Interesse Público

Mudanças na Lei 14.133/21 e a contratação de obras e serviços de engenharia

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12 de outubro de 2023, 8h00

O Projeto de Lei nº 3.954/2023, que tramita no Senado [1], deseja alterar a Lei Federal nº 14.133/2021 — Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (NLLC) — objetivando "a gestão eficiente dos recursos relativos à aplicação dos recursos de convênios e outras providências".

Dentre as "outras providências" do PL, destaca-se a pretensão de modificar o artigo 6º da NLLC, dedicado a elencar os conceitos aplicáveis ao diploma. Na redação vigente, os serviços especiais de engenharia são definidos como "aquele que por sua alta heterogeneidade ou complexidade, não pode se enquadrar na definição constante da alínea 'a' deste inciso", que trata do serviço comum de engenharia.

Spacca
A proposta de alteração pretende incorporar no conceito de serviços especiais de engenharia os serviços técnicos profissionais de natureza predominantemente intelectual, ao acrescentar ao texto vigente o trecho "ou aquele que incluir trabalhos relativos a qualquer das disposições previstas no inciso XVIII do caput deste artigo" [2]. Assim, se promovida a alteração, todos os serviços técnicos profissionais de que trata o inciso XVIII do artigo 6º poderão ser caracterizados como serviços especiais de engenharia.

A alteração é relevante porque, se implementada, implicará limitar os critérios de julgamento que poderão ou não ser adotados na contratação das obras e serviços de engenharia e afasta, definitivamente, a possibilidade do uso do pregão para esses serviços. Isso porque a alteração afasta qualquer possibilidade de classificar esses serviços como comuns.

Na redação vigente, apenas na hipótese de se pretender a contratação de alguns dos serviços técnicos profissionais — quando o valor estimado da contratação superar aproximadamente R$ 343 mil — se exige a adoção do critério técnica e preço ou melhor técnica (artigo 37, §2º da NLLC), o que por seu turno, afasta o emprego do pregão. Para os demais casos envolvendo serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual (artigo 36, § 1º, I) a previsão legal é apenas de preferência pelo critério técnica e preço.

O Projeto de Lei nº 3.954 também pretende que as obras e serviços especiais de engenharia, cujo valor estimado supere R$ 1,5 milhão, sejam licitados apenas pelo modo de disputa fechado [3]. Assim, se a alteração se concretizar, a concorrência, modalidade de licitação que seria usada — salvo casos mais excepcionais de diálogo competitivo — não poderia se dar pelo critério menor preço, dado que inconciliável com o modo fechado.

Devemos lembrar que, à luz da Lei Federal nº 14.133/2021, o pregão não é permitido para contratação de obras. E a razão para tal é a rejeição do legislador às características do pregão vistas (ao menos parte delas) como inadequadas para casos de obras. Isso se presume, dado que de fato há uma repulsa da lei ao pregão para obras.

Entre os propósitos do processo licitatório (artigo 11) está "evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos". O legislador pretendeu, com tal redação, prestigiar o interesse público que reside na alocação de recursos públicos de forma racional, evitando-se não apenas dispêndios excessivos, como também o desatendimento da demanda fruto do abandono do contrato dada a impossibilidade de execução pelos valores irrisórios e irreais praticados nas propostas. O pregão, ou mais precisamente, o estímulo à redução dos valores por meio de lances, nem sempre tutela o interesse público.

Ademais a concorrência no critério menor preço será processada segundo o mesmo rito do pregão. E, adotando-se o critério menor preço, as obras podem ser licitadas no modo de disputa aberto ou aberto fechado. Assim, a alteração legislativa pretende justamente inibir essa hipótese. O PL, se aprovado, evidenciaria qual característica do pregão, segundo o legislador, não se amolda às obras (ou a parte delas): o modo de disputa aberto. Isso porque para obras acima de R$ 1,5 milhão o modo de disputa passaria necessariamente a ser fechado.

Dessa forma, o objetivo da inclusão do dispositivo na Lei Federal nº 14.133/21, segundo a justificativa apresentada pela senadora proponente, é evitar que propostas inexequíveis saiam vencedoras dos processos licitatórios com modo de disputa aberto. Entende-se que o modo de disputa aberto faz com que os fornecedores, no ímpeto de cobrir os preços apresentados, deem lances descasados da realidade, colocando em risco a execução do objeto, nos moldes desejados. A inexequibilidade de propostas desencadeia pedidos de reequilíbrio ou abandono e logo obras abandonadas, problema apontado como latente no Brasil pelo TCU, em 20192.

Outra proposta do PL é o esclarecimento de que seria possível a carona em atas de registro de preços municipais. Sabe-que a literalidade da atual redação legal tem gerado polêmica [4] . Parcela importante da doutrina acredita que a vedação fere o pacto federativo [5]. Sobre o tema já se manifestou o TCE-MG [6], em entendimento que corrobora a alteração proposta, no sentido de que compete ao Estado, em âmbito regional, e aos municípios, no âmbito local, regulamentar, com fundamento no artigo 78, § 1 º, da Lei nº 14.133/21, os procedimentos auxiliares, entre os quais se insere o sistema de registro de preços, oportunidade em que poderão dispor acerca da possibilidade ou não de adesão a atas de registro de preços municipais, além das distritais, estaduais e federais, na medida em que a previsão do § 3º do artigo 86 veicula norma específica aplicável apenas à administração pública federal. Ou seja, cabe a cada ente federado decidir sobre a possibilidade ou não de adesão a ata de registro de preços de outros entes, inclusive a atas municipais

A alteração proposta modificaria o parágrafo 3º do artigo 86, da Lei Federal nº 14.133/2021 que ficaria assim:

"§ 3º A faculdade de aderir à ata de registro de preços na condição de não participante poderá ser exercida:
I – por órgãos e entidades da Administração Pública federal, estadual, distrital e municipal, relativamente a ata de registro de preços de órgão ou entidade gerenciadora federal, estadual ou distrital; ou
II – por órgãos e entidades da Administração Pública municipal, relativamente a ata de registro de preços de órgão ou entidade gerenciadora municipal, desde que o sistema de registro de preços tenha sido formalizado mediante licitação."

Vê-se que ainda que se admita a adesão, o legislador ainda assim estaria restringindo e uma vez mais se abriria a discussão. A adesão a atas municipais seria facultada apenas a outros municípios, o que não se toleraria à luz da autonomia dos estados. Cada estado há de decidir por si.

A isso se adiciona que a adesão, nos moldes do PL, seria possível apenas se a ata resultasse de licitação. Ou seja, se a ata resultasse de contratação direta, não se poderia admitir a carona a atas municipais. Há, parece, um raciocínio que permeia a proposta: a carona a atas municipais seria uma exceção apenas para outros municípios e só em casos em que a disputa propriamente dita tivesse ocorrido (licitação).

Apesar de a discussão específica da alteração ser outra, é importante ressaltar que o uso do Sistema de Registro de Preços para a contratação de obras e serviços de engenharia é tema bastante controvertido. Dessa forma, pela natureza dificilmente padronizável dos objetos, o SRP deve ser usado com muita parcimônia, seguindo a estrita previsão da NLLC. A adesão de municípios a ata de registro de preços de outro município, quando o objeto for obra ou serviço de engenharia, deve ser vista como excepcional e com muita cautela.

 


[1] De autoria da Senadora Teresa Cristina (PP-MS).

[2] O referido inciso XVIII do art. 6º descreve o que seriam serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual, que incluem estudos técnicos, planejamentos, projetos básicos e projetos executivos; pareceres, perícias e avaliações em geral; assessorias e consultorias técnicas e auditorias financeiras e tributárias; fiscalização, supervisão e gerenciamento de obras e serviços; patrocínio ou defesa de causas judiciais e administrativas; treinamento e aperfeiçoamento de pessoal; restauração de obras de arte e de bens de valor histórico; controles de qualidade e tecnológico, análises, testes e ensaios de campo e laboratoriais, instrumentação e monitoramento de parâmetros específicos de obras e do meio ambiente e demais serviços de engenharia que se enquadrem na definição deste inciso.

 

[3] “Art. 56. ……………………………………………………………………………………………………………………………………..

§ 1º A utilização isolada do modo de disputa fechado será vedada quando adotados os critérios de julgamento de menor preço ou de maior desconto, exceto quando se tratar de licitações com valor estimado acima de R$ 1.500.000 (um milhão e quinhentos mil reais) para contratação de obras e serviços especiais de engenharia, que serão processadas sempre pelo modo de disputa fechado.” (NR)

[4] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas, 1. ed., São Paulo: Thomson Reuters, 2021, pg; 1184.

[5] BOUCHATON, Vinicius: Municípios pegam carona nas atas de registros de preço de consórcios públicos. Conjur, 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mar-23/thales-bouchaton-carona-otica-lei-licitacoes.

[6] Processo: 1102289. Relator Conselheiro Substituto Hamilton Coelho Tribunal Pleno – 15/3/2023.

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