Opinião

REsp 2.091.647: hora de exorcizar o in dubio pro societate no rito do júri

Autor

  • Rodrigo Casimiro Reis

    é defensor público do estado do Maranhão assessor de ministra do Superior Tribunal de Justiça membro da Comissão Criminal do Condege e especialista em Direito Constitucional.

20 de outubro de 2023, 15h25

Dizem que para tudo na vida tem uma hora; mas, cá entre nós, como demorou para chegar a hora de exorcizar esse fantasma do in dubio pro societate no rito do júri.

E o mais impressionante é que esse fantasma nunca habitou um texto legal, tampouco tem seu significado extraído de algum raciocínio comprometido com o processo penal constitucional.

Simplesmente, em um belo dia (ou não tão belo assim, penso eu), algum gênio da lâmpada jurídica disse "in dubio pro societate, você existe em nosso ordenamento, vá e respalde a remessa de acusados ao Tribunal do Júri". E assim o coitado fez, acreditou em uma mentira repetida por mais de mil vezes e saiu por aí, vagando pelos fóruns e tribunais a conduzir, pelas mãos, denunciados para serem julgados pelos juízes de fato.

Pois bem. Enfim, alguém se virou para o fantasma e disse "I see dead people" [1] e o fantasma vai, aos poucos, se dando conta de que ele não existe no mundo real, de que é um princípio falacioso e que deve parar com essa "brincadeira" maldosa de se imiscuir em assunto tão sério como é o que diz respeito ao juízo de pronúncia.

E foi no julgamento do REsp 2.091.647/DF [2], que a 6ª Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça), em votação unânime, acompanhou o judicioso voto proferido pelo ministro relator Rogerio Schietti Cruz que, após lapidar digressão sobre o sistema da íntima convicção e do controle das decisões do Tribunal do Júri, fixou parâmetros sobre o standard probatório necessário para um juízo positivo de admissibilidade ao final do iudicium accusationis, concluindo, ao final, pela inexistência do suposto "princípio" do in dubio pro societate.

Confira-se trecho do voto proferido pelo referido relator:

"Compreendo, todavia, respeitada essa vertente distinta de pensamento, que o fato de não se exigir um juízo de certeza quanto à autoria nessa fase não significa legitimar a aplicação da máxima in dubio pro societate  que não tem amparo no ordenamento jurídico brasileiro  e admitir que toda e qualquer dúvida autorize uma pronúncia. (…)
Aliás, o próprio nome do suposto princípio parte de premissa equivocada, na medida em que nenhuma sociedade democrática se favorece pela possível condenação duvidosa e injusta de inocentes (…).
E digo suposto princípio porque o in dubio pro societate, 'na verdade, não constitui princípio algum, tratando-se de critério que se mostra compatível com regimes de perfil autocrático' (…)."

Referido precedente alia-se à recente decisão monocrática proferida pelo ministro Gilmar Mendes, nos autos do HC 227.328/PR [3], e ao julgamento do ARE nº 1.067.392/CE [4], no qual a 2ª Turma do STF (Supremo Tribunal Federal) rejeitou peremptoriamente a existência do indigitado "princípio" no rito escalonado do Tribunal do Júri.

Importante consignar que, passados mais de 30 anos da promulgação da Constituição Cidadã (documento que, permeado por ares garantistas, atribuiu novos significados e interpretações ao Direito Processual Penal), revela-se incongruente sustentar que a decisão de pronúncia seja lastreada em um brocardo que não encontra amparo legal, tampouco constitucional.

Nesse sentido, Rafael Fecury Nogueira [5] afirma que:

"Ao se delimitar a análise da legitimidade do in dubio pro societate no espaço atual do direito brasileiro não há como sustentá-la por duas razões básicas: a primeira se dá pela absoluta ausência de previsão legal desse brocardo (…); a segunda razão se dá em face da existência expressa da presunção de inocência no ordenamento constitucional brasileiro, conferindo, por meio de seu aspecto probatório, todo o suporte políticojurídico do in dubio pro reo ao atribuir o ônus da prova à acusação, desonerando o réu dessa incumbência probatória."

Na mesma toada, Aury Lopes Jr. assevera que [6]:

"Questionamos, inicialmente, qual é a base constitucional do in dubio pro societate?
Nenhuma. Não existe. (…)
Não se pode admitir que os juízes pactuem com acusações infundadas, escondendo-se atrás de um princípio não recepcionado pela Constituição, para, burocraticamente, pronunciar réus, enviando-lhes para o Tribunal do Júri e desconsiderando o imenso risco que representa o julgamento nesse complexo ritual judiciário."

Conforme sustentamos em sede doutrinária [7], "se o legislador ordinário previu a existência de um juízo positivo de admissibilidade a ser realizado por magistrado togado quando do encerramento do iudicium accusationis é porque entendeu necessário avaliar as acusações formuladas pelo parquet, reservando ao julgamento dos juízes de fato (sem formação jurídica) somente os casos nos quais tenham sido reunidos 'indícios suficientes de autoria ou de participação'" [8].

Eventual dúvida sobre a imputação delitiva ao final da fase preliminar do rito do Júri deve sempre ser solucionada com a aplicação do artigo 414, caput, do CPP e do princípio da presunção de não culpabilidade (que traz ínsito em si o princípio do in dubio pro reo), previsto no artigo 66.1 do Estatuto de Roma [9], no artigo 8.2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos [10] e no artigo 5º, LVII, da Constituição da República.

Até mesmo porque, como adverte Francesco Carnelutti, "a tortura, nas formas mais cruéis está abolida, ao menos sobre o papel; mas o processo por si mesmo é uma tortura" [11].

Porém, não encerro o texto sem antes advertir, tal qual Caetano Veloso e Gilberto Gil [12], "de que é preciso estar atento e forte" porque esse "fantasma" do in dubio pro societate ouviu, por muito tempo, a lenda urbana de que ele existe.

De fantasma, talvez ele tenha sofrido uma mutação e se transformado em um "princípio-zumbi", daqueles que, quanto mais se bate, mais ele caminha para a frente. Portanto, é preciso continuar recorrendo das decisões que o utilizam e repetindo, "I see dead people". Saravá!

 

 


[1] SEXTO sentido. Direção: M. Night Shyamalan. Estados Unidos da América: Hollywood Pictures Spyglass Entertainment The Kennedy/Marshall Company, 1999 (107 min).

[2] DJe 03/10/2023.

[3] DJe 15/05/2023.

[4] Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, PUBLIC 02/07/2020.

[5] NOGUEIRA, Rafael Fecury. Pronúncia: valoração da prova e limites à motivação. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, 2012. P. 215.

[6] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 18. Ed. São Paulo: Saraiva, 2021. P. 882.

[7] REIS, Rodrigo Casimiro. O descabimento de pronúncia a la Pilatos e a necessidade da fixação de um standard probatório constitucional ao final da instrução preliminar do rito do júri. In: AKERMAN, William; REIS, Rodrigo Casimiro; MAIA, Maurílio. Debates Contemporâneos da Justiça Penal: estudos em homenagem ao Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Brasília: Sobredireito, 2023. P. 59/76.

[8]Art. 413, caput, do CPP

[9] Promulgado pelo Dec. n. 4.388/02

[10] Promulgada pelo Dec. n. 678/92

[11] CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. 3. Ed. Leme: Edijur, 2019. P. 48.

[12] VELOSO, Caetano; GIL, Gilberto. Divino Maravilhoso. Rio de Janeiro: Phillips, 1968.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!