Opinião

Os maus-tratos, a Lei Henry Borel e os juizados especiais criminais

Autor

  • Paulo Roberto Santos Romero

    é promotor de Justiça titular do Jecrim de Belo Horizonte (MG) mestre e doutorando em Direito Penal Contemporâneo pela Universidade Federal de Minas Gerais ex-conselheiro do Conselho de Criminologia e de Política Criminal da Secretaria de Estado de Defesa Social do Estado de Minas Gerais.

5 de setembro de 2023, 19h38

A pergunta é: o crime de maus-tratos perpetrado em desfavor de crianças e adolescentes, inclusive em sua forma majorada (vide artigo 136, caput e seu § 3º, do Código Penal), ainda pode ser processado no âmbito dos Juizados Especiais Criminais (Jecrim)? Em razão dos fundamentos que lhe servem à resposta, a indagação poderia ser mais abrangente: os limites da competência do Jecrim comportam o processo e julgamento de delitos praticados contra crianças e adolescentes, afora aqueles previstos na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente — ECA)?

Os limites da competência ratione materiae concernentes ao JECrim estão estabelecidos pelo artigo 61 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, cuja dicção é a seguinte: "Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa".

Assim, tocariam ao JECrim os seguintes delitos do CP, v.g.: o de "lesões corporais simples não praticadas por pessoas de convívio próximo" (artigo 129, caput e § 9º, contrario sensu), o de "perigo de contágio venéreo" (artigo 130, caput), o de "perigo para a vida ou saúde de outrem", mesmo em sua forma majorada (artigo 132, caput e seu parágrafo único), o de "exposição ou abandono de recém-nascido", em sua forma simples (artigo 134), o de "omissão de socorro" (artigo 135), o próprio crime de maus-tratos, inclusive em sua forma majorada, perpetrado em desfavor de menores de quatorze anos (art. 136, caput e seu § 3º), todos os delitos "contra a honra" (artigo 138, calúnia; artigo 139, difamação; e artigo 140, injúria), o de "ameaça" (seja em sua forma básica, artigo 147, caput, seja sob a sua modalidade "perseguição", artigo 147-B), o de "dano" em sua modalidade simples (artigo 163, caput), o "ultraje a sentimento religioso" (artigo 208, primeira figura), o de "entrega de filho menor a pessoa inidônea", em sua modalidade simples (artigo 245), o de "abandono intelectual" (artigo 246) além daquele inominado tipificado no artigo 247, bem como o de "induzimento a fuga, entrega arbitrária ou sonegação de incapazes" (artigo 248) e o de "subtração de incapazes" (artigo 249) etc. Todos esses crimes são passíveis de cometimento e de verificação (inclusive sob o ponto de vista empírico) em desfavor de pessoas com idade inferior a 18 (adolescentes) e a 12 (crianças) anos incompletos (vide artigo 2º ECA).

Chega a ser intuitiva a percepção que a muitos desses delitos são material e significativamente danosos aos direitos fundamentais do público cuja lei visa tutelar, pois constituem vigorosos ataques à dignidade, ao respeito, à liberdade, à saúde, à educação, à integridade física e moral das suas vítimas (vide artigos 3º, 4º e 5º, todos do ECA), presumivelmente vulneráveis. Indiscutivelmente, esses tipos penais, todos alheios ao corpus juris do ECA, coíbem comportamentos socialmente graves, a despeito do conceito legal que lhes abarca como infrações penais de menor potencial ofensivo

O ECA também tipifica crimes perpetrados contra crianças e adolescentes. Especialmente aqueles de viés sexual, cominam de penas que extrapolam a competência do Jecrim. Contudo, há delitos no ECA ajustáveis ao artigo 61 da Lei nº 9.099/1995, como aqueles descritos nos artigos 228, 229, 230, 231, 232, 234, 235, 236 e 244.

Cabe, então, retornar à pergunta inaugural, cuja resposta descende das cláusulas constitucionais de garantia do juiz natural e do devido processo legal (cf. artigo 5º, incs. LIII e LIV) [1], além daquelas que estabelecem direitos fundamentais de natureza penal (artigo 5º, inc. XL)[2] e social (artigo 227, caput e § 4º, abaixo transcritos).

Impende reconhecer: é mesmo controvertido o alcance da proibição de aplicabilidade da Lei nº 9.099/1995 em relação às infrações penais praticadas contra crianças e adolescentes. Isso em razão do novo artigo 226 do ECA, alterado pela Lei 14.344, de 24 de maio de 2022 (Lei Henry Borel), que agora dispõe:

"Art. 226. Aplicam-se aos crimes definidos nesta Lei as normas da Parte Geral do Código Penal e, quanto ao processo, as pertinentes ao Código de Processo Penal.
§ 1º. Aos crimes cometidos contra a criança e o adolescente, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.
§ 2º. Nos casos de violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente, é vedada a aplicação de penas de cesta básica ou de outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa."

Parece evidente que as contravenções penais praticadas contra crianças e adolescentes podem ser processadas no âmbito do Jecrim, pois o § 1º, acima transcrito, veda a aplicação da Lei nº 9.099/1995 aos crimes praticados contra aquelas pessoas. Essa constatação decorre da impossibilidade jurídica de se interpretar extensivamente, contra direitos e liberdades, normas de caráter penal (mesmo que híbridas) [3] bem como o de empregar analogia em desfavor do autor do fato.

A referida controvérsia, portanto, cinge-se sobre a aplicabilidade das disposições da Lei nº 9.099/1995 no que se refere a delitos praticados contra crianças e adolescentes não tipificados no ECA, conforme se dá com os maus-tratos.

Uma primeira corrente advoga a parcial impossibilidade de aplicação da Lei nº 9.099/1995 em relação aos crimes praticados contra crianças e adolescentes. Segundo esse respeitável entendimento, o § 1º complementa o caput do artigo 226 do ECA e a referida proibição apenas atingiria os crimes previstos "nesta lei", qual seja o próprio ECA.

A corrente contraposta defende a completa impossibilidade da aplicação da Lei nº 9.099/1995 em relação aos citados crimes, independentemente de estarem ou não previstos no ECA. De acordo com ela, o § 1º do artigo 226 do ECA excepciona o caput desse mesmo dispositivo, proibindo, no âmbito do citado Estatuto, a incidência das disposições da Lei do JECrim, sem embargo de autorizar, como o faz no caput do mesmo artigo 226, a aplicação, no ECA, das normas havidas na Parte Geral do Código Penal e do Código de Processo Penal. Esta exegese sistemática confere coesão e coerência à totalidade do dispoigo 226.

Além disso, há um argumento de ordem constitucional, que parece ser decisivo. Se, de determinada perspectiva, poder-se-ia cogitar, por exemplo, de um suposto direito à transação penal em favor de autor de maus-tratos (ótica atrelada ao princípio da liberdade), por outro ponto de vista, crianças e adolescentes também têm o direito à segurança — vide artigo 5º, caput, da vigente Constituição da — bem como o direito de fazer valer a cláusula que lhes assegura proteção integral (vide artigos 1º e 3º do ECA), implícita desde o artigo 227, caput, da CR, que dita: "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". 

Existe, então, subjacente ao problema, um conflito de direitos fundamentais: o da "liberdade", relacionado ao autor do fato, versus "todos aqueles demais direitos" assinalados no artigo 227 da CR, irrenunciavelmente alinhados em favor da vítima infanto-juvenil. O modo de resolver este choque de direitos fundamentais não pode ser outro senão pela realização de um juízo de ponderação.

Apenas pela quantidade de direitos previstos em favor das crianças e adolescentes, se comparado àquele pertinente ao autor do fato, já restaria axiomático que o resultado hermenêutico não socorre esse último. No entanto, há mais, agora por força do § 4º do já citado artgo 227, que impõe (sem grifos no original): "A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente". 

Ora, esse dispositivo é francamente incompatível com o espírito do JECrim e com a textualidade das disposições normativas da Lei nº 9.099/1995, pois nela prevalece tanto o escopo despenalizador quanto a intenção de afastamento de penas privativas de liberdade, mesmo contra autores de fatos penalmente relevantes perpetrados contra crianças e adolescentes.

Diante disso, pergunta-se: como dizer, sem açoitar a lógica, em "severidade" referida ao autor de maus-tratos infanto-juvenis que se vê agraciado com transação penal? Logo, da interpretação sistemática do ordenamento jurídico, percebe-se que parte da matriz constitucional e chega aos diplomas legais envolvidos no problema apresentado, não oferece, à luz da racionalidade, da razoabilidade e da proporcionalidade, estofo exegético suficiente à prevalência do entendimento que pretende apenas a parcial inaplicabilidade da Lei nº 9.099/1995 à coibição dos crimes praticados contra crianças e adolescentes.

A conclusão ora defendida é que nenhum delito praticado contra a criança ou contra o adolescente — previsto que seja no ECA, no CP ou em qualquer outra lei —, por força do novo artigo 226, § 1º, da Lei nº 8.069/1990 (introduzido no citado Estatuto pela Lei Henry Borel), jamais pode ser processado perante o JECrim, pois o novel dispositivo finalmente vivificou o artigo 227, § 4º, da CR, razão pela qual insistir com conciliações, composições de danos civis, pacificações sociais e transações penais em crimes perpetrados contra vítimas infanto-juvenis não só anula a máxima efetividade da CR como traduz afronta aos magnos princípios do juiz natural e do devido processo legal.

As razões de política criminal respeitantes à Lei Henry Borel são inconciliáveis com a hipertrofia da competência do JECrim, de molde a obstar esvaziamento das Varas criminais para conhecer desses mesmos crimes. Nesse sentido, cabe lembrar que no ordenamento jurídico não há antinomias; assim o artigo 23, parágrafo único, da Lei nº 13.431/2017 (cuja estrutura normativa é semelhante à Lei Maria da Penha), sem aludir à extensão da pena, dita que até a criação de Varas especializadas, delitos contra crianças e adolescentes serão processados nos juizados/varas especializadas em violência doméstica e temas afins [4]. Ora, se as causas com violência doméstica não tocam o Jecrim, as respeitantes ao público infanto-juvenil devem por aí seguir.

A Lei Henry Borel quis e quer proibir negociações geradoras de brandura penal para agressores de adolescentes e crianças (às vezes com apenas meses de idade…). De mais a mais, os crimes postos no ECA, processáveis no Jecrim, conforme a experiência e segundo nos parece, raramente ocorrem no plano das realidades.

Há, ainda, o argumento prático: quantas vezes os delinquentes contra crianças não transparecem anomalia psíquica? Quantas outras não se revela a necessidade da complementação de laudos de lesões corporais das vítimas, seguidos de sucessivas impugnações? Fosse pouco, em muitas ocasiões são imprescindíveis estudos sociais e/ou complexos acompanhamentos de ordem psicossocial em certos casos. Todas essas hipóteses traduzem diligências incompatíveis com a celeridade e a simplicidade exigidas pelos artigos 62 e 77, § 2º, ambos da Lei 9.099/1995 [5].

Quando a redação da lei abre espaços à sua aplicação incorreta, cabe a eliminação, por parte dos legisladores, da perplexidade em disputa. Só assim podem fazer valer o anseio social que ensejou a nova norma. Se tal fragmento da ordem jurídica está se revelando problemático, porquanto interpretado de forma errônea por um ou outro grupo de exegetas, em especial aqueles que militam no foro, compete aos criadores da norma ambígua publicarem-na novamente, com outra redação mais apurada, eficaz à corrigenda do ponto nebuloso. Eis o libelo que consubstancia este artigo.

 


[1] Nos incs. LIII e LIV do art. 5º, da CR, estão esculpidos, respectivamente, os princípios do Juiz Natural e do devido processo legal, assim redigidos: "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente" e "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal".

[2] O art. 5º, inc. XL, da CR dita que "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu".

[3] Como é o caso das disposições normativas que tratam de institutos despenalizadores e descarcerizantes, previstos na Lei nº 9.099/1995. Aqui, interessa sobretudo o art. 76 da referida lei, que trata da transação penal, híbrida por excelência. Evidentemente, ela é etapa do rito procedimental do Jecrim (daí sua face processual), mas também é regra que atende aos interesses do autor do fato, evitando seja submetido à pena (vide art. 62), desde que faça jus à aplicação da medida (daí sua face penal). A propósito, vide: ROMERO, Paulo Roberto Santos. “Da presunção de inocência como marco fundamental à avaliação das causas impeditivas da transação penal”. Revista do Instituto de Ciências Penais. Belo Horizonte, v. 4, p. 297-324 (em especial a nota de rodapé nº 23). Disponível em: https://www.icp.org.br/DocRicp/RICP%20-%20Volume%2004.pdf. Acesso em:  8 de ago. 2023.

[4] Cf. já decidiu, nesse sentido, o STJ, v.g., REsp 2069837-MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca; publicado no DJe/STJ nº 3677 de 17 jul. 2023.

[5] Imagine-se este caso: um vizinho, querendo se vingar do outro, barulhento, apaga seu cigarro nas costas da filha de 6 anos, desse último, que brincava, com outras crianças da rua, na praça em fronte da casa de ambos, causando-lhe lesões leves. Agora, este outro: ex-convivente, que deixou a coabitação com a mãe do adolescente de 17 anos há mais de ano, também visando vingar da mulher que machucou seu coração, em uma atitude desleal que em muito excede as regras do futebol, aproveita o ensejo da partida para causar lesões leves na perna do rapaz – esportista até melhor preparado fisicamente que o seu agressor – deixando, no jovem, hematoma constatado em virtude de golpe contundente advindo de um chute. Nesse último caso, por força do art. 129, § 9ª, do CP, cuja pena máxima cominada é de três anos, o caso não será processado no Jecrim, por força do art. 61 da Lei nº 9.099/1995. O primeiro caso, sem embargo da sua maior reprovabilidade, nada obstante a tentativa de ajuste da ordem processual penal pela Lei Henry Borel, segundo certo entendimento, permanecerá sob a competência do Jecrim. A incoerência é nítida e este artigo objetiva bani-la, inclusive e desde já, mediante o apelo quanto à tomada de posicionamento nesse sentido, a ser pacificado entre órgãos de execução ministeriais e membros do Poder Judiciário.

Autores

  • é promotor de Justiça titular do JECrim de Belo Horizonte (MG), mestre e doutorando em Direito Penal Contemporâneo pela Universidade Federal de Minas Gerais, ex-conselheiro do Conselho de Criminologia e de Política Criminal da Secretaria de Estado de Defesa Social do Estado de Minas Gerais.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!