Senso Incomum

O Dia do Professor, os tablets e o ChatGPT a caminho da Suprema Corte

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19 de outubro de 2023, 8h00

Semana passada teve o Dia do Professor, essa raça em extinção. Outro dia vi uma postagem sobre o estado da arte de ser professor: não vai bem um país em que dentistas, sociólogos e químicos (e professores) estejam fazendo concurso para a polícia (federal). Não falo das competências e da relevância. Falo dos salários. Portanto, o fenômeno é autoexplicativo.

Spacca
Além dos baixos salários, o professor enfrenta um meio ambiente hostil, proporcionado pela "pós-modernidade" (sem que se saiba bem o que isso quer dizer).

Preocupa sobremodo o uso de telas (telefones celulares, tablets) nas salas de aula. Na verdade, isso virou uma praga. Na Suécia e Holanda o governo proíbe o uso desse instrumental nas salas de aula do ensino fundamental e médio. Em breve essa vedação deve chegar às faculdades.

Estamos cercados por telas e pessoas curvadas. Neocorcundas. Até nos cinemas e cerimônias é possível perceber o vício das telas. Crianças são mantidas "comportadas" nos restaurantes com o auxílio de "telas babás". E isso faz com que se perca até mesmo o sentido da percepção de profundidade das pessoas.

Textos diminuem, gravações são encurtadas, porque o público já não lê algo com mais de 15 linhas. Os celulares receberam o recurso do apressamento das mensagens, cuja velocidade vai até mesmo no vetor dois. Os filmes nos tablets possuem mecanismos para adiantar em 15 segundos. Palestras são vendidas sob o modelo TED 18 — em que em 18 minutos o ministrante deve dizer a que veio, porque, diz-se, as pessoas não prestam atenção por mais tempo que esse período. Em breve os filmes terão apenas 18 minutos.

E agora tem o ChatGPT. Até o presidente do STF quer comprar um ChatGPT só para juristas, quer dizer, só para o Judiciário. Ele, o robô, terá a "tarefa" de fazer, uma vez alimentado com a jurisprudência do STF, STJ e dos tribunais estaduais, um esboço das decisões (atenção: só um esboço — e o interlocutor dá uma piscadela). Diz o ministro que haverá supervisão do juiz. Que alívio. Interessante é que, com isso, cairemos em um paradoxo: se der certo, dará errado. Por quê? Porque se a Justiça melhorar com o ChatGPT, provado estará que perdemos para os robôs. Sim, derrotados pelo robô.

Há que se tomar cuidado. Certa vez uma determinada categoria de trabalhadores resolveu entrar em greve. Um integrante, mais velho, alertou os grevistas: vá que a repartição continue funcionando sem a gente…

Portanto, cuidado com o que deseja… você pode ser atendido.

Sigo. Estamos cada vez mais reféns das máquinas. As distopias estão se realizando.

Nessa linha, o historiador, jornalista e professor Moniz Sodré, em artigo intitulado Descaminhos da Atenção, na Folha, traz à luz a crise generalizada da atenção. Em aulas, espetáculos, conversas pessoais, perde-se com frequência o foco para a onipresença do celular. Ainda que este não esteja de fato sendo manuseado, seu efeito é perceptível na interlocução, seja pelo alheamento ou pela incompreensão discursiva. Enunciados muito articulados ou prolongados são motivos de impaciência. Até mesmo as canções de sucesso são cada vez mais curtas, algumas com menos de um minuto.

E acrescenta Sodré: o fenômeno é globalmente afetado pela disseminação da lógica (algorítmica) do autômato. O social, enquanto tal, não existe: a ideia de sociedade depende do pacto de confiança subjacente a toda organização. "Acreditar na palavra humana, falada ou escrita, é tão indispensável aos humanos quanto se fiar na firmeza do solo" (Paul Valéry). Isso é dar atenção, "a forma mais rara e pura de generosidade", na definição de Simone Veil.

Mas quem se preocupa com a palavra humana? Quem quer ainda dar atenção à forma mais rara e pura de generosidade? Cartas para a redação. Que não devem ser escritas pelo ChatGPT (ele escamoteia as fontes).

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