Opinião

Mudanças climáticas, direitos humanos e tecnologia

Autor

  • Lucas Carlos Lima

    é professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais CNPq/UFMG membro da Diretoria do Ramo Brasileiro da International Law Association consultor internacional e organizador da obra Comentário Brasileiro à Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

10 de outubro de 2023, 21h41

Reunidos na Assembleia Geral da ONU, os estados deixaram claro que as mudanças climáticas são "um dos maiores desafios de nosso tempo", que "as emissões de gases de efeito estufa continuam a aumentar", e reconheceram o fato de que "todos os países, especialmente os países em desenvolvimento, são vulneráveis aos impactos adversos das mudanças climáticas e já estão sofrendo com o aumento desses impactos" [1].

A emergência climática naturalmente demanda da ciência jurídica respostas à altura e algumas delas são bastante conhecidas. O Acordo de Paris de 2015 e os compromissos assumidos pelos estados para a redução de emissão de gases são, como se sabe, as principais tentativas do direito internacional de enfrentar o problema.

Para além dos compromissos entre estados, também já se tem como certo de que existe um efeito direto das mudanças climáticas sobre a proteção dos direitos humanos. Esse é o objeto de importante pedido de parecer consultivo perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos e de discussões em outros fóruns internacionais.

Direitos como saúde, vida, propriedade, direito ao meio ambiente saudável e limpo são diretamente afetados pela alteração do sistema clima em virtude da emissão de gases de efeito estufa. Contudo, as mudanças climáticas são também capazes de produzir efeitos vorazes em outras áreas do direito. Em especial, é possível verificar um impacto direto das mudanças climáticas na regulação das atividades de tecnologia, que podem sofrer um impacto ainda maior a depender das respostas que os campos jurídico e científico oferecem à questão. Exemplos notórios são os setores de energia, transportes, indústria, agricultura, silvicultura e administração de resíduos.

Estes setores podem ser particularmente influentes nas questões de propriedade intelectual, como patentes sobre tecnologias, bem como nas exceções aos regimes internacionais por processos de produção "verdes", ou pelo menos, "esverdeados".

O objeto deste ensaio é oferecer uma reflexão preliminar sobre como a regulação internacional das mudanças climáticas, associada ao direito internacional dos direitos humanos, pode oferecer um impacto nas obrigações relativas ao campo da tecnologia, também compreendendo algumas noções jurídicas como propriedade intelectual. Uma das questões centrais que perpassa o atual debate envolve a discussão sobre transferência de tecnologias para combater, mitigar e adaptar-se às mudanças climáticas.

Em 1992, no Rio de Janeiro, quando da Cúpula da Terra, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima já incorporava essa preocupação na medida em que um dos propósitos do tratado era a "promover e cooperar para o desenvolvimento, aplicação e difusão, inclusive transferência de tecnologias, práticas e processos que controlem, reduzam ou previnam as emissões antrópicas de gases de efeito estufa" (artigo 4) [2].

No Acordo de Paris, já no preâmbulo a questão emerge na medida em que são reconhecidas "necessidades específicas e das situações especiais dos países de menor desenvolvimento relativo no que diz respeito a financiamento e transferência de tecnologia". O artigo 10 do Acordo é muito específico em salientar a necessidade de cooperação e a criação de um mecanismo relativo à transferência de tecnologia. Nesse sentido, ao mesmo tempo que pode se reconhecer a importância, pode-se notar as poucas obrigações concretas que estados assumem em relação ao tema para além do dever de cooperar.

Naturalmente, as tecnologias em questão envolvem tanto aquelas relativas a mitigação quanto as dedicadas à fortalecer a adaptação, e podem ser divididas, em apertada síntese, em tecnologias que transformem processos de produção e processos industriais em processos "verdes"  ou seja, que tenham menor impacto e emissão de gases de efeito estufa  bem como tecnologias específicas que auxiliem nos processos de diminuição dos gases da atmosfera [3].

Assim como existem impasses sobre o financiamento climático nas Conferências das Partes (COPs) da Convenção-Quadro sobre o clima, há também problemas oriundos das obrigações de cooperação para transferência de tecnologia. É possível verificar Estados em desenvolvimento utilizando em seus discursos de política externa jurídica (também perante os tribunais internacionais acionados para oferecerem opiniões consultivas) a importância da cooperação na transferência de tecnologia.

Interferem sobre essa questão o regime internacional de direitos humanos. Ao mesmo tempo em que o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos Sociais e Culturais, em seu artigo 15, reconhece o direito individual e coletivo de "desfrutar o progresso científico e suas aplicações", essa obrigação internacional coexiste com o dever de proteção aos direitos de propriedade intelectual na medida em que o Pacto também prevê a "proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a produção científica". Em recente Comentário Geral (nº 25, 2020), o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais reiterou a importância de que "todos devem usufruir dos benefícios do progresso científico e de suas aplicações".

Parece existir uma tensão entre a proteção da propriedade intelectual e a necessidade de disseminar os benefícios do processo científico em processos sustentáveis que se coloquem à serviço do enfrentamento da emergência climática. Seria abrupto, mas não completamente impreciso, afirmar que o direito da propriedade intelectual e a proteção de tecnologias, também a nível internacional, encontra-se sob uma pressão intensa em virtude da necessidade de oferecer condições a países em desenvolvimento e suas empresas para desenvolver tecnologias de resiliência climática.

Em alguns casos, a propriedade intelectual pode representar obstáculos significativos para as pessoas e empresas que desejam acessar os benefícios do progresso científico, apesar de seu papel em contribuir para a inovação e o desenvolvimento da ciência  o que proporciona incentivos positivos para novas atividades de pesquisa.

Como se nota, diferentes obrigações oriundas de regimes jurídicos diversos (clima, direitos humanos, propriedade intelectual) desempenham papéis distintos num complexo jogo de xadrez jurídico motivado pela emergência climática. A presença de obrigações pouco claras em relação à obrigação de cooperar (bastante frequente no direito internacional) e a prática ainda diminuta sobre a questões faz com que as respostas aos problemas colocados sejam ainda incertas. Permanece a tensão entre um regime emergente e a tentativa de formular novas exceções ao regime jurídico atual.

Talvez algum esclarecimento sobre a obrigação de cooperar possa emergir em virtude das três opiniões consultivas demandadas ao Tribunal Internacional sobre o Direito do Mar, à Corte Interamericana de Direitos Humanos e à Corte Internacional de Justiça sobre diferentes aspectos das consequências jurídicas relativas às mudanças climáticas. Mas muito depende da própria manifestação dos Estados nestes fóruns, onde, a partir de uma leitura das manifestações perante o Tribunal do Mar, parece subsistir uma divisão entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.

Pode-se conclusivamente esboçar algumas conjecturas gerais. O problema geral da relação entre o direito das mudanças climáticas, direitos humanos e propriedade intelectual se manifesta numa tensão existente (e já conhecida) entre a proteção de direitos de propriedade intelectual e a necessidade de partilho de benefícios. O adicional da emergência climática levanta o questionamento se a urgente necessidade de novas tecnologias verdes respeitará os cânones tradicionais da propriedade intelectual ou se um regime excepcional será criado a partir de regras especiais.

As obrigações de direitos humanos podem levar os estados a tomar medidas diferentes quando se trata de tecnologias verdes, mas muitos interesses podem pressionar o campo em caminhos diferentes. Pode-se questionar também qual é o papel do setor privado nessa regulamentação e qual serão os incentivos que estados oferecerão às empresas nesse sentido, e novos debates sobre o papel das obrigações de direitos humanos e das obrigações de devida diligência parecem ser um indicativo fundamental dessa tensão.

Encontrar um equilíbrio entre a proteção da propriedade intelectual, o estímulo correto ao desenvolvimento de novas tecnologias verdes e o enfrentamento da crise climática de forma eficiente e equitativa permanece o grande desafio nesse campo. A prática de litigância climática futura, nacional e internacional, pode oferecer bons indicativos sobre a difícil relação. No entanto, os tribunais podem também se provarem insuficientes para, de forma definitiva, combater um dos maiores desafios de nosso tempo.

 

 


[1] Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Resolução A/RES/77/165 "Protection of global climate for present and future generations of humankind", 22 de dezembro de 2022.

[2] Sobre o tema, ver LIMA, Lucas Carlos; TOLEDO, André de Paiva. Comentário Brasileiro à Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Belo Horizonte, D'Placido, 2022.

[3] Sobre o tema, ver RING, Caoimhe. Patent Law and Climate Change: innovation policy for a climate crisis. Harvard Journal of Law & Technology, Vol. 35, 2021, pp. 373-404. Ver também SARNOFF, Joshua D. The Patent System and Climate Change. Virginia Journal of Law & Technology, vol, 16, 2011, pp. 301-360.

Autores

  • é professor de Direito Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais e membro da diretoria do ramo brasileiro da International Law Association.

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