Condições perfeitas

Juiz agora deve exigir regularidade fiscal para conceder recuperação judicial, diz STJ

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20 de outubro de 2023, 19h56

Após a edição da Lei 14.112/2020, não cabe mais ao juiz dispensar a comprovação da regularidade fiscal para conceder a recuperação judicial da empresa devedora.

Lucas Pricken/STJ
Para ministro Bellizze, finalmente
possível exigir regularidade fiscal para concessão da recuperação judicial no Brasil
Lucas Pricken/STJ

Essa conclusão é da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em precedente que representa uma substancial mudança na maneira como o Poder Judiciário vem interpretando a não aplicação do artigo 57 da Lei de Recuperação Judicial e Falência (Lei 11.101/2005).

Trata-se da norma que exige a apresentação de certidões negativas de débitos tributários após a aprovação do plano de recuperação judicial pela assembleia de credores, para que o processo de soerguimento seja homologado pelo juízo e, enfim, iniciado.

A votação no colegiado do STJ, por unanimidade, rejeitou o recurso especial de uma empresa de soluções de tecnologia que tentava emplacar a recuperação judicial sem observar as exigências do artigo 57 da norma de regência.

Como era
Nos 15 primeiros anos de vigência dessa norma, ela se mostrou simplesmente impraticável. Como as empresas que se encontram em apuros financeiros quase sempre têm dívidas tributárias substanciais, a quitação desses débitos como condição prévia para a recuperação a tornava inviável.

No ano de 2005, o Congresso ainda alterou o Código Tributário Nacional para incluir, no artigo 155-A, a possibilidade de parcelamento das dívidas das recuperandas, cujas condições deveriam ser previstas em lei específica e, na falta dela, por lei geral federal sobre parcelamentos.

Essa norma é a Lei 10.522/2002, que em seu artigo 10 dá à Fazenda Nacional a prerrogativa — e não a obrigação — de parcelar débitos a seu exclusivo critério e pelo prazo máximo de 60 meses. Ela ainda exige a apresentação prévia de garantia real ou fidejussória suficiente para quitar o débito.

Essas condições são unanimemente consideradas inaptas pela doutrina e jurisprudência para beneficiar empresas em recuperação judicial. Elas ficaram sem saída pelo fato de diversos entes da federação não se importarem em editar leis específicas para regular tais parcelamentos.

Solução prática
Para evitar o sepultamento do instituto da recuperação judicial, a Corte Especial do STJ afastou, em 2013, a exigência dessas certidões negativas tributárias para a homologação do plano. A praticidade dessa posição viabilizou o soerguimento de empresas, mas criou diversos outros inconvenientes.

Um deles residiu no fato de que a não aplicação do artigo 57 da LRF implicaria declaração incidental de inconstitucionalidade da norma sem a observância do rito previsto para tanto. Coube ao Supremo Tribunal Federal se debruçar sobre o tema em sede de reclamações ajuizadas.

Outro inconveniente foi o fato de essa posição permitir o andamento paralelo da recuperação judicial e das execuções fiscais, as quais não se submetem ao plano aprovado pelos credores. Isso gerou um embate sobre a possibilidade de, nessas execuções, serem praticados atos constritivos contra empresas em recuperação.

O que acabava acontecendo era que a recuperação judicial corria inteiramente sem considerar o impacto das dívidas tributárias, que, ao final do processo de soerguimento, eram cobradas de uma só vez com o avanço das execuções fiscais, impondo outra crise financeira às mesmas empresas.

Mudança insuficiente
Em 2014, o Congresso editou a Lei 13.043/2014 para tentar corrigir o problema. Sem sucesso. Inseriu-se o artigo 10-A na Lei 10.522/2002, estabelecendo o parcelamento dos débitos com a Fazenda Nacional em 84 parcelas, observados os percentuais mínimos ali definidos.

A norma se mostrou insuficiente para beneficiar empresas em recuperação judicial. O prazo foi considerado pela jurisprudência brasileira muito curto, inclusive quando comparado com programas como o Refis, que preveem parcelamento de dívidas de 180 a 240 meses.

Esse cenário foi alterado de novo, mais recentemente, pela Lei 14.112/2020. Ela teve o mérito de equalizar a relação entre execução fiscal e recuperação judicial.

Com essa norma, o juiz da execução fiscal foi autorizado a determinar atos de constrição sobre os bens da empresa em recuperação. E o juízo da recuperação, por sua vez, a determinar a substituição desses bens quando eles forem essenciais à manutenção da atividade empresarial.

Agora vai
A nova lei ainda previu a possibilidade de transação tributária com condições atrativas, com redução de até 70% da dívida e até 100% de desconto sobre correção, juros, multa e encargos. E também instituiu prazos mais amplos para parcelamento, entre 145 e 120 meses.

Na visão do ministro Marco Aurélio Bellizze, relator do caso julgado pela 3ª Turma do STJ, essas condições são finalmente passíveis de serem implementadas sem ameaçar a existência e a efetividade da recuperação judicial.

Com isso, não é mais possível, a pretexto dos princípios da função social e da preservação da empresa, que estão no artigo 47 da LRF, dispensar a apresentação das certidões negativas de débitos fiscais para a concessão da recuperação judicial.

"Diante dos termos estabelecidos pela Lei 14.112/2020, segundo penso, não é (mais) dado ao Juízo da recuperação, com amparo, simplesmente, na norma principiológica contida no artigo 47 da LRF, dispensar a comprovação de regularidade fiscal, exigida, expressamente, pelo artigo 57 do mesmo diploma legal", resumiu o magistrado.

Para ficar claro
O voto do ministro Bellizze ainda esclareceu que essa posição só é possível para o âmbito federal. Afinal, foi a edição de uma lei federal — a Lei 14.112/2020 — que criou as condições aptas a um efetivo programa de parcelamento dos débitos tributários e viabilizou a aplicação do artigo 57 da LRF.

Assim, a exigência da regularidade fiscal em relação a débitos de titularidade da Fazenda Pública dos estados, do Distrito Federal e dos municípios vai depender da edição de lei específica dos referidos entes políticos, ainda que limitada a aderir aos termos da lei federal.

Além disso, a única consequência possível para a não apresentação da comprovação de regularidade fiscal, nos termos da lei, é a não concessão da recuperação judicial. "Não há de se falar, nesse caso, em convolação em falência", afirmou o relator.

"Desse modo, em caso de não cumprimento da comprovação da regularidade fiscal, deve-se sobrestar o processo recuperacional até a efetivação da medida, sem prejuízo da retomada das execuções individuais e de eventuais pedidos de falência", concluiu ele.

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REsp 2.053.240

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