Contas à Vista

Valorização docente: róseo 15 de outubro contrasta com PNE descumprido

Autor

  • Élida Graziane Pinto

    é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

17 de outubro de 2023, 8h00

A cada 15 de outubro mensagens aparentemente bem intencionadas são direcionadas aos professores, como uma espécie de memória curta e estéril do quanto tais profissionais são supostamente considerados como socialmente relevantes. Todavia basta uma mirada mais detida nas redes públicas de ensino, sobretudo na educação básica, para que percebamos o quanto o discurso se distancia da realidade.

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Enquanto a efeméride é rósea, o crônico estágio de descumprimento da meta 18 [1] do Plano Nacional de Educação revela muitos borrados e severas lacunas. Muito embora a educação seja uma agenda facilmente encampada por todos os espectros políticos, sua consecução ordinária implica escolhas alocativas que têm sido negligenciadas historicamente, a começar pela falta de efetiva valorização remuneratória dos profissionais da educação e, em especial, dos professores.

É sintomático, aliás, o fato de o plano plurianual federal relativo ao quadriênio 2020-2023 ter previsto como diretriz, em seu artigo 3º, inciso X, a "dedicação prioritária à qualidade da educação básica". Porém, aludida prioridade não passou de quimera. Chegamos a este último ano de vigência do atual PPA, ainda sem resguardar claramente o percurso da compensação prevista no artigo 119 do ADCT para o déficit de aplicação em educação durante a pandemia, o qual foi anistiado pela Emenda Constitucional nº 119/2022.

Há cerca de um mês, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (ODCE) divulgou seu relatório Education at a Glance 2023 [2], cuja maior repercussão, em termos de comparação internacional, reside no diagnóstico de que o Brasil foi um dos poucos países a retrocederem o patamar de aplicação governamental em educação em meio à calamidade sanitária da Covid-19:

"Between 2019 and 2020, total government expenditure and government expenditure on education both increased in most OECD countries. On average, government spending on primary to tertiary education increased by 2.1%, while total government expenditure on all services increased by 9.5% (Figure C4.4). Total government expenditure increased due to several factors during the COVID-19 pandemic. For example, governments implemented fiscal stimulus measures to support businesses, industries and individuals affected by lockdowns and circulation restrictions. The emergency healthcare response involved expanding testing and vaccination capabilities, acquiring medical supplies and equipment, and providing healthcare workers with necessary resources, contributing to the overall increase in total government spending. On the education side, governments invested in various aspects of remote learning infrastructure, including technology, online learning platforms and teacher training for virtual instruction. Governments have allocated funds to support students and educational institutions by providing devices or Internet access to disadvantaged students to bridge the digital divide, and supporting schools in implementing health and safety protocols. These financial support mechanisms have contributed to the increase in government expenditures on education. However, there are some notable exceptions: Brazil, Chile, Costa Rica, Hungary, and Türkiye, all reported reductions of at least 5% in government spending on education between 2019 and 2020, in constant prices […]"

Aludida disparidade se explica, em grande medida, pelo fato de as escolas terem permanecido fechadas durante longo tempo no Brasil. Além disso, os governos dos distintos níveis da federação não priorizaram o setor, sequer para reformular as condições tecnológicas de oferta do ensino remoto durante os anos de 2020 e 2021, tampouco fizeram investimentos capazes de enfrentar o historicamente crônico déficit de vagas em creches e em horário integral. A esse respeito, em particular, os órgãos de controle deveriam buscar endereçar o cumprimento da medida compensatória prevista no parágrafo único do artigo 119 do ADCT para o alcance do dever de expansão da oferta de vagas em horário integral e em creches.

Segundo sintetizado pela Agência Brasil, "em média, na OCDE, a despesa total dos governos com a educação cresceu 2,1% entre 2019 e 2020, a um ritmo mais lento do que a despesa total do governo em todos os serviços, que cresceu 9,5%. No Brasil, o gasto total do governo com educação diminuiu 10,5%, enquanto o gasto com todos os serviços aumentou 8,9%".

O citado relatório da OCDE também revela uma severa disparidade em termos proporcionais, na medida em que o Brasil aplicou, em cada estudante, menos da metade do patamar investido pela média dos países ali avaliados. O país investiu em 2020 cerca de US$ 4.306 por estudante (aproximadamente R$ 21,7 mil, considerando o dólar a R$ 5,04), enquanto os países da OCDE investiram, em média, US$ 11.560 (cerca de R$ 58,3 mil).

A comparação com os países da OCDE pode ser considerada controversa, porque, em termos per capita, somos um país pobre. Mais justo é o contraste feito por Darcy Ribeiro e reiterado pela ministra Cármen Lúcia entre o gasto público com cada estudante brasileiro em face do gasto com cada detento nas diversas unidades prisionais do país. Tal como noticiado pelo portal do Conselho Nacional de Justiça, um preso custava o equivalente a 13 vezes mais do que um estudante, conforme dados de 2016:

"Um preso no Brasil custa R$ 2,4 mil por mês e um estudante do ensino médio custa R$ 2,2 mil por ano. Alguma coisa está errada na nossa Pátria amada. […] Darcy Ribeiro fez em 1982 uma conferência dizendo que, se os governadores não construíssem escolas, em 20 anos faltaria dinheiro para construir presídios. O fato se cumpriu. Estamos aqui reunidos diante de uma situação urgente, de um descaso feito lá atrás."

Em termos remuneratórios, a carreira docente no Brasil não é atrativa e se encontra entre os piores patamares entre os países observados pela OCDE. Como bem assinala o relatório (2023, p. 22; p. 177), sem boas carreiras docentes, não há como atrair e reter talentos para a profissão:

"Many OECD countries are facing teacher shortages. Competitive salaries are crucial to retaining teachers and attracting more individuals to the profession, although other factors are also important. In many OECD countries teaching is not a financially attractive career choice. On average, lower secondary teachers’ actual salaries are 10% below those of tertiary-educated workers, but in some countries the gap is over 30%."

[…]

Na dinâmica política da federação brasileira, apregoar a defesa da qualidade da educação é fácil. Difícil é resguardar, de fato, recursos suficientes para uma efetiva valorização remuneratória dos profissionais da educação básica, sobretudo dos professores.

Reiteradas vezes, municípios e estados buscam tensionar a aplicação ao piso nacional do magistério a que se refere o artigo 206, VIII da Constituição de 1988 e regulamentado pela Lei 11.738/2008, notadamente após a Emenda 108/2020. Eis o impasse que o Supremo Tribunal Federal foi chamado novamente a enfrentar nos autos da ADI 4.848, em sede de embargos que foram rejeitados — por unanimidade — em 12/9/2023:

"DIREITO CONSTITUCIONAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. AUSÊNCIA DE OMISSÃO. MODULAÇÃO DOS EFEITOS DA DECISÃO. IMPOSSIBILIDADE.

1. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente para declarar a constitucionalidade do art. 5º, parágrafo único, da Lei nº 11.738/2008, que dispõe sobre a forma de atualização do piso nacional do magistério da educação básica com base no mesmo percentual de crescimento do valor anual mínimo por aluno referente aos anos iniciais do ensino fundamental urbano.
2. Não há erro, obscuridade, contradição ou omissão no acórdão questionado, o que afasta a presença dos pressupostos de embargabilidade.
3. Ausente a comprovação das razões concretas de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, requisitos previstos pelo art. 27 da Lei nº 9.868/1999, não cabe modulação dos efeitos da decisão. Precedentes.
4. Embargos de declaração rejeitados."

Infelizmente, a realidade é que os professores não são uma prioridade orçamentária, tampouco a educação pública de qualidade é uma agenda efetiva da sociedade brasileira, já que não pautamos, como deveríamos, por exemplo, a expansão da oferta de vagas em horário integral.

Todo e qualquer debate sério sobre os nucleares nortes civilizatórios de enfrentamento à desigualdade social e de desenvolvimento econômico inclusivo necessariamente passa pelo cumprimento tempestivo e pleno do Plano Nacional de Educação. Se houver uma revisão reducionista dos pisos em saúde e educação, como aparentemente parece ser a tendência após a revogação do artigo 110 do ADCT, o cenário de fragilidade da política pública de educação no Brasil será potencialmente ainda mais grave.

Efemérides são relevantes para resgate da memória, mas não revertem, por si só, os esvaziamentos alocativos que a educação pública brasileira tem sofrido. É bonito celebrar a cada 15 de outubro o "Dia do Professor", mas, de fato, como os operadores do Direito têm atuado — sobretudo no âmbito dos sistemas de controle interno, externo e judicial — para resguardar, por exemplo, o cumprimento do piso do magistério e da meta 18 do PNE?

Para mim, em especial, as contas anuais das prefeituras merecem impugnação sobre o estrito cumprimento dos recursos vinculados à educação (artigos 212 e 212-A da CF/1988), se não restar comprovado o atendimento ao artigo 206, VIII e ao artigo 214, ambos também da Constituição. No âmbito da minha atuação ministerial, sempre requeiro emissão de parecer desfavorável às contas das prefeituras que descumprem o piso nacional do magistério e que negam consecução tempestiva e plena ao PNE, com fulcro na dimensão substantiva do dever de gasto mínimo em manutenção e desenvolvimento do ensino e no dever de aplicação constitucionalmente adequada dos recursos do Fundeb.

Para que a qualidade da educação pública não continue a ser uma mera promessa inconsequente e vazia, a fiscalização dos recursos vinculados à área precisa ser materialmente aderente ao planejamento educacional, o que, por óbvio, pressupõe efetiva valorização docente.

 


[1] Meta 18: assegurar, no prazo de 2 (dois) anos, a existência de planos de Carreira para os (as) profissionais da educação básica e superior pública de todos os sistemas de ensino e, para o plano de Carreira dos (as) profissionais da educação básica pública, tomar como referência o piso salarial nacional profissional, definido em lei federal, nos termos do inciso VIII do art. 206 da Constituição Federal.

Estratégias:

18.1) estruturar as redes públicas de educação básica de modo que, até o início do terceiro ano de vigência deste PNE, 90% (noventa por cento), no mínimo, dos respectivos profissionais do magistério e 50% (cinquenta por cento), no mínimo, dos respectivos profissionais da educação não docentes sejam ocupantes de cargos de provimento efetivo e estejam em exercício nas redes escolares a que se encontrem vinculados;

18.2) implantar, nas redes públicas de educação básica e superior, acompanhamento dos profissionais iniciantes, supervisionados por equipe de profissionais experientes, a fim de fundamentar, com base em avaliação documentada, a decisão pela efetivação após o estágio probatório e oferecer, durante esse período, curso de aprofundamento de estudos na área de atuação do (a) professor (a), com destaque para os conteúdos a serem ensinados e as metodologias de ensino de cada disciplina;

18.3) realizar, por iniciativa do Ministério da Educação, a cada 2 (dois) anos a partir do segundo ano de vigência deste PNE, prova nacional para subsidiar os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, mediante adesão, na realização de concursos públicos de admissão de profissionais do magistério da educação básica pública;

18.4) prever, nos planos de Carreira dos profissionais da educação dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, licenças remuneradas e incentivos para qualificação profissional, inclusive em nível de pós-graduação stricto sensu ;

18.5) realizar anualmente, a partir do segundo ano de vigência deste PNE, por iniciativa do Ministério da Educação, em regime de colaboração, o censo dos (as) profissionais da educação básica de outros segmentos que não os do magistério;

18.6) considerar as especificidades socioculturais das escolas do campo e das comunidades indígenas e quilombolas no provimento de cargos efetivos para essas escolas;

18.7) priorizar o repasse de transferências federais voluntárias, na área de educação, para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios que tenham aprovado lei específica estabelecendo planos de Carreira para os (as) profissionais da educação;

18.8) estimular a existência de comissões permanentes de profissionais da educação de todos os sistemas de ensino, em todas as instâncias da Federação, para subsidiar os órgãos competentes na elaboração, reestruturação e implementação dos planos de Carreira.

[2] OECD (2023), Education at a Glance 2023: OECD Indicators, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/e13bef63-en, p. 321, grifo acrescido ao original.

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  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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