizer o que não são princípios. Princípios não são balizas morais do Direito e nem tão pouco recursos meramente argumentativos que fundamentam decisões discricionárias. A palavra princípio etimologicamente provém do latim principĭum, que significa "origem", "causa próxima", ou "início". No entanto, não se pode ter princípio como fundamento de validade do Direito como se pode decorrer da assertivas de Roque Antonio Carraza em que "Princípio é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do Direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam" [6], ou de Paulo Bonavides em que "os princípios são, por conseguinte, enquanto valores, a pedra de toque ou o critério com que se aferem os conteúdos constitucionais em sua dimensão normativa mais elevada" [7].

Segundo Lenio Streck, há de se observar qual o tipo de princípio se quer identificar, qual seja: princípio geral do Direito; princípio jurídico epistemológico; ou os princípios constitucionais. Os princípios gerais do direito estão impregnados pela ideia de justiça e moral em uma espécie de realidade ideal. Desta forma os mencionados princípios suprem o modelo exegético-conceitual orientando o sistema jurídico [8]. Por outro lado, mesmo em havendo, por vezes, similitudes, o princípio constitucional em arraigado de pragmatismo como se pode observar: princípios jurídico-constitucionais só têm sentido funcionalmente (essa questão vem conquistando terreno no direito tributário, por exemplo). Ou seja, dentro de uma dimensão absolutamente pragmática, o direito não tem DNA. Já princípios jurídicos epistemológicos, são assim denominados porque "pretendem ser os elementos organizadores do estudo lógico-sistemático de uma disciplina jurídica especializada" [9].

No contexto brasileiro a Constituição traz em seu artigo 5 º, inciso II que: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Sendo assim, os entes federativos que detém legitimidade de elaborar leis através dos respectivos representantes do poder legislativo vinculam o agir ou deixar de agir. Não deixando de recordar que medidas provisórias, decretos e leis delegadas são atos equiparados às leis formais. Desta forma, no Estado liberal de direito (Rechtsstaat) existe o domínio da lei (rule of law), a atuação do Estado é balizada pela lei vedando seu exercício arbitrário.

Para finalizar os pormenores dos elementos que constroem o tema da pesquisa, cumpre-se apenas comentar sobre a legalidade tributária que alicerça o Sistema Tributário Nacional e encontra-se fundamentado no no artigo 150, I, da CF c/c artigo 97 do CTN, em que a lei deverá conter todos os elementos da obrigação tributária (dimensão de regra da Legalidade), a cavaleiro da doutrina que encerra o conceito do princípio da legalidade tributária: "A legalidade tributária exige que os tributos sejam instituídos não apenas com base em lei ou por autorização legal, mas pela própria lei. Só à lei é permitido dispor sobre os aspectos da norma tributária impositiva: material, espacial e temporal, pessoal e quantitativo. A legalidade tributária implica, pois, reserva absoluta de lei, também designada de legalidade estrita" (PAULSEN, 2020, p.200).

Construído todo arcabouço teórico observa-se o posicionamento Supremo Tribunal Federal, quanto ao julgamento do RE nº 1.043.313 e da ADI nº 5.277 fixar seguinte tese de repercussão geral: "É constitucional a flexibilização da legalidade tributária constante do § 2º do art. 27 da Lei nº 10.865/04, no que permitiu ao Poder Executivo, prevendo as condições e fixando os tetos, reduzir e restabelecer as alíquotas da contribuição ao PIS e da COFINS incidentes sobre as receitas financeiras auferidas por pessoas jurídicas sujeitas ao regime não cumulativo, estando presente o desenvolvimento de função extrafiscal". Recomenda-se a leitura de SCHOUERI, FERREIRA, e LUZ [10] que realizou um estudo completo sob o mencionado julgamento. Para o recorte teórico bastaria o seguinte questionamento: há possibilidade de flexibilização da legalidade tributária a partir de entendimento contrário ao previsto no texto constitucional? Se positiva a resposta, tal entendimento não abriria perigoso precedente quanto as garantias constitucionais, sobretudo de proteção ao contribuinte?

Por outro lado, quando se observa o Recurso Extraordinário (RE) 677.725, com repercussão geral (Tema 554) e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.397 que fixou a tese "O Fator Acidentário de Prevenção (FAP), previsto no artigo 10 da Lei 10.666/2003, nos moldes do regulamento promovido pelo Decreto 3.048/1999 (RPS) atende ao princípio da legalidade tributária (artigo 150, inciso I, da Constituição Federal de 1988)", em que pese em um primeiro olhar semelhantes, com um estudo atento, não se observa a flexibilização da legalidade tributária e sim seu reforçamento. Cumprindo a mesma linha, diversa da flexibilização da legalidade, o próprio ministro Dias Toffoli propôs a tese de repercussão geral: "São inconstitucionais o Decreto nº 3.048/99 e a Portaria MPAS nº 1.135/01 no que alteraram a base de cálculo da contribuição previdenciária incidente sobre a remuneração paga ou creditada a transportadores autônomos, devendo o reconhecimento da inconstitucionalidade observar os princípios da congruência e da devolutividade". Nem tampouco o julgamento do RE nº 343.446 (contribuição para custeio do SAT) parece validar a mencionada tese relativa ao Tema 554. Resta a pergunta: quais as condições epistemológicas para se flexibilizar o princípio constitucional da legalidade tributária?

Ora, no mínimo se observa que não é pacífico o entendimento quanto o cabimento absoluto ou não do princípio da legalidade tributária por parte do STF. Cumpre salientar que o texto constitucional explicitou as possibilidades de mitigação do mencionado princípio.

Questiona-se, portanto, se trata de conduta positivista se valer da lei ou de princípios? Ser positivista implica em erro e não aplicação da resposta constitucionalmente adequada no cenário contemporâneo? Pode-se afastar a aplicação do princípio da legalidade quando sua interpretação literal se basta para aplicação no caso concreto [11]?

O que se buscou neste artigo foi provocar a angústia epistemológica. Foi, mesmo que de maneira tênue, indicar haver mais tipos de positivismo do que o clássico, e também mostrar que seria raso afirmar que o positivismo jurídico afasta a possibilidade de interpretação e, é, em todos os tipos apartado da moral. E foi, por fim, indicar que, por vezes, o legislador foi feliz em seu labor, e a mera literalidade encerra o que buscou normatizar, sobretudo na constituição, não havendo melhor resposta do que aquela constitucionalmente adequada.

 


Referências

BAHIA, Charles Nunes. Da textura aberta da linguagem à textura aberta do direito: o contributo de Wittgenstein e Waismann à filosofia jurídica de Hart. In: Revista Justiça do Direito, [S. l.], v. 30, n. 2, p.228, 15 ago. 2016.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13º Edição. Editora Malheiros. 2006. p. 282.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 05 out.2023.

BRASIL. Lei n. 5.172 de 25 de outubro de 1966. Sistema Tributário Nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm>. Acesso em: 05 out.2023.

CARRAZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 8º Edição. Editora

Malheiros. São Paulo. 1996, p.29.

CADEMARTORI, Sérgio. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantiste. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 22-3.

KELSEN, Hans, "Foreword" to the Second Printing of Main Problems in the Theory of Public Law', in Stanley L. Paulson (ed.), Normativity and Norms: Critical Perspectives on Kelsenian Themes (Oxford, 1999; online ed, Oxford Academic, 22 Mar. 2012),p.3-22 https://doi.org/10.1093/acprof:oso/9780198763154.003.0001, accessed 3 Oct. 2023.

OLIVEIRA, Rafael Tomaz de O conceito de princípio entre a otimização e a resposta correta: aproximações sobre o problema da fundamentação e da discricionariedade das decisões judiciais a partir da fenomenologia hermenêutica / por Rafael Tomaz de Oliveira. 2007. p. 36

PAULSEN, Leandro. Curso de direito tributário completo. 11.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 200.

RAZ, J. "Postema on Law’s Autonomy and Public Practical Reasons: A Critical Comment." Legal Theory 4 (1). 1998. 1–20. https://doi.org/10.1017/S1352325200000896, accessed 3 Oct. 2023.

TAVARES, Rodrigo. Neopositivismos: novas ideias sobre uma antiga tese. In DIMOULIS, Dimitri. DUARTE, Écio Oto. (Orgs.) Teoria do direito neoconstitucional: superação ou reconstrução do positivismo jurídico? São Paulo: Método, 2008. p. 403

 


[1] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: cinquenta verbete fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento, 2020, P.63

[2] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: cinquenta verbete fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento, 2020, P.253

[3] Ibdem, P.263.

[4] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 5. ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 390.

[5] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: cinquenta verbete fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento, 2020, P.282.

[6] CARRAZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 8º Edição. Editora

Malheiros. São Paulo. 1996, p.29

[7] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13º Edição. Editora Malheiros. 2006. p. 282.

[8] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: cinquenta verbete fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento, 2020, P.369-370

[9] OLIVEIRA, Rafael Tomaz de O conceito de princípio entre a otimização e a resposta correta: aproximações sobre o problema da fundamentação e da discricionariedade das decisões judiciais a partir da fenomenologia hermenêutica / por Rafael Tomaz de Oliveira. 2007. p. 36.

[10] SCHOUERI, Luís Eduardo; FERREIRA, Diogo Olm; LUZ, Victor Lyra Guimarães. Legalidade tributária e o Supremo Tribunal Federal: uma análise sob a ótica do RE nº 1.043.313 e da ADI n. 5.277.– São Paulo, SP: IBDT, 2021.

[11] Recomenda-se a leitura do artigo Senso Incomum E a professora disse: "Você é um positivista" Revista Consultor Jurídico, 23 de agosto de 2012, 8h. Lenio Streck.

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