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Relatório final da CPI das Pirâmides Financeiras: principais recomendações

Autor

  • Isac Costa

    é sócio de Warde Advogados professor do Ibmec do Insper e da LegalBlocks doutor (USP) mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito engenheiro de Computação (ITA) e ex-analista da CVM onde também atuou como assessor do colegiado.

10 de outubro de 2023, 11h18

Para muitos, o mercado de criptoativos tem uma afinidade perigosa com a proliferação de pirâmides financeiras, sonegação fiscal, evasão de divisas e lavagem de dinheiro. Algumas pessoas exploraram a credulidade, a ganância e a ignorância acerca de riscos associados a investimentos para fazer fortuna e prejudicando não só a poupança popular como também o próprio desenvolvimento da criptoeconomia. Boa parte desses golpes nada tinha a ver com criptoativos diretamente, utilizando-os apenas como isca, dado o fascínio do público em geral sobre os violentos movimentos de preços.

Na mesma semana em que ocorre o julgamento de Sam Bankman-Fried, ex-CEO da FTX, cujo colapso acentuou o longo inverno cripto em meados de 2021, a Câmara dos Deputados aqui no Brasil divulgou o relatório final da CPI das Pirâmides Financeiras. O documento tem mais de 500 páginas e nesse texto procuro explorar seus principais pontos, lições aprendidas e recomendações.

Spacca
De início, devemos ter em mente que as comissões parlamentares de inquérito têm como objetivo o levantamento de informações para que as autoridades instaurem ou instruam processos administrativos ou criminais e, ainda, subsidiar as discussões sobre reformas de leis e regulamentos para prevenir a repetição de escândalos e dos ilícitos que são investigados.

Além de recomendar o indiciamento de mais de quarenta pessoas, a CPI das Pirâmides Financeiras atacou lacunas regulatórias que vinham sendo exploradas para que empresas utilizassem o Sistema Financeiro Nacional sem se submeter à regulação vigente. Vejamos.

Recomendações ao Banco Central e alterações na Lei nº 14.478/2022
Embora a regulamentação da Lei nº 14.478/2022 ainda esteja em fase de elaboração pelo Banco Central, a CPI propôs alteração neste diploma legal para estabelecer requisitos específicos para a autorização dos prestadores de serviços virtuais. Ainda, a alteração legislativa obriga a transferência de recursos entre usuários e prestadores de serviços de ativos virtuais por meio de contas de depósito ou de pagamento individualizadas, restabelece a segregação patrimonial entre prestadores de serviços de ativos virtuais e seus usuários e, por fim, proíbe a oferta ou a negociação de derivativos por prestadores de serviços de ativos virtuais sem a autorização da CVM (Comissão de Valores Mobiliários).

Nos requisitos detalhados na proposta de alteração legislativa, encontramos, dentre outros, a capacidade econômico-financeira dos controladores, a licitude dos recursos utilizados para viabilizar o empreendimento, sua viabilidade econômico-financeira, compatibilidade de sua estrutura de tecnologia de informação e de sua governança corporativa com os riscos associados, bem como conhecimento do ramo do negócio e capacitação técnica dos administradores.

Resta saber se e como a edição das normas em curso pelo Banco Central irão recepcionar essas recomendações, a despeito de não terem se tornado lei.

A CPI recomendou ainda ao BCa apuração da conduta de Prestadores de Serviço de Ativos Virtuais (PSAVs), quando estas fazem uso de configurações de operação de depósito e saques em reais através de contas bancárias que não são de titularidade do PSAV, normalmente em contas ditas "ônibus" ou "bolsões", uma prática que pode favorecer a lavagem de dinheiro.

Recomendações à Receita Federal
A CPI recomenda à Receita a alteração da Instrução Normativa nº 1.888/2019, para atualizar o conceito de criptoativo e ampliar o dever de reporte de operações com criptoativos pelos representantes locais das exchanges (corretoras) estrangeiras.

Assim, ao menos em teoria, não seria mais possível oferecer serviços a pessoas no Brasil e, ao mesmo tempo, não informar à Receita sobre as transações realizadas, alegando ausência de sede no Brasil. Para garantir a eficácia desta regra, o representante local, instituição financeira ou de pagamento que viabiliza as transações com reais, seria responsável pelo cumprimento do dever de reportar ao Fisco.

Ainda em matéria tributária, a CPI recomendou a instauração de processo administrativo sobre recolhimento de impostos de PSAVs estrangeiras que atuam no Brasil, bem como indicou nomes de pessoas físicas e jurídicas que precisam ser submetidas a uma auditoria fiscal, a fim de levantar informações sobre possível sonegação de tributos nos últimos cinco anos.

Prevenção à lavagem de dinheiro
A CPI recomendou que Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) retome o acesso de habilitação para que PSAVs utilizem funcionalidades do Sistema de Controle de Atividades Financeiras (Siscoaf) — acesso esse que foi descontinuado em 2022 — no intuito de que estes compartilhem com o órgão transações financeiras de ativos digitais que considerem suspeitas de lavagem de dinheiro. Mesmo para as empresas que ainda não tenham sido autorizadas pelo Banco Central, poderão usar o Siscoaf para reporte de operações suspeitas.

Binance
A Binance foi alvo de várias recomendações específicas. A CPI recomendou ao Ministério Público Federal a apuração de todas as condutas da Binance, seu grupo econômico e as empresas que a ela prestam (e prestaram) serviço no Brasil para viabilizar sua operação no país.

Nos termos do Relatório, "causa estranheza a maior corretora de criptoativos do mundo, detendo forte poder tecnológico, se dizer vítima de fraudadores ('piramideiros'), os quais não detém sequer uma fração dessa tecnologia, não reagirem com instrumentos de bloqueio e rápida solução de identificação de operações suspeitas".

A CPI recomendou à CVM a apuração da conduta da Binance após ter recebido "stop order" para não oferecer derivativos a pessoas no Brasil, quando permitiu que fosse possível acessar esse recurso pelo uso do idioma português de Portugal. A conduta da empresa é objeto de processo administrativo sancionador em curso na CVM.

Adicionalmente, a CPI recomendou à Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e à Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor (Senacon) a verificação do cumprimento, pela Binance, das regras de proteção de dados pessoais e do Código de Defesa do Consumidor, respectivamente.

Matéria penal
O relatório da CPI traz diversas recomendações que alteram a Lei de Crimes contra a Economia Popular (Lei nº 1.521/1951), o Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940) e a Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei nº 7.492/1986), de certo modo traduzindo algumas propostas do Projeto de Lei do Senado nº 3.706/2021, aprovado recentemente naquela Casa Legislativa.

Além do aumento de penas, criação de qualificadoras e causas de aumento, há alterações na redação dos tipos penais de pirâmide financeira, estelionato com ativos virtuais e a alteração da redação de vários crimes da Lei nº 7.492/1986 para abranger o uso de ativos virtuais.

A sobreposição de condutas representará um desafio na aplicação dessas normas, se aprovadas.

Demais recomendações
Vale mencionar a recomendação ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para apurar possíveis crimes contra a ordem econômica e infrações às normas concorrenciais incidentes no Brasil, levando-se em conta a atuação de prestadores de serviços de ativos virtuais internacionais, "a fim de que se apure possível desequilíbrio no mercado da criptoeconomia no Brasil".

Ao final do relatório da CPI, encontramos também projetos de lei que dispõem sobre contatação de influenciadores digitais para qualquer tipo de ação de publicidade relativo a ativos virtuais e programas de milhagem vinculados a empresas do setor aéreo.

Conclusão
Ainda é cedo para determinar o impacto das recomendações descritas. No entanto, as autoridades parecem ter despertado para o risco de que a arbitragem regulatória na prestação de serviços envolvendo ativos virtuais no Brasil é um entrave para o desenvolvimento da criptoeconomia no país e que o Estado tentará controlar as alfândegas entre o mundo real e o mundo virtual nas transações que envolverem moeda fiduciária.

Não há como afirmar que todas essas medidas poderiam ter evitado os escândalos investigados pela CPI ou que irão prevenir eventos semelhantes no futuro. Mas o papel da regulação, em última análise, é dificultar a prática de ilícitos, impondo custos de observância. Se esse remédio se tornará veneno, só assistindo aos próximos capítulos.

Autores

  • é sócio de Warde Advogados, professor do Ibmec e do Insper, doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito, engenheiro de Computação (ITA) e ex-analista da CVM, onde também atuou como assessor do colegiado.

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