Opinião

A Lei 14.678/23 e o fortalecimento do combate a violência infantil

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17 de outubro de 2023, 16h26

A promulgação da Lei nº 14.678/23 representa mais um passo adiante tomado pela sociedade brasileira no caminho para o fortalecimento das redes de proteção escolar e de saúde em sua missão constitucional de combate às principais formas de violência infanto-juvenil. O debate acerca do necessário combate à famigerada violência infantil — dentre as quais se destacam a violência sexual e a pedagogia da violência — cresceu de importância no debate público em 2014, a partir do caso do menino Bernardo, submetido a constantes e cruéis atos de violência doméstica que culminaram no seu falecimento.

A grande repercussão em torno do triste episódio (de infeliz recorrência na realidade brasileira) impulsionou positivamente os trabalhos legislativos, os quais voltaram sua atenção à necessidade de adequação da legislação protetiva à criança e o adolescente para fortalecer o combate a ações disciplinares aplicadas com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente que vise causar-lhes sofrimento físico ou busque subjugá-los por meio do medo, constrangimento e humilhação.

Do empenho legislativo nasceu a Lei nº 13.010/14 (Lei da Palmada) que, alterando o ECA, inaugurou o conceito da educação sem violência como instrumento de proteção a crianças e adolescentes contra a violência disciplinar e educacional que insiste em manchar de vergonha o nosso tecido social. Com a promulgação de seu texto, cresceu a consciência da sociedade sobre a importância de identificar e combater práticas de violência pedagógica em todas as suas formas.

Também cunhado como "pedagogia da violência", todo e qualquer tratamento violento dispensado a crianças e adolescentes com vistas a sua disciplina, educação ou repressão é hoje vista como prática tão abominável em nossa sociedade (e, por isso mesmo, também anacrônica) quanto incompatível com os princípios que orientam a proteção integral aos direitos de crianças e adolescentes.

Próximo de completar uma década de vigência, a proibição de uso da violência para correção comportamental de crianças e adolescentes, de que trata a Lei da Palmada e seu complemento legislativo (Lei Federal nº 13.046/14), volta a emergir no cenário nacional pelas mãos do Poder Legislativo, com a promulgação da Lei nº 14.678/23. Publicada no Diário Oficial da União no último dia 19 de setembro, a Lei altera a legislação vigente em dois pontos importantes.

Por um lado, incrementa a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Federal nº 9.394/1996) para impor ao poder público a obrigação de capacitar professores e demais profissionais do sistema educacional brasileiro a identificar, em crianças e adolescentes durante a interação escolar, sinais físicos ou comportamentais que indiquem a ocorrência de atos de violência sexual ou pedagógica. Orientada pelo princípio da proteção integral da criança e do adolescentes, assim define a nova orientação legal acerca da formação dos profissionais da educação:

"Artigo 61, parágrafo único: 'A formação dos profissionais da educação, de modo a atender às especificidades do exercício de suas atividades, bem como aos objetivos das diferentes etapas e modalidades da educação básica, terá como fundamentos':
Inciso IV: 'a proteção integral dos direitos de crianças e adolescentes e o apoio à formação permanente dos profissionais de que trata o caput deste artigo para identificação de maus-tratos, de negligência e de violência sexual praticados contra crianças e adolescentes'."

Por outro, a Lei nº 14.678/23 altera a Lei Orgânica da Saúde (Lei Federal nº 8.080/1.990) para inserir a proteção aos direitos das crianças como vetor de orientação à atividade dos profissionais de saúde, os quais, por dever de ofício, deverão conferir especial atenção a casos de crianças e adolescentes que se apresentem como vítimas de violência sexual ou maus-tratos. Passa, assim, a ser princípio norteador da atuação dos profissionais da saúde a seguinte diretriz:

Artigo 7º, caput: "As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:
Inciso XV: 'proteção integral dos direitos humanos de todos os usuários e especial atenção à identificação de maus-tratos, de negligência e de violência sexual praticados contra crianças e adolescentes.'"

O avanço alcançado no tema pela legislação brasileira é digno de aplausos, mas se engana quem esquece que a trajetória até aqui foi percorrida sem percalços. Não custa lembrar, por exemplo, o Projeto de Lei nº 4.275/19, proposto com o objetivo de revogar a Lei da Palmada, sob o argumento de que a proibição da violência pedagógica revela ato ideológico que enfraquece as relações familiares e o poder familiar. De questionável constitucionalidade, o projeto parece perder fôlego na Câmara dos Deputados enquanto aguarda, desde 2019, parecer conclusivo da Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Casa. Que assim permaneça, até cair no esquecimento legislativo em alguma gaveta da repartição pública federal.

Enquanto isso, comemoramos a instauração de mais uma medida de proteção voltada ao fortalecimento dos direitos infanto-juvenis. Ao estabelecer o dever de formação contínua de educadores em temas correlatos à violência contra crianças e adolescentes, a lei garante que crianças e adolescentes vítimas de violência perpetrada com fins disciplinares sejam adequadamente acolhidas e assistidas pelas redes públicas de proteção.

Cumpre, contudo, frisar que estamos longe do capítulo final dessa história. Há, ainda, muito a ser feito até extirpar da sociedade a prática da violência infanto-juvenil. A começar pela arquitetura dos programas a serem instituídos para treinamento dos profissionais atuantes no ambiente escolar, é preciso insistir na mobilização da opinião pública em torno do tema. Dito de outro modo, para que a Lei nº 14.678/23 alcance seus objetivos, é preciso incentivar a sociedade a continuar exercendo seu papel de supervisão das redes de proteção social, reportando ao poder público, pelos canais de participação comunitária, práticas de gestão da saúde e educação que ainda precisem ser aprimoradas para garantir a identificação de maus-tratos e de violência sexual praticadas contra o público infanto-juvenil.

Nesse quadrante, todavia, uma coisa é certa e precisa ser reconhecida: à custa de uma firme e gradativa busca por mudança na postura cultural brasileira no tocante à forma de educação de crianças e adolescentes, a legislação pátria tem se notabilizado por fazer avançar, não sem dificuldades, a pauta de difusão de práticas de combate à cultura do castigo físico como instrumento de instrução de crianças e adolescentes.

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