Embargos Culturais

O poeta-cronista (Olavo Bilac) e o jurista-literário (Rodrigo Octávio)

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

15 de outubro de 2023, 8h00

"As Cartomantes" é uma crônica (eita gênero delicioso!) de Olavo Bilac, datada provavelmente de 1901. O parnasiano, cadeira 15 na Academia Brasileira de Letras, poeta e cronista, comentava com malícia o tema das quiromantes, das cartomantes, e de tantas outras hoje esquisitices (lampadomancia, alectoromancia, hidromancia), a quem nominava (com base em Severiano de Rezende) de "Charlatãs do Além".

Eu não sei exatamente quem era o Severiano de Rezende que o poeta invocava. Talvez um escritor, político e advogado provisionado mineiro, muito conhecido na época. Esse é um dos encantos da leitura de crônicas antigas. As personagens, certamente conhecidas do escritor, caem no esquecimento, a exemplo de alguns autores alemães que Tobias Barreto citava, e que ninguém hoje sabe quem foi. E o leitor fica perdido.

Spacca
Bilac conta-nos que a polícia havia preparado um catálogo estatístico das cartomantes, que seriam perseguidas sem piedade alguma. Segundo o poeta-cronista a polícia iria se empenhar "num simples e fácil trabalho de saneamento moral, perseguindo algumas dúzias de exploradores da credulidade pública, com o mesmo direito com que persegue os passadores do conto-do-vigário ou de notas falsas".

No entanto, de algum modo defendia as (os) perseguidas (os), continuadoras (es) de uma "tradição multissecular”, calcada em “eterna e indestrutível mentira, criada pelo medo e pela curiosidade dos primeiros homens e sustentada pela irremediável tolice de todos os outros que lhe sucederam e lhes hão de suceder no gozo e no sofrimento dos bens e dos males da vida".

O poeta-cronista criticava todos os tipos de crendices. Há um certo sentido metafísico na crônica, mas que no fundo revela dúvidas. Tem-se a impressão que a crônica retomava certo dito espanhol, de autoria incerta, "No creo en brujas, pero que las hay, las hay". Eu também não acredito em bruxas, mas também creio que elas existem. Por que não? Até Rachel de Queiróz, tão incrédula, acreditava em discos voadores. E há também quem acredite que juízes deduzem, e só depois decidem, e não o contrário. Há muita crendice no mundo, inclusive jurídico.

Bilac não acreditava na polícia. Perderiam o tempo, que deveria ser gasto em coisas mais úteis. Previa que, como resultado da perseguição, "em vez de cinquenta ou sessenta cartomantes [haveria] cinco ou seis mil — e até as autoridades policiais [comprariam] baralhos de Tarô, e [começariam] a estudar a ciência perseguida".

Quanta coincidência com algum noticiário policial de hoje. Antes de acabar com a cartomancia, escreveu Bilac, seria mais importante acabarmos primeiro com a tolice humana. Essa não tem jeito. A bomba e tiro para tudo quanto é lado.

A obsessão com o exotérico parece ser constante no que os administrativistas chamam de poder de polícia, aliás um conceito definido no Código Tributário (artigo 78). Mas há exceções. Rodrigo Octávio, que também foi da Academia Brasileira de Letras (cadeira 35), que exerceu o cargo de Consultor-Geral da República nos anos de 1910 e 1920, e que conhecia Bilac, opinou favoravelmente à prática da hipnose em praça pública. Também havia implicância com os hipnotizadores. Acho que Freud foi um deles no início da psicanálise.

O princípio da reserva legal fundamentou o parecer de Rodrigo Octávio, redigido em 1913, a propósito de preocupação que havia com o hipnotismo em sessões públicas. Ao que consta, porque um belga estaria hipnotizando no Rio de Janeiro, um diligente e zeloso funcionário provocou o Ministro da Justiça, para providências. Este último encareceu parecer ao Consultor-Geral da República que, em pronta resposta, entendeu que não caberia ao Poder Executivo tal vedação.

Lembrou que o Código Penal proibia a prática da hipnose, porém, em circunstâncias outras, e relativas ao exercício ilegal da medicina. Não havia, no entender do parecerista, nenhuma vedação legal para a prática da hipnose, em praça pública, e fora de um contexto de exercício ilegal da medicina.

Segundo Rodrigo Octávio, o ilustre funcionário, "impressionado pela assistência de um espetáculo público em que um hipnotizador belga sujeitava certos espectadores a manobras hipnotizadoras, que poderiam ser prejudiciais não só aos incautos pacientes, como aos espectadores em geral, pela impressão moral que o caso lhes poderia causar, sugere como medida conveniente em nome da Saúde Pública, a proibição de tais representações, como já de prática em vários países da Europa". A proibição da hipnose era tipificada no Código Penal, apenas quando acompanhada de práticas médicas, o que então qualificaria o exercício ilegal da profissão. Não era o caso.

O poeta-cronista (Bilac) e o jurista-literato (Rodrigo Octávio) na verdade riram do zelo da polícia atuante (que queria prender cartomantes) e do funcionário diligente (que queria acabar com os hipnotizadores). Talvez porque poetas, cronistas, juristas e literatos sabem que há coisas mais sérias para com as quais se preocupar.

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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