Régua moral

Falta de parâmetros gera 'decisionismo' no campo da liberdade de expressão

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8 de outubro de 2023, 9h46

O Poder Judiciário brasileiro lida com grande frequência com processos em que a liberdade de expressão colide com o direito à honra. E isso tem se mostrado um problema, uma vez que não existem parâmetros claros que possam ser aplicados em situações desse tipo. 

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Especialistas apontam decisionismo em processos sobre liberdade de expressão
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Segundo a edição deste ano do relatório "Justiça em Números", do Conselho Nacional de Justiça, até o fim de junho foram ajuizados 46.248 processos envolvendo crimes contra a honra. Foram 25.739 ações de injúria simples; 19.603 de difamação; e 14.363 de calúnia. Também aparecem no relatório motivações como injúria preconceituosa em razão de raça, religião, identidade de gênero, orientação sexual, condição de pessoa portadora de deficiência ou idosa. 

A busca pelos termos-chave "liberdade de expressão" e "direito à honra" na plataforma JusBrasil, por sua vez, apresenta 6.636 resultados nos últimos dois anos. Um número menor, mas ainda assim relevante e que demonstra que esse tipo de conflito movimenta regularmente a máquina judiciária brasileira, sem que haja um padrão — julgamentos de matérias semelhantes, muitas vezes, têm resultados antagônicos. 

"O que a gente percebe é que existe muito decisionismo. Os juízes julgam muito com base na sua régua moral, na sua ideia particular de qual é o âmbito da liberdade de expressão, sobre os limites desse direito'', explicou o desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) André Gustavo Corrêa de Andrade

O magistrado é especialista no tema e autor de livros como Liberdade de Expressão em Tempos de Cólera (GZ Editora), que aborda conceitos como discurso de ódio e cyberbulling. Ele também é um crítico da jurisprudência brasileira sobre o assunto. ''O Sistema Interamericano de Direitos Humanos é um grande desconhecido da maioria dos juízes. Ele estabelece alguns critérios, como o teste tripartite (que envolve adequação, necessidade e proporcionalidade)."

Conforme diz a Convenção Americana de Direitos Humanos, as restrições à liberdade de expressão só são aceitáveis quando cumprem os padrões internacionais que estabelecem que essa limitação deve ser prevista em lei, buscar uma finalidade legítima reconhecida pelo Direito internacional e ser necessária para alcançar essa finalidade.

''São critérios usados de maneira global. As regras da Convenção foram recebidas pelo Direito brasileiro. O artigo 13, que trata da liberdade de expressão, deveria ser aplicado aqui, mas é raramente invocado." 

A opinião de Andrade é muito parecida com a do advogado constitucionalista Henderson Fürst. Ele ressalta que o texto da Convenção Interamericana de DDHH sobre liberdade de expressão é mais bem detalhado e estabelece mais claramente marcos normativos que efetivam (e restringem) o direito à liberdade de expressão. 

''Certamente não esgota a complexidade da vida, mas dá mais instrumentos para a tutela da liberdade de expressão, especialmente ao prever que o exercício da liberdade de expressão implica responsabilidade para assegurar o respeito à reputação das demais pessoas."

O procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo Fernando Capez destaca que as regras da Convenção Interamericana de Direitos Humanos são muito parecidas com os princípios gerais da Constituição Federal e os dispositivos infraconstitucionais limitadores da liberdade de expressão, que são a Lei de Racismo e os crimes contra a honra e a apologia a crime, todos previstos no Código Penal.

Jurisprudência ignorada
Todos os especialistas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico entendem que a aplicação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o tema poderia tornar os julgamentos desse tipo de matéria mais previsíveis. 

Um caminho sugerido por Capez é a edição de súmulas, vinculantes ou não, da jurisprudência do STF e do Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto. Isso poderia, segundo ele, limitar a influência de fatores externos, como clamor popular e pressão da grande mídia, sobre os julgadores. 

''Tem ocorrido muita dissonância entre as decisões dos tribunais superiores e os estaduais e regionais, o que chegou a merecer crítica por parte do ministro Gilmar Mendes (do STF). Tais divergências contribuem também para a imprevisibilidade jurídica, pois para os jurisdicionados leigos não é fácil compreender o funcionamento do sistema", criticou Capez. 

Fürst, por sua vez, acredita que a jurisprudência do STF em relação à liberdade de expressão não é amplamente seguida pelo Judiciário porque ainda é precária a cultura de respeito aos precedentes no Brasil.

''Há estudos que demonstram que parte sensível das decisões de alguns tribunais quanto à liberdade de expressão sequer foi fundamentada adequadamente em fontes jurídicas, como precedentes ou doutrina — seguindo (o juiz) sua própria consciência ou moralidade."

Andrade, porém, lembra que não existe uma receita de bolo quando se trata desse tipo de caso, porque o princípio da liberdade de expressão é muito vago. ''Apesar disso, temos de ter segurança jurídica. O jurisdicionado deve ter clareza sobre seus direitos e deveres." 

Pessoa pública
Um dos pontos mais controversos do embate entre liberdade de expressão e direito à honra é a modulação desse direito para as pessoas públicas, que, por sua notoriedade, estão naturalmente mais expostas ao escrutínio da população e a críticas.

E, quando se trata de pessoas públicas, as controvérsias não aparecem apenas nas redes sociais, já que obras literárias têm sido censuradas com alguma frequência pelo Judiciário. Um caso emblemático é o do escritor Ricardo Lísias, que escreveu um livro sob o pseudônimo de Eduardo Cunha. 

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Escritora foi condenada por supostamente se inspirar em magistrado ao criar personagem
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Em 2020, a juíza Ledir Dias de Araujo, da 13ª Vara Cível do Rio de Janeiro, decidiu censurar o livro Diário da Cadeia: com trechos da obra inédita Impeachment. Além de mandar a obra ser recolhida, a magistrada determinou que a Editora Record e o autor pagassem R$ 30 mil a título de danos morais ao ex-deputado Eduardo Cunha. 

Ao analisar o caso, a magistrada apontou que "o direito ao pseudônimo, bem como o direito à liberdade de expressão, não constituem um direito absoluto, devendo ser respeitados os demais direitos fundamentais, dentre eles, o direito ao nome".

Em sua capa, o livro trazia um aviso em letras grandes informando que se tratava de um pseudônimo, mas a juíza não considerou essa medida suficiente. "Além disso, a própria capa do livro leva-nos a pensar que o mesmo foi escrito pelo autor da ação, uma vez que é ele quem se encontra recluso, não sendo crível que o 'pseudônimo' também se encontrasse recluso a justificar o título escolhido para o livro", escreveu ela — na época, o ex-deputado estava preso.

A decisão foi anulada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) em 2021. Com isso, editora e autor se livraram de ter de pagar a indenização por danos morais. 

Um outro processo que trata de uma sátira continua em tramitação, e ele envolve membros do Poder Judiciário de Santa Catarina e a advogada e escritora Saíle Barbara Barreto.

Ela foi condenada pelo TJ-SC a indenizar um juiz que a acusou de ter se inspirado nele para criar um personagem de um livro de ficção. Saíle chegou a ser ameaçada de prisão por causa da obra Causos da Comarca de São Barnabé. O caso é objeto de reclamação no STF, e o julgamento está paralisado por pedido de vista do ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente da corte. 

O desembargador André Gustavo Corrêa de Andrade lembra que o direito de sátira já tem sido reconhecido há muitas décadas. Ele cita o caso do especial de Natal do grupo humorístico Porta dos Fundos que provocou um processo de uma entidade religiosa por ser supostamente ofensivo à fé cristã.

''Em um primeiro momento, o especial chegou a ser censurado, mas a decisão do TJ-RJ logo foi derrubada pelo STF'', recorda ele. O magistrado afirma que toda sátira traz uma crítica, e ela faz parte da liberdade de expressão. 

''Você criticar um político ou um juiz é uma das razões da liberdade de expressão, que é exatamente questionar o poder. Se o agente público puder entrar com uma ação contra uma pessoa por conta de uma crítica e sair vencedor, a liberdade de expressão vai valer muito pouco'', explicou ele, com a ressalva de que o limite para a sátira é envolver aspectos pessoais, como a família de uma autoridade. 

Nos Estados Unidos, segundo Andrade, um dos parâmetros usados é que só se deve afetar casos de difamação no que se refere a fatos, e não a opinião. "Isso no Brasil ainda não foi admitido porque temos o crime de injúria. Isso vem sendo questionado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos." 

Por fim, o magistrado acredita que o Judiciário ainda está construindo uma cultura de precedentes em torno da liberdade de expressão. ''Ainda temos um bom caminho pela frente'.'

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