Sangue quente

Mesmo sem permitir venda de plasma sanguíneo, PEC gera receio sobre lei futura

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10 de outubro de 2023, 20h21

A PEC do Plasma, aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado na última semana, gerou receio do governo federal quanto à possibilidade de comercialização da parte líquida do sangue humano. No entanto, especialistas em Direito Médico consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico afirmam que esse receio é precoce, uma vez que o texto aprovado não permite de forma expressa a venda de plasma.

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PEC autoriza participação da iniciativa privada na coleta e gestão do plasma

Segundo a PEC, uma lei específica deve regular a coleta e o processamento de plasma humano tanto pelo poder público quanto pela iniciativa privada, desde que o objetivo seja desenvolver novas tecnologias e produzir biofármacos (medicamenetos biológicos) destinados ao SUS.

Atualmente, a gestão de material sanguíneo é feita de forma exclusiva pela Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás), estatal vinculada ao Ministério da Saúde. O parágrafo 4º do artigo 199 da Constituição proíbe a comercialização.

De acordo com a advogada Marinella Afonso de Almeida, a PEC não afeta essa proibição: "Não há na proposta original nenhuma permissão para que haja a remuneração dos doadores de sangue".

A proposta, de fato, "não modifica o caráter gratuito" da gestão do sangue, como aponta o advogado sanitarista Silvio Guidi. Segundo ele, o texto ainda é aberto demais para alterar esse cenário, já que delega toda a regulação para a lei.

Questão de lei
Guidi ressalta que, a depender de seu teor, a lei regulamentadora, a ser editata no futuro, poderia ser considerada inconstitucional. Na sua visão, isso aconteceria caso "essa lei viesse a dizer que as pessoas podem receber dinheiro para o fornecimento do seu plasma". Nesse caso, haveria desrespeito à proibição estipulada pela Constituição.

Por outro lado, segundo ele, não haveria inconstitucionalidade se a lei apenas seguisse as orientações da PEC e regulamentasse o recebimento gratuito e o uso do plasma como insumo para desenvolvimento de tecnologias e medicamentos.

"O que precisa ser mantida é a gratuidade do fornecimento desse insumo humano", diz Guidi. "A pura e simples participação da iniciativa privada nesse processo, em especial colaborando com o SUS, não teria nenhuma conotação de inconstitucionalidade".

O advogado lembra que algo semelhante já é feito nas pesquisas clínicas: patrocinadores podem comercializar medicamentos concebidos a partir delas, mesmo quando há participação de voluntários (que não recebem remuneração por isso). "Nem por isso a pesquisa clínica é inconstitucional", afirma ele.

Marinella, por sua vez, argumenta que a Hemobrás não funciona plenamente: "Todo o plasma doado hoje em hemocentros é enviado para laboratórios no exterior para processamento e, depois, retorna ao país na forma de medicação de alto custo".

Para ela, é "precipitada" a conclusão de que os interesses do setor privado podem criar um mercado de plasma e prejudicar o acesso de pacientes a medicamentos hoje gratuitos. A advogada lembra que a própria PEC prevê a "destinação precípua ao SUS".

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PEC não altera regra que proíbe venda de plasma, mas críticos temem brechaReprodução

De acordo com Marinella, a ampliação da produção de hemoderivados (medicamentos produzidos a partir do plasma) pode agilizar sua disponibilização, reduzir os preços, gerar empregos qualificados e contribuir com avanços tecnológicos.

Por sua vez, a advogada Gisele Machado Figueiredo Boselli, especialista em Direito Médico e da Saúde, não vê problema na alteração promovida por meio de uma PEC. Para ela, também não há violação à lógica do SUS, pois os hemoderivados seriam adquiridos da mesma forma que outros medicamentos: "Existe uma estrutura regulatória muito grande, envolvendo Ministério da Saúde, Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) etc.".

Sandra Franco, consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, lembra que, em 2020, o Tribunal de Contas da União notificou o Ministério da Saúde pelo desperdício de 600 mil litros de plasma não usados na produção de hemoderivados.

Ela defende a criação de uma legislação específica para um melhor aproveitamento do componente sanguíneo. Na sua opinião, a ideia do uso do plasma direcionado para inovação e produção de medicamentos é "bastante interessante".

Ressalvas
No entanto, Sandra reconhece que o interesse financeiro das empresas pode abrir uma porta para a comercialização. Segundo ela, a legislação específica sugerida pela PEC precisaria "ser muito bem construída para não incorrer em dilemas éticos e não primar o lucro à própria ética da vida".

Já o advogado Tertius Rebelo, especialista em Direito Médico e da Saúde e membro consultor da Comissão Especial de Direito da Saúde da OAB Nacional, entende que a PEC "representa uma abertura que, em curto prazo, poderia potencialmente incluir não apenas o plasma, mas também outros tecidos e órgãos humanos na esfera da mercantilização".

Rebelo reconhece a validade da alteração por meio de PEC, mas considera que a autorização para atuação da iniciativa privada na coleta e no processamento de plasma pode ter consequências preocupantes, como desequilíbrio no sistema de doações, risco à qualidade do plasma coletado e priorização dos interesses comerciais sobre os da saúde pública.

Mais incisiva, a advogada Ana Carolina Moreira Santos, mestra em Direito Médico, parte dos pressupostos de que a "comercialização visando a lucro é inata à iniciativa privada" e de que as empresas só atuarão "em vista do acúmulo de capital". Por isso, ela considera a PEC inconstitucional.

Ana Carolina vê violações à proibição da comercialização; ao artigo 196 da Constituição, que garante o direito à saúde; e à Lei 8.080/1990, que inclui no escopo do SUS a formulação e a execução da política de sangue, bem como a pesquisa e a produção de hemoderivados.

"A norma constitucional e a infraconstitucional são mecanismos de garantia do acesso universal e integral às ações e serviços que visem a garantir o direito à saúde", argumenta ela. "A PEC viola esses preceitos ao permitir a comercialização de bem jurídico inalienável em um país cujas desigualdades sociais são conhecidas". Na sua visão, a proposta submete a dignidade humana às regras do mercado.

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