Ambiente Jurídico

Os sistemas jurídicos estão colaborando para aprofundar a crise ambiental

Autor

  • Andrea Vulcanis

    é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU) advogada mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR professora de Direito Ambiental pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

21 de outubro de 2023, 8h00

Inicio o artigo de hoje a partir do pensamento de Albert Einstein manifestado na célebre frase "insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes", com uma pergunta: o que precisa mudar?

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O último mês mostrou catástrofes climáticas no Brasil e no mundo que pareciam inimagináveis. A seca do Rio Solimões e do Rio Negro, no Amazonas, aqueles gigantes hídricos, quase oceânicos, em meio à floresta amazônica, talvez seja a visão mais pungente a mostrar que algo grave, a nível planetário, está acontecendo.

As enchentes no Rio Grande do Sul e Santa Catarina também mostram que o desastre não é só ambiental, físico ou patrimonial. Impactos psicológicos e traumas profundos são causados nas pessoas que vivenciam experiências em que a morte é iminente.

Também é importante trazer alguns relatos em um artigo jurídico, para que o senso humanitário, a compaixão e a vontade de mudança aflorem no coração do leitor: "Ouviu-se filhos que receberam telefonemas de despedida dos pais idosos, antes que a chuva os levasse. Ouviu-se pessoas que receberam pedidos de socorro e lidam com a culpa de não terem conseguido ajudar. Relatos de uma mulher que foi salva pelo marido, mas viu ele ser levado pela correnteza" [1].

Os eventos e desastres ambientais em todo planeta foram a tônica dos últimos meses nas redes de comunicação: desastre na Líbia, tornados na China, terremotos no Afeganistão, incêndios florestais no Havaí, na Grécia e na Argentina, onda de calor histórica nas Américas ultrapassando temperaturas de 45°. Cientistas apontando que a temperatura média, no mês de julho de 2023, foram as mais altas em cem mil anos em todo o mundo.

Os relatos instigam um senso de urgência mas também uma emoção humana como o medo. Este, por sua vez, aciona um mecanismo de proteção chamado de "luta ou fuga" que gera reações diferentes nas pessoas: ora é estabelecido um estado de prontidão para correr e fugir, ora a reação é a de paralisia e congelamento, ora, e não menos frequente, entra-se em estado de contra-ataque ao elemento provocador da situação.

Em qualquer dessas situações, o ser humano está física e mentalmente adaptado para a reação instintiva e irracional — também presente em nossos irmãos animais —, à qual falta, entretanto, a essência eminentemente humana, a inteligência, compaixão e sabedoria. Evidentemente, algo nessa atual civilização não está dando certo. O que se propõe é parar agora, refletir e construir coletivamente uma mudança desse curso da história que não seja reativa e irracional.

Nesse contexto, se há uma incursão clara de consequências das mudanças do clima, se há pessoas morrendo como decorrência, se há medo diante desses fatos e há uma reação esperada, a questão é saber qual reação deve ser adotada, qual mudança deve ser iniciada.

Isso porque o medo nos imporá, muito provavelmente, um recrudescimento — também no campo jurídico — sobre a adoção, interpretação e aplicação de leis e normas que envolvam as políticas de proteção ambiental. Parecerá óbvio que já não é mais hora de que o sistema jurídico não sirva para outra coisa, nesse campo, que não seja a proteção integral dos biomas e ecossistemas, contra tudo e contra todos. Aliás, esse posicionamento nos governos e nos órgãos de justiça já está em curso há algum tempo.

Essa talvez seja a reação mais óbvia, mais fácil e mais objetiva que a sociedade possa adotar como uma resposta imediata ao problema. Contudo, não é certamente a mais eficaz.

E, a par dos estudos científicos que apontam causas naturais para as mudanças do clima, caracterizados por "ciclos controlados astronomicamente pela luz, pelo Sol, pelos planetas e até mesmo pela Galáxia" [2], é inequívoco que a mesma ciência atribui a causas antrópicas as atuais alterações climáticas provocadas no planeta pelos altos índices de emissão de gases de efeito estufa, que contribuem com a elevação da temperatura média da Terra.

Sobre as questões astronômicas parece que não há o que possa ser feito. Porém, para as causas antrópicas, uma ação civilizacional é esperada e até prioritária para que a própria vida humana possa continuar a existir.

E aqui parece que se situa a chave do debate que este artigo pretende inspirar, pelo viés jurídico.

Como dito acima, em tempos de medo e de emergência, tudo o que não é desejável é a ativação coletiva do mecanismo antes mencionado de "luta ou fuga", seja porque ele é instintivo e, portanto, desprovido de inteligência, seja porque não se tem para onde fugir ou correr, seja também porque a paralisia, ou quase paralisia, que parece ter sido a opção adotada mundialmente, evidentemente é perigosa.

Nesse ponto, chamo atenção para a última estratégia do mecanismo de defesa de "luta ou fuga" que é o contra-ataque ao elemento provocador da situação que, ao tempo que parece ser a estratégia de mais fácil execução e de pronta resposta, pode, tanto quanto as demais, ser tão ou quanto mais prejudicial.

Isso porque se optarmos pela ação reativa, o setor produtivo passará a ser atacado, como já o é, aliás, figurando como o grande vilão da história porque, ao encabeçar o viés econômico, se torna o inimigo perfeito, dado que não raras vezes é qualificado pela cobiça e ganância, o que fratura as relações entre meio ambiente, sociedade e economia, que deveriam ser harmônicas no tripé da sustentabilidade.

Esse pensamento, que elege um inimigo, para abatê-lo, disfarçado de justiça ou de gestão, já vem marcando os sistemas jurídicos quando o tema é o ambiental e, na falta de atenção quanto a essa circunstância, estar-se-á contribuindo com o aprofundamento da crise, ao contrário do que se possa imaginar. Isso porque, na luta, qualquer dos lados pode sair vencedor.

Importante destacar que o conflito e a polarização no tema do meio ambiente são notórios. Há de um lado os ambientalistas que sob a bandeira de defesa da vida julgam, criticam e condenam as ações perpetradas pelo outro lado desse conflito que é o setor produtivo, de modo geral e mais fortemente, no Brasil, o agronegócio e a mineração.

A serviço desse conflito ou, melhor, da pacificação desse conflito está o sistema jurídico e de justiça, que utiliza-se do poder estatal para o exercício da força, em nome da coletividade. Nesse viés, todo o Poder Judiciário dirimindo e arbitrando conflitos, com base na interpretação das normas. O Poder Executivo no exercício do poder de polícia. Somam-se a esses o Ministério Público, como fiscal da lei, defensorias públicas, procuradorias estatais, tribunais de contas e assim por diante.

Não se olvide que o escopo da atuação estatal e sua missão primordial é gerir a pacificação social e a justiça. É para esse mandato que o poder público e as pessoas que o integram são dotadas de poder.

Chamo atenção para o fato de que, por trás do mecanismo de contra-ataque antes mencionado, reside uma profunda vontade de extermínio do outro. Como ensina o filósofo alemão Bert Hellinger "todo grande conflito pretende remover algo do caminho e, em última análise, destruí-lo. Por trás desses conflitos atua uma vontade de extermínio. De que forças ou medos ela se alimenta? Ela se nutre, principalmente, da vontade de sobreviver. Quando nossa vida é ameaçada, reagimos com a fuga para não sermos exterminados por um outro ou pela agressão, tentando liquidar o outro ou, pelo menos, colocá-lo em fuga. Tirar o adversário do caminho é o extremo da vontade de extermínio" [3].

Como ensina ainda Hellinger "a regulamentação jurídica mantém os conflitos mortais dentro de certos limites, principalmente porque o monopólio da força pelo governante impede a solução violenta de conflitos pelos indivíduos e por grupos subordinados”. Porém, prossegue o autor “essa ordem, que é imposta pela força (estatal), é simultaneamente conflito e luta, porém está a serviço da sobrevivência do grupo". Ressalto, a partir do trecho final do pensamento do autor, que o sistema jurídico está a serviço do grupo e não de um dos lados do conflito!

Logo, não é dado aos agentes que exercitam a força estatal atuar a partir da vontade de extermínio. Essa condição, no mais das vezes oculta nos mundos internos de cada um, certamente contribui para o agravamento da crise ambiental.

Estamos num momento crucial em que nos deparamos com um grande conflito, num cenário bastante desafiador. É preciso olhar, com profundidade, para todo o contexto ora trazido à luz com o entendimento de que uma mudança nesse panorama de crise climática e ambiental depende de que haja uma derivação na direção antes tomada e não um recrudescimento irracional e reativo, baseado no mecanismo de luta e fuga em que o ataque, baseado na vontade de extermínio, seja nossa única proposta civilizacional.

É preciso que se entenda que há ideias, fundamentos filosóficos que constituíram uma visão de mundo que trouxeram a civilização até aqui. O que move o mundo são ideias e não existe gestão pública ou privada, manifestação jurídica ou sistema de justiça, sem que por trás delas haja uma robusta teoria que as fundamentem.

Em outras palavras, ambientalistas e desenvolvimentistas atuam no mundo a partir de ideias validadas pela coletividade, aceitas e exercidas com legitimidade, portanto. Aqui, é preciso trazer à luz que ideias são essas que nos trouxeram até esse ponto de absoluta crise.

Nosso modelo de relação entre pessoas e a natureza parte da apropriação e uso dos "recursos" naturais ou dos "bens" ambientais. Observe-se que a ideia que transcende as palavras "recursos e bens" falam dessa apropriação, da sujeição da natureza à vontade humana a partir de um conceito filosófico de que somos separados e diferentes da natureza. Toda vez que nos referimos, consciente ou inconscientemente, a recursos e bens falamos da individualização, da apropriação, do tomar para si e é aí que reside o início de todo o problema que, inclusive, está constitucionalizado, no texto jurídico maior que inaugura, para a sociedade brasileira, a manifestação do contrato social sobre o tema meio ambiente:

"Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações."

Como se vê, a base fundamental jurídica da sociedade brasileira funda-se na ideia de que o meio ambiente é um "bem de uso comum". Portanto, um "bem" que é tudo o que se pode submeter ao poder dos sujeitos de direito (homens), como instrumento de realização de suas finalidades e que podem ser objeto de uma relação jurídica. E nesse contexto, da apropriação dos bens — porque se admite em todo o mundo a apropriação individual dos bens ambientais — a variável econômica, do dinheiro a serviço de indivíduos e da ganância, acabou por ganhar corpo, numa sociedade em que falha, não raras vezes, a ética.

A ideia original que provoca o conflito estabelecido entre ambientalistas e desenvolvimentistas está intrinsecamente ligada a essa noção fundante de separatividade entre homens e natureza e a partir disso, portanto, a possibilidade de subjugar a natureza aos desejos humanos — éticos e não éticos.

Registra-se que a cosmovisão das populações originárias não é a de apropriação, mas a do "ser-natureza". Não há um conceito de base de apropriação, exclusividade e separatividade porque os indivíduos humanos se veem como natureza. Há, no conceito fundante dessa cosmovisão, uma relação intrínseca de unidade entre humanos e meio ambiente que são, uma só coisa.

Essa a mudança fundamental de visão de mundo precisa ser imediatamente implementada, antes nas mentes e corações, nas ideias, pensamentos, nos sistemas legais, nos governos, nos sistemas jurídicos e na justiça. Com essa ideia concorda Capra quando diz: "As leis humanas, como as leis naturais, precisam ser entendidas como manifestações de uma ordem relacional em que o indivíduo não está sozinho, mas em conexão com outros habitantes vivos do planeta, com os quais compartilha poder, e que têm direito à igualdade de acesso aos commons globais. Esses habitantes não são apenas outros seres humanos, mas também outros animais, plantas e, em termos gerais, todos os ecossistemas da Terra" [4].

Sem essa mudança de paradigma — e aqui reside o que nos retira do mecanismo de reatividade — corremos o risco de ter um aprofundamento da crise com a colaboração dos sistemas jurídicos, uma vez que, formados por pessoas — juízes, advogados, procuradores etc. — estão optando por um dos lados do conflito entre ambientalistas e desenvolvimentistas, absorvidos pelo elemento que permeia o fundo do conflito que é o desejo profundo de extermínio do lado adversário que, contra-ataca ferozmente, não se sabendo, de antemão, o lado vencedor, mas sabendo-se que não há mais tempo para insistir nesse erro que nos trouxe até aqui.

Não é incomum vermos juízes, membros dos Ministérios Públicos, ministros, procuradores, advogados públicos, para citar somente os de carreiras jurídicas públicas, todos no exercício de poderes estatais — detendo, portanto, por delegação da coletividade, o exercício da força estatal, e tendo como missão pacificar os conflitos e realizar a justiça —, em posições absolutamente ativistas, em que escolhem um lado da causa e passam a militar em favor do lado escolhido.

O que há por trás disso: o desejo de extermínio do lado oposto. E o desejo de extermínio, em franca expansão e cada vez mais aberta e expressa manifestação, no exercício de poderes estatais, aprofundará a crise, porque somos todos humanos, todos uma única civilização, compartilhando um único Planeta. Não há mocinhos nem bandidos. Há ideias que nos trouxeram a todos até aqui. Urge amadurecermos nossa identidade humana coletiva para que todos juntos façamos parte da solução e isso não acontecerá por meio da eleição de inimigos, caminho adotado até aqui.

Na vida somos todos Um e somente por meio de novos pensamentos, novas atitudes e uma guinada totalmente em direção oposta é que seremos capazes de modificar os resultados, pois — encerrando, como começamos — "insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes".

 


[3] Hellinger, Bert. O Amor do Espírito na Hellinger Sciencia. Atman. Pg. 175.

[4] Capra, Fritjof. A revolução ecojurídica: o direito sistêmico em sintonia com a natureza e a comunidade. Fritjof Capra & Ugo Mattei. São Paulo: Editora Cultrix, 2018. Pg. 63.

Autores

  • é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás, procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU), advogada, mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR, professora de Direito Ambiental, pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

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