Repensando as Drogas

Imaginando um dia "D" na cruzada contra os entorpecentes

Autor

  • Felipe Morais Barbosa

    é juiz de Direito no TJ-GO (Tribunal de Justiça do Estado de Goiás) graduado em Direito pela UFJF (Universidade de Juiz de Fora); pós-graduado em Direito pela Emerj (Escola de Magistratura do Rio de Janeiro) mestre em Direito Constitucional pelo IDP (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Pesquisa) pós-graduando em Jurisdição Penal Contemporânea e Sistema Prisional pela Enfam (Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados).

20 de outubro de 2023, 8h00

O julgamento pelo STF do Recurso Extraordinário nº 635.659, referente à constitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006 (posse de droga para uso próprio), acendeu o debate sobre a política de drogas no Brasil.

ConJur
A tendência é que se estabeleça uma "quantidade-limite" para caracterizar a posse de droga como posse para "uso pessoal". Objetiva-se atenuar a preconceituosa análise do sistema de persecução penal ao classificar determinado indivíduo como usuário ou traficante.

O tema inundou o debate jurídico-político no país. Ainda que a decisão seja um avanço tímido, não tardou para que os neoconservadores [1] a criticassem de forma veemente.

O ex-presidente Jair Bolsonaro mencionou:

"(…) a liberação da maconha. Isso é inadmissível. Nós sabemos como começa, mas não sabemos como termina quem mergulha nessa vida" [2].

O deputado federal Osmar Terra, ex-ministro do governo anterior, questionou:

"É um tema que atinge tanto a população, numa escala tão gigantesca, provocando perda de vidas, destruição de famílias e pessoas que não tem nada a ver com a droga morrem em decorrência de usuários. Vamos legalizar isso?" [3].

Não são colocações isoladas. Parte da população comunga da mesma reflexão. Pesquisa Datafolha [4] aponta que 72% dos brasileiros são contrários ao uso recreativo da maconha.

Poderíamos argumentar, em sentido oposto, que vários países já regularam o uso recreativo da cannabis [5]. E afirmar que existem estudos sobre o uso problemático das drogas. A ONU aponta que somente 12% das pessoas que tiveram contato com elas desenvolvem um padrão de uso arriscado, ao ponto de se tornar dependente.

Poderíamos dizer que o uso de drogas não configura um problema em si. Ele pode surgir como solução diante de um mal-estar presente no laço social ou como facilitador deste laço [6].

De igual modo, poderíamos mencionar que convivemos com drogas lícitas com potenciais tão lesivos quanto substâncias proibidas por lei [7]. "Álcool x maconha" é um exemplo.

Porém, há dúvidas de que os "tradicionalistas" estejam dispostos a se aprofundar neste conteúdo. Na visão dicotômica de mundo, não há espaços para ponderações. Os pensamentos reduzem os fenômenos humanos a uma relação certo e errado, isso ou aquilo, é ou não é.

Interessante traçar um caminho argumentativo diverso. Não "advogar" para as drogas, mas questionar se a nossa forma de enfrentá-las é a solução.

Especialmente a todos que oferecem obstáculos (e não propostas) e aos entusiastas da "guerra às drogas", imaginemos um dia "D" [8] na cruzada contra os entorpecentes.

Um dia perfeito. Cinematográfico. Hollywoodiano.

Uma megaoperação. A maior já executada no combate as famigeradas substâncias psicoativas.

Tanques, blindados M113, aviões, "caveirões" (voadores e terrestres). Até surpreendentes AAV7A1, carros anfíbios, utilizados em ocupações militares do Rio de Janeiro.

Todas as forças de segurança pública envolvidas. Todos os homens nas ruas. Uma imensidão de funcionários públicos ávidos para exterminar as drogas.

Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, policiais civis e militares. Acrescentemos as polícias penais (federais, estaduais e distritais), as guardas municipais e suas equipes especializadas (Romus) — diga-se de passagem (e com alguma perplexidade), bastante atuantes no combate ao tráfico varejista.

As Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica), ao que pese não terem treinamento de segurança pública [9], amparadas por um decreto GLO (Garantia da Lei e da Ordem), também comporiam o cenário ideal. Afinal, estamos em guerra, não por outra razão usa-se o termo "combate" às drogas.

Uma operação que abrangesse as capitais, cidades grandes e médias. Portos e aeroportos.

Fuzis, escopetas, balaclavas, boinas azuis, boinas pretas e roupas camufladas.

Centenas de milhares de toneladas de entorpecentes apreendida.

Dezenas de milhares de traficantes presos. Desde o "Seu João", porteiro em um prédio situado na av. Paulista, que vende maconha para os playboys da vizinhança, até líderes de facções criminosas.

Para não deixar desamparada a parcela da sociedade que acredita que "bandido bom é bandido morto", acrescentemos também algumas mortes. Uma megaoperação no combate ao tráfico sem corpos pretos caídos ao chão passa a impressão que algo deu errado!

Alguns usuários, dependentes, moribundos que perambulam pela rua, também seriam presos pela venda de drogas. No fim das contas, eles enfeiam a paisagem e criam uma sensação de insegurança às pessoas ordeiras.

Um dia em que as forças do bem teriam vencido a batalha contra os sanguinários traficantes (incluindo "Seus Joãos") e a erva do diabo.

Um dia de expectativas de um novo tempo. "O Brasil livre das Drogas – nós podemos!" [10].

No fim do expediente, policiais comemorariam a superação de todas as metas. Fora uma bela tarde de "caçadas" [11]. Cumprimentos de mandados de prisão, abordagens, prisões em flagrante e grande quantidade de droga apreendida. Quanto às mortes… são inerentes à guerra!

Sites oficiais exibiriam em caixa alta os "drogrômetros" (estatística de apreensão de drogas no ano) [12].

Delegados, trajando coletes à prova de bala (ainda que não tivessem saído dos gabinetes), alguns já visando às próximas eleições, passariam o festejado dia dando entrevistas. Discursos efusivos sobre o duro golpe nas drogas.

Juízes e promotores, em seus ternos impecáveis, sentiriam o sabor do dever cumprido. Antecedendo ao uísque (sem menoridade relativa) comemorativo, receberiam tapinhas nas costas. Gestos de agradecimento por terem extirpado a maconha do mercado. Alguns acompanhados de "belo trabalho" e "precisamos de mais profissionais assim". Elogios oriundos das respectivas vizinhanças condominiais da zona sul. Local em que nenhum tiro de fuzil 556 precisou ser disparado.

As prisões em flagrante seriam convertidas em prisões preventivas duradouras. Condenações alcançariam algo em torno de 100% (ainda que o standart probatório permanecesse o mesmo do flagrante).

Enfim, um dia para constar nos anais da história da República Federativa do Brasil. O Dia "D".

Findo o glamoroso dia, a pergunta a se fazer é: a situação retornaria ao status quo? Voltaríamos a ter os mesmos problemas?

A resposta é simples: sim… e rapidamente!

Em tempo exíguo, drogas e traficantes voltariam a ocupar o mesmíssimo lugar.

Nada produzido na megaoperação impactaria, de forma significativa, a dinâmica do tráfico. Talvez, por um período curto, os moradores de áreas nobres teriam sua maconha, cocaína, ou droga sintética, inflacionada. E só!

Os números que são enaltecidos na política de
"guerra às drogas", para passar uma ideia vitoriosa, são: a quantidade de entorpecentes apreendidos; o número de traficantes presos [13]. Um erro crasso!

Ano após ano injetamos mais dinheiro na guerra às drogas. Melhoram-se os equipamentos, apreende-se mais drogas, prende-se mais pessoas por tráfico. Não obstante, a quantidade de drogas, usuários e dependentes somente aumenta [14].

Não é preciso ser catedrático para entender que a estratégia não funciona. A política de drogas não deve ter como principal alicerce o campo criminal.

Voltando a análise do dia "D", poder-se-ia questionar se os dependentes não se tornariam ex-adictos pela ausência (ainda que momentânea) das drogas no mercado? Isso não minimizaria dos problemas de criminalidade?

As respostas também são diretas: não e não.

Essa situação aqui narrada, de extinção das drogas do mercado, já ocorreu em algumas localidades menores. Na década de 70, a polícia canadense conseguiu impedir a entrada de heroína em Vancouver.  Por cerca de 2 anos, havia 0% de droga na suposta "heroína" (coquetel químico) vendido nas ruas. Os traficantes, que não conseguiam acesso ao opiáceo, enganavam os dependentes criando compostos sem o princípio ativo. Estes acreditavam que estariam comprando heroína fraca e compensavam bebendo mais álcool. Permaneceram dependentes. A situação se repetiu em várias cidades dos países do norte [15].

Pela lógica simplista, os dependentes deveriam passar por abstinência e, depois de um período, estarem "livres/curados".

Ressalta-se que o estado brasileiro é falho em impedir o ingresso de drogas dentro dos seus próprios estabelecimentos prisionais. Elas ultrapassam, sem muitas dificuldades, locais cercados por muros de concreto, grades e homens armados. Imagine controlar 8.514.876 km² de área e 23.102 km de fronteiras terrestres e marítimas.

Além da retirada das drogas do mercado não surtir efeitos significativos, notadamente ao dependente, extirpar as drogas é uma tarefa impossível de ser concretizada!

Quanto aos traficantes detidos, em tempo curto, seriam substituídos por outros. A pequena "anomia", contudo, seria apta a aumentar os índices de criminalidade, notadamente a criminalidade violenta.

Ao contrário do imaginário, pesquisas [16] apontam que a prisão (ou morte) de traficantes de droga que dominam determinado ponto implica em um aumento vertiginoso da criminalidade. Quando se retira alguém do topo de uma hierarquia ou se apreende um grupo de traficantes, ninguém mais está no comando. Cria-se uma disputa para ver quem assume o posto.

Em um país com intensa desigualdade social, sem serviços básicos, sem educação, com 8 milhões de desempregados e 13 milhões de trabalhadores na informalidade, é improvável que o comércio de drogas não consiga cooptar pessoas. Passadas décadas de guerra às drogas, ao arrepio das incontáveis prisões e mortes prematuras, ele cooptou.

Neste ponto, é importante nos despirmos de nosso moralismo pequeno-burguês, para pensar na população vulnerável que vive no Brasil.

Pensar naquele indivíduo pobre, nascido em uma família desestruturada. O genitor foi preso ou morto. A mãe trabalha dois turnos, em um emprego precário, para sustentar a casa.  Desde os 8 anos vende bala no semáforo para ajudar na renda familiar. Não tem nenhuma fonte de entretenimento. Não teve infância. Os estímulos sociais são mínimos. Ninguém espera nada dele. Não tem estudo. O "remédio" acessível para a vida sofrida que ele conhece é a maconha vendida na esquina. A cocaína. O crack. Paradoxalmente, é isso que lhe dá alguma qualidade de vida.  Mas para poder comprar e usar, ele, primeiro, precisa vender!

Não é fácil convencer alguém, sem perspectiva de ascensão social, a não aderir ao tráfico, que pagará por semana quatro vezes mais do que ele ganharia no mês [17].

A homérica operação somente surtiria efeitos para agravar os problemas do nosso sistema prisional e todas as mazelas que dele advém. O número recorde de pessoas encarceradas imporia mais custos nas penitenciárias.

O Brasil gasta quase 4 vezes mais com sistema prisional em comparação com educação básica. Cada preso custa R$ 1,8 mil por mês aos cofres públicos. Um aluno da educação básica, R$ 470 [18].

O (possível) futuro acórdão do STF, no RE 635.659, está longe de mudar essa realidade. Cria-se, de forma tímida, mais justiça social e racial nas prisões por tráfico de drogas.

Não obstante, os neoconservadores/tradicionalistas, com seus pensamentos maniqueístas dos fenômenos humanos, não tardaram em defender a manutenção do sistema posto.

Um sistema comprovadamente falido. Que afeta de forma injusta pretos e pobres. Que os mata, que os encarcera, sem nenhum ganho social!

Não brindemos a "boa" e "velha" tradição.  As taças estão encharcadas de vinho tinto de sangue!

 


 

[1] Por "neoconservadores" entende-se a nova configuração do ativismo conservador, com especial atenção a juridificação da moralidade, representados por organizações da sociedade civil, instituições religiosas e representantes de diversos partidos políticos. (BIROLI, Flavia. Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas e retrocessos na América Latina. Flavia Biroli, Juan Marco Vaggione, Maria das Dores Campos Machado. 1 ed. São Paulo: Boi tempo, 2020).

[2] ESTADO DE MINAS. Bolsonaro critica votação do STF sobre maconha: 'Inadmissível'. Disponível em:

https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2023/08/28/interna_politica,1553338/bolsonaro-critica-votacao-do-stf-sobre-maconha-inadmissivel.shtml. Acesso em 15 de out. de 2023.

[3]GAZETA DO POVO. Osmar Terra critica “invasão de responsabilidade” do STF sobre o porte de drogas. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/osmar-terra-critica-invasao-de-responsabilidade-do-stf-sobre-o-porte-de-drogas/. Acesso em 15 de out. de 2023.

[4] G1. Datafolha: Maioria é contra uso recreativo da maconha e a favor do medicinal. Disponível em: https://g1.globo.com/saude/noticia/2023/09/23/datafolha-maconha.ghtml. Acesso em 15 de out. de 2023.

[5] São exemplos: Uruguai, República Dominicana, Canadá e Estados Unidos, Portugal, Luxemburgo, Nova Zelândia, Suíça, Holanda, Jamaica e África do Sul.

[6] NICODEMOS, Júlio Cesar de Oliveira. Psicanálise, redução de danos e uso abusivo de drogas: estratégias possíveis diante do impossível. Curitiba: CRV, 2020.

[7] COMISSÃO GLOBAL DE POLÍTICA SOBRE DROGAS. Quando a Ciência foi deixada para trás. Disponível em: http://www.globalcommissionondrugs.org/wp-content/uploads/2019/06/2019-Report-Press-Kit-PORT.pdf. Acesso em 16 de out. de 2023.

[8] O termo é utilizado em alusão ao dia "D", também chamado de "Operação Overlord" e promoveu o desembarque de soldados Aliados nas praias da Normandia, no Norte da França.

[9] O livro "Dano Colateral" de Natália Viana, deixa claro o que ocorre quando militares interveem na segurança pública. A morte do músico Evaldo Rosa e do catador de material reciclável, Luciano Macedo, após mais de 80 tiros disparados contra o carro em que estava a família do músico, exemplifica o aludido. VIANA, Natália. Dano colateral: a intervenção dos militares na segurança pública. 1 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2021.

[10] Em 1988 a ONU adotou o slogan “Um Mundo Livre de Drogas – Nós Podemos!” Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8846/14/bapi_18_panorama_internacional.pdf. Acesso em 15 de out. de 2023.

[11] O termo "caçada" é empregado por polícias especializadas. No livro "Boa Caçada", escrito por um Sargento da PMSP, há mais de 20 anos atuante na Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar – ROTA, o autor menciona que queria se tornar um caçador e buscar o inimigo em seu próprio território, sem medo de pestanejar. A ROTA era o local ideal para isso. Ressalta-se que a doutrina da Rota fora replicada para inúmeras policiais especializadas. (OLIVEIRA, Silvio. Boa Caçada. 2. ed. São Paulo: Scortecci, 2021).

[12] É usual que na página principal de sites oficiais das polícias militares haja destaque para a quantidade de drogas apreendidas. Cita-se como exemplo o site da PMGO: https://www.pm.go.gov.br

[13] BURGIERMAN, Denis Russo. O fim da guerra: a maconha e a criação de um novo sistema para lidar com drogas. São Paulo: Leya, 2011.

[15] HARI, Johann. Na fissura: uma história do fracasso no combate às drogas. Trad. Hermano Brandes de Freitas. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

[17] SHECAIRA, Sergio Salomão. Criminologia. 10 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasi, 2022.

[18] USP. Brasil gasta quase quatro vezes mais com sistema prisional em comparação com educação básica. Disponível em: https://jornal.usp.br/ciencias/brasil-gasta-quase-quatro-vezes-mais-com-sistema-prisional-em-comparacao-com-educacao-basica/. Acesso em 15 de out. de 2023

Autores

  • é graduado em Direito pela Universidade de Juiz de Fora (UFJF), pós-graduado em Direito pela Escola de Magistratura do Rio de Janeiro (Emerj), mestre em Direito Constitucional pelo Instituto brasileiro de desenvolvimento e pesquisa (IDP), pós-graduando em Jurisdição Penal Contemporânea e Sistema Prisional pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) e juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás.

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