Embargos Culturais

A tese de livre-docência do ministro Moreira Alves

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

8 de outubro de 2023, 8h00

Faleceu durante a semana o ministro José Carlos Moreira Alves. Reconhecido como um dos magistrados mais bem preparados na reminiscência histórica do Direito brasileiro, Moreira Alves foi um profundo conhecedor da Teoria Geral do Direito, do Direito Romano e de todos os campos da experiência jurídica. Porque tinha uma formação sólida, dominando conceitos e estruturas, não havia assunto para o qual não tinha uma resposta precisa e definitiva; era um oráculo, na expressão délfica e precisa do termo.

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Notabilizou-se nas ideias do Direito brasileiro por expressiva e criativa atuação como ministro do Supremo Tribunal Federal (1975-2003), por significativa atuação como procurador-geral da República (1972-1975), e especialmente pela incomparável cultura jurídica. Lendo seus votos, tenho impressão de que o ministro Moreira Alves havia lido e assimilado todos os autores canônicos da literatura jurídica.

Deixou-nos monumental livro de Direito Romano (publicado pelo Senado Federal), bem como uma série de estudos sobre o mesmo assunto. É nesse livro que o leitor encontra a tese de livre-docência de Moreira Alves, defendida em 1961, em concurso disputadíssimo, cujas traços centrais Ronaldo Poletti explicou em estudo introdutório ao livro mencionado. A retomada desse texto é uma forma simbólica de homenagem.

A tese que Moreira Alves apresentou à Egrégia Congregação da então Faculdade de Direito da Universidade do Brasil intitulou-se de "Os efeitos da boa-fé no casamento nulo segundo o Direito Romano" [1]. Moreira Alves explorou o "vasto campo de controvérsias" que o casamento suscitava no Direito Romano, segundo observou logo no início desse erudito texto. A tese foi concebida a partir de fontes normativas primárias (Código Teodosiano, Fragmenta Quae Diquntur Vaticana, Gaio, as Institutas, o Digesto, as Novelas), de autores centrais no cânon literário clássico (Cícero, Juvenal, Suetônio, Tácito, Tito Lívio), a par dos mais expressivos romanistas (Savigny, Biondi, Makeldey, Mommsen, Pothier).

Moreira Alves enfrentou o problema da existência (ou não) de um casamento putativo no Direito Romano. Com tal objetivo, investigou a natureza jurídica, os requisitos e os efeitos do que os romanos denominavam de "iustum matrimonium". Retomou antigo debate, a respeito da natureza do casamento. Para os glosadores, observou Moreira Alves, o casamento decorria de um contrato desprovido de fundo patrimonial. Em oposição, tese que dava conta de que o matrimônio significaria tão somente um contrato, ainda que, segundo o então candidato, a literatura romana não mencionasse a expressão "contractus" com vista a qualificar o instituto. Alcançou concepções conceituais bem posteriores, que vinculavam o casamento à conveniência e à intenção dos contraentes. Nesse sentido, o consenso seria o ponto de partida para a compreensão desse arranjo institucional, o que promoveu outra interminável discussão, isto é, se o consenso matrimonial seria meramente inicial ou se seria contínuo.

Ilustrando a discussão, Moreira Alves mencionou passagem de Quintiliano, a respeito de uma mulher que julgou que o marido ausente teria morrido, pelo que contraiu novas núpcias, casando-se de novo. Segundo Moreira Alves, "o primeiro esposo retorna a casa, encontra-a no leito com o segundo marido, mata-a como adúltera (…) em sua defesa, ele alega a existência de adultério". A acusação certamente deve ter insistido que o consentimento nupcial é contínuo e não simplesmente inicial e originário. Moreira Alves explorou também outros aspectos do vínculo matrimonial romano, a exemplo da impossibilidade do casamento entre patrícios e plebeus, proibição levantada por meio da Lei Canuléia.

Os vários impedimentos matrimoniais foram listados (o adúltero não podia se casar com sua cúmplice, o governador não podia se casar com mulher nascida ou domiciliada em sua província, o raptor não podia se casar com a raptada, tivesse ela consentido ou não, no rapto). Moreira Alves também elucidou o regime de bens no casamento romano, ensinando-nos que havia uma total independência econômica entre os cônjuges.

A tese trata também do casamento nulo, no sentido de que a nulidade poderia ser arguida a qualquer tempo, e por qualquer interessado. Moreira Alves refere-se também ao "tempus lugendi", tempo que deveria ser respeitado após a dissolução do casamento, com vistas à realização de um novo matrimônio, que variava de dez a 12 meses. Os romanos se precaviam com a "turbatio sanguinis", o que pode ser a chave interpretativa para a compreensão sociológica de que a tradição ocidental se revelou menos permissiva com o adultério feminino. Pode ser, trata-se de uma especulação minha.

Moreira Alves explorou também o conceito romano de boa-fé, no sentido de que os antigos percebiam nesta uma falsa crença que matizava um erro. Por isso, a boa-fé sugere uma dimensão psicológica, cujo pressuposto seria o erro, na compreensão de Savigny, resgatada por Moreira Alves. A tese atinge, então, seu ponto central, enfrentando a nulidade de casamento contraído de boa-fé. As fontes não teriam explicitado o problema; porém, como hipótese de trabalho, Moreira Alves sustentou uma teoria intermediária, insistindo que os romanos não estranhavam o matrimônio putativo. Do ponto de vista epistemológico, Moreira Alves questionou teses até então prevalecentes, nas quais os autores "partindo de uma conjectura elevada à categoria de dogma, formaram-se cadeias de hipóteses".

A tese de Moreira Alves é irretocável, com tema claro (o casamento no Direito Romano), com problema definido (o matrimônio putativo e a boa-fé), com marco teórico substancial (forte em autores canônicos e em fontes autênticas) e com hipótese sustentável (o conhecimento do matrimônio putativo pela tradição romanista).

Moreira Alves foi um jurista na mais completa acepção do termo. É também importante ressaltar a influência que Moreira Alves exerceu sobre importantes juristas brasileiros, a exemplo, principalmente, do ministro Gilmar Ferreira Mendes. Recomendo a leitura do depoimento do ministro Moreira Alves na História Oral do Supremo Tribunal Federal (volume 13), bem como uma entrevista publicada aqui na ConJur.

Há três semanas publiquei nesta coluna um estudo sobre o voto do ministro Moreira Alves na ADC 1. Infelizmente, não tive o privilégio de conhecê-lo pessoalmente. Tive, no entanto, a honra de trabalhar com Sonia Regina Maul Moreira Alves, filha do ministro, competentíssima advogada da União, para quem eu frequentemente pedia informações sobre o pai, por quem sempre tive muita admiração. Sonia, com paciência, fazia referências ao pai, que revelavam afeto e entusiasmo. Ficam à família os meus respeitos e condolências, neste momento difícil.

 


[1] Retomo nesse texto comentário que fiz à tese de livre-docência do Ministro Moreira Alves nessa coluna, em 14 de junho de 2015.

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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