Ambiente Jurídico

Exigência de condicionantes sociais no licenciamento ambiental

Autor

  • Talden Farias

    é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

14 de outubro de 2023, 14h43

Se a exigência de condicionantes já é um tema polêmico no que diz respeito ao licenciamento ambiental, isso é ainda mais verdadeiro quando se trata das chamadas condicionantes sociais. De um lado há quem entenda que o órgão ambiental possui ampla liberdade para exigir as condicionantes que entender pertinentes, e de outro existem os que defendem que não ser possível exigir condicionantes sociais em hipótese alguma.

Os direcionamentos apontados pela Administração Pública como condição para a concessão da licença ambiental e como condição da validade da licença ambiental concedida podem ser de duas ordens: as primeiras são as medidas mitigadoras e as segundas as medidas compensatórias [1]. As medidas mitigadoras são direcionamentos com o objetivo de diminuir ou de evitar determinado impacto negativo ou de aumentar determinado impacto positivo, ao passo que em relação aos impactos ambientais impossíveis de serem evitados devem ser propostas as medidas compensatórias propriamente ditas.

Spacca
É comum o órgão ambiental, ao conceder a licença ambiental, apontar expressamente uma série de condições que devem ser seguidas pelos empreendedores. O inciso II do artigo 1º da Resolução 237/1997 do Conama estabelece que "a licença ambiental é um ato administrativo pelo qual o órgão ambiental competente estabelece as condições, restrições e medidas de controle ambiental que deverão ser obedecidas pelo empreendedor, pessoa física ou jurídica, para localizar, instalar, ampliar e operar" a atividade pretendida.

O artigo 19 do Decreto 99.274/1990 e o artigo 8º da citada resolução definem a licença prévia como a licença ambiental concedida na fase preliminar do planejamento do empreendimento ou atividade, aprovando sua localização e concepção, atestando a viabilidade ambiental, e estabelecendo os requisitos básicos e condicionantes a serem atendidos nas próximas fases de sua implementação.

Entretanto, muitas vezes o gestor do órgão ambiental exige, para poder liberar a licença ambiental, a realização de contrapartidas que dizem muito mais respeito às políticas públicas do que aos impactos ambientais a serem gerados pela atividade. Seria o caso, por exemplo, da construção e/ou da administração de um asilo, de uma creche, de um hospital, ou da implementação de saneamento básico, de habitações sociais ou de um sistema de assistência social a pessoas em situação de vulnerabilidade. Infelizmente, não são raras as situações de exigências desproporcionais ou mesmo descabidas.

O entendimento de não ser possível exigir condicionantes sociais, porém, não merece ser levado em consideração, pois o Direito Ambiental é um direito social, uma vez que o Capítulo de Meio Ambiente está inserido no Título dos Direitos Sociais. Além do mais, e talvez até mais importante, esse ramo da Ciência Jurídica nunca se limitou ao meio ambiente natural, pois sempre foram do seu objeto de atuação as questões de ordem econômica, estética, sanitária, social, urbanística etc. Nesse diapasão, cabe destacar as definições de poluição e de impacto ambiental previstas, respectivamente, na Lei 6.938/1981 (Política Nacional do Meio Ambiente) e na Resolução 01/1986 do Conama:

"Art. 3º – Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:
(…)
III – poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente:
a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;
b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas;
c) afetem desfavoravelmente a biota;
d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente;
e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos;
(…)"
"
Art. 1º – Para efeito desta Resolução, considera-se impacto ambiental qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou indiretamente, afetam:
I – a saúde, a segurança e o bem-estar da população;
II – as atividades sociais e econômicas;
III – a biota;
IV – as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente;
V – a qualidade dos recursos ambientais."

Isso não significa, no entanto, que o órgão ambiental possui ampla liberdade para exigir as condicionantes que entender pertinentes, como se houvesse uma discricionariedade absoluta para tanto. Além de não ter base constitucional ou legal, a exigência de contrapartidas abusivas gera insegurança jurídica, compromete a credibilidade dos órgãos ambientais e aumenta o custo das atividades econômicas.

Daí os artigos 7º, § 12, e 16 da Portaria Interministerial MMA/MJ/MinC/MS 60/2015 já exigirem a relação direta e motivação técnica das condicionantes segundo a avaliação de impactos ambientais apresentada pelo empreendedor.

Todavia, além de não possuir força nem status de lei, essa portaria interministerial se restringia ao âmbito da União, de forma que os estados, o Distrito Federal e os municípios não a observavam. A positivação em lei federal desse disciplinamento se fazia necessária porque não era incomum a solicitação do cumprimento de obrigações que não guardam qualquer relação com o objeto do licenciamento ambiental em curso [2].

Foi por isso que a Lei 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica — LLE) vedou expressamente a possibilidade de exigência de compensações abusivas ou descabidas [3]:

"Art. 3º. São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal:
(…)
XI – não ser exigida medida ou prestação compensatória ou mitigatória abusiva, em sede de estudos de impacto ou outras liberações de atividade econômica no direito urbanístico, entendida como aquela que:
a) (VETADO);
b) requeira medida que já era planejada para execução antes da solicitação pelo particular, sem que a atividade econômica altere a demanda para execução da referida medida;
c) utilize-se do particular para realizar execuções que compensem impactos que existiriam independentemente do empreendimento ou da atividade econômica solicitada;
d) requeira a execução ou prestação de qualquer tipo para áreas ou situação além daquelas diretamente impactadas pela atividade econômica; ou
e) mostre-se sem razoabilidade ou desproporcional, inclusive utilizada como meio de coação ou intimidação;
(…)" [4]

De fato, são por vezes verdadeiras "chantagens institucionais" a que o empreendedor se submete para não comprometer o cronograma de investimentos ou para não perder o timing do negócio. Tal conduta pode configurar desvio de finalidade ou mesmo abuso de autoridade, e a melhor forma de combater isso é fazendo uso da melhor justificativa técnica e do maior controle social possível.

Não é por outra razão que o Projeto da Lei Geral de Licenciamento Ambiental prevê um recurso administrativo com prazo de 30 (trinta) dias para a revisão das condicionantes ambientais ou da sua previsão de cumprimento, além de versar sobre a impossibilidade de o empreendedor ficar responsável pelo desenvolvimento de políticas públicas [5].  

Isso não quer dizer, contudo, que houve a proibição da exigência das chamadas condicionantes sociais. Na realidade, tais contrapartidas podem e devem ser solicitadas, contanto que os impactos sociais a serem compensados ou mitigados guardem relação direta com a atividade poluidora. Não faz sentido algum exigir medidas compensatórias não diretamente relacionadas aos impactos ambientais causados pela atividade poluidora, uma vez que é preciso configurar a existência do nexo de causalidade, o que deverá ser apurado durante a confecção e a análise do estudo ambiental.

O inciso VI do artigo 170 da Constituição Federal alçou o meio ambiente à condição de princípio da ordem econômica, "inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação". Destarte, é preciso ocorrer não apenas um vínculo de pertinência, mas também de proporcionalidade entre os impactos ambientais gerados e as condicionantes solicitadas. Isso denota que, a depender das peculiaridades do caso concreto, é possível sim se exigir do empreendedor a construção e/ou a administração de equipamentos de saúde, de educação ou de assistência social, desde que se comprove a relação de pertinência.

A título de exemplo, seria possível citar o caso de um grande empreendimento minerário a ser instalado em uma pequena e distante cidade, gerando uma explosão demográfica na região e o consequente colapso no sistema público de saúde, infraestrutura urbana, educação etc.

Uma iniciativa relevante nesse sentido foi a publicação da OJN 33, em 14 de abril de 2022, pela Procuradoria Federal Especializada junto ao ICMBio, a qual dispôs sobre os parâmetros jurídicos para a fixação das condicionantes em matéria ambiental[6]. Afora referendar o inciso XI do artigo 3º, XI da LLE, essa OJN trouxe as seguintes novidades) a necessidade de as condicionantes apresentarem redação e motivação adequadas, de forma explícita, clara e congruente, ii) a necessidade de a condicionante ambiental apresentar um marco temporal de cumprimento e/ou avaliação periódica e iii) a busca pelo diálogo de fontes normativas e institucional multisetorial e interfederativo por meio da interação/articulação. Inobstante ser uma regulamentação do ICMBio, ela tende a ser observada pelo Ibama e pelos demais órgãos ambientais, seja pela relevância desse órgão ambiental, pela falta de parâmetros mais específicos sobre o tema e pela evidente ligação da OJN com o dispositivo transcrito da LLE.

 


[1] A respeito do assunto, sugere-se a leitura do artigo “Condicionantes para concessão do licenciamento ambiental” (https://www.conjur.com.br/2019-set-28/ambiente-juridico-condicionantes-concessao-licenciamento-ambiental), de autoria nossa.

[2] O § 10 do art. 3º da LLE dispõe que “O disposto no inciso XI do caput deste artigo não se aplica às situações de acordo resultantes de ilicitude”.

[3] A respeito do assunto da relação entre a LLE e o licenciamento ambiental, sugere-se a leitura do artigo “Análise dos efeitos da Lei de Liberdade Econômica no licenciamento ambiental” (https://www.conjur.com.br/2020-jan-25/ambiente-juridico-efeitos-leiliberdade-economica-licenciamento-ambiental), de autoria nossa.

[4] Mesmo antes da LLE já existia a crítica na doutrina quanto ao uso descabido de condicionantes sociais no licenciamento ambiental, a exemplo de Daniel Tobias Athias, para quem “as condicionantes não devem servir como substitutivo da inação estatal” (“Direitos sociais no licenciamento ambiental”. Valor Econômico, 11/03/2015). É o caso também de Eduardo Fortunato Bim, que, no artigo ”Condicionantes sociais devem ter nexo com impactos ambientais” (https://www.conjur.com.br/2016-mai-11/eduardo-bim-condicionantes-nexo-impacto-ambiental#sdfootnote11sym), criticava tais práticas: “Infelizmente, os órgãos licenciadores tendem a incorporar essas necessidades básicas e repassá-las aos empreendedores (inclusive o próprio Estado), tentando suprir com condicionantes as deficiências estatais nas políticas públicas ou até mesmo problemas entre particulares. O problema extrapola a mera conspurcação e tumulto no licenciamento ambiental porque usá-lo para alcançar outros fins caracteriza-se desvio de poder ou finalidade”.

[5] Essa possibilidade consta no § 4º do Art. 13 da quarta versão do Projeto de Lei Geral de Licenciamento Ambiental.

[6] A respeito da ONJ 33/2022 sugerimos a leitura do artigo “Parâmetros jurídicos para fixação de condicionantes ambientais” (https://www.conjur.com.br/2022-abr-23/ambiente-juridico-parametros-juridicos-fixacao-condicionantes-ambientais), da autoria de Frederico Rios Paula e nossa.

Autores

  • é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE, pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!