Opinião

A decisão de Toffoli e a cooperação internacional na "lava jato"

Autor

  • Manuela Abreu

    é advogada criminalista e especializada em Processo Penal pela Universidade de Coimbra em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

7 de outubro de 2023, 7h08

Nos últimos anos, a cooperação jurídica no âmbito penal tem experimentado um notável crescimento, sustentada pela celebração de acordos internacionais, estabelecimento de órgãos internos e implementação de mecanismos criados com o propósito específico de promover uma colaboração mútua entre os países, especialmente em resposta a crimes que transcendem fronteiras nacionais. Esse caminho se torna evidente e necessário nos casos de delitos transnacionais, tais como lavagem de dinheiro, evasão fiscal, tráfico internacional de pessoas, armas e drogas.

Embora se possa afirmar que a cooperação penal internacional é uma realidade no cenário do século 21, também é evidente que se trata de um conceito relativamente recente, que está gradualmente amadurecendo. Na era da globalização econômica que caracteriza o mundo contemporâneo, as facilidades de comunicação não apenas beneficiam delitos que transpõem fronteiras, mas também fortalecem as redes de aplicação da lei e o sistema judicial em todo o mundo, que estão cada vez mais interligados no que diz respeito à investigação, ao processo e à execução de medidas judiciais.

Contudo, a cooperação jurídica deve, sempre, estar em conformidade com a legislação do país onde tais medidas devem ser aplicadas, ou seja, para que seja válida a cooperação internacional, ela deve, obrigatoriamente, atender aos termos contidos nos tratados internacionais de regência, bem como respeitar as garantias e procedimentos previstos na legislação interna, inclusive como forma de garantir a ampla defesa aos direitos do sujeito alvo das medidas de cooperação, chamado de "sujeito concernido" [1].

Antes de nos aprofundarmos no tema principal, é importante esclarecer o que entendemos por "cadeia de custódia". Em termos simples, a cadeia de custódia representa o conjunto de procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica da prova coletada, desde o seu reconhecimento até o seu descarte [2].

Nesse sentido, o pacote anticrime, Lei nº 13.964/2019, que alterou o código processual penal, apresenta uma descrição minuciosa das etapas que visam assegurar um processo mais justo e transparente na custódia da prova. Dentro desse âmbito, a cadeia de custódia abrange uma série de procedimentos que incluem o reconhecimento, isolamento, fixação, coleta, acondicionamento, transporte, recebimento, processamento, armazenamento e descarte do material coletado.

De mais a mais, pode-se afirmar que a evolução do processo penal e a busca pela verdade processual, fez com que a quebra da cadeia de custódia se tornasse um impedimento ao exercício pleno do direito de defesa, o que compromete a confiabilidade da prova e impõe a sua imprestabilidade no processo [3].

Com isso em mente, em atenção à preservação das garantias processuais, foi estabelecido que a cooperação jurídica seria feita a partir do Ministério da Justiça, como autoridade central, a partir do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), conforme prevê o Decreto nº 11.348/2023, de forma a assegurar que o país solicitado observe os padrões internos de legalidade, conferindo credibilidade às informações coletadas na cooperação.

O processamento do pedido de cooperação deve se dar, em síntese, da seguinte forma: as autoridades públicas competentes – juízes, membros do Ministério Público, delegados de polícia, defensores públicos – formulam o pedido devido ao DRCI, que pode ter como objetivo (1) cumprir atos de comunicação processual, como por exemplo citações, intimações e notificações, (2) atos de investigação ou instrução, como por exemplo oitivas, obtenção de documentos, quebra de sigilo bancário, quebra de sigilo telemático ou ainda (3) algumas medidas constritivas de ativos, como bloqueio de bens ou valores no exterior [4].

Quando executado, o pedido de cooperação jurídica internacional, por intermédio das autoridades centrais, cabe a estas tramitarem o resultado de forma considerada aceitável e segura pelas partes, isso é fundamental para a preservação da cadeia de custódia da prova.

Além disso, a autoridade central desempenha um papel crucial não apenas na fiscalização e coordenação com o país colaborador, mas também como intermediária quando as informações chegam ao Brasil. Ela recebe e encaminha prontamente essas informações à autoridade competente brasileira que requereu a cooperação jurídica. Essas medidas são verdadeiras garantias de validade para as provas recebidas, preservando assim sua credibilidade.

Até porque, quando se trata de medidas invasivas, como interceptações telefônicas, quebra de sigilo bancário, etc., nessas situações, por serem obtidas "fora do processo" e "fora do Brasil", é de extrema importância que se demonstre de forma documentada toda a trajetória feita pela prova, desde a sua autorização e coleta até o recebimento no país solicitante e sua inserção e valoração judicial no processo [5].

Nesse sentido, causou ampla discussão, no cenário jurídico, a cooperação jurídica feita fora dos canais oficiais, de forma secreta, por procuradores da República, na operação "lava jato", com autoridades dos Estados Unidos e da Suíça, no âmbito de acordo de leniência, celebrado pela Odebrecht, pois se revelou que a medida acontecera em total desobediência aos procedimentos previstos em convenções das quais todos os países envolvidos são signatários.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, à medida em que era instado a se manifestar sobre as ilegalidades das cooperações jurídicas realizadas no bojo daquele acordo de leniência, foi paulatinamente reconhecendo a sua nulidade, repudiando cooperações feitas extraoficialmente, com base na "confiança" e "conveniência[6].

Diante desse contexto, em 2022, o ministro Lewandowski, relator da Reclamação 43.007, reconheceu a invalidade das provas obtidas contra o reclamante naqueles autos, por meio das cooperações ilegais levadas a efeito pela operação "lava jato". Após essa decisão, em pedidos de extensão de outros réus/investigados, a Suprema Corte passou a reiterar a ilegalidade daquela cooperação jurídica, resultando na anulação das persecuções penais, também, de inúmeros outros acusados naquela operação.

 De lá pra cá, o STF vem entendendo que a tramitação da cooperação jurídica internacional deve ser feita, obrigatoriamente, por meio da autoridade central, como forma de garantir a preservação da cadeia de custódia. Pois, deste modo, a transmissão das informações coletadas obedece às regras para a preservação das provas obtidas, evitando que o material enviado sofra violações, caso contrário as provas são eivadas de nulidade.

Neste sentido, no último dia 6 de setembro, ganhou repercussão midiática a acertada decisão do ministro Toffoli, da Suprema Corte, que assumiu a referida reclamação com a aposentadoria do ministro Lewandowski, e reconheceu a imprestabilidade generalizada dos elementos de prova obtidos a partir do acordo de leniência da Odebrecht.

A partir da referida decisão, todos os elementos que decorrem do acordo de leniência, em qualquer âmbito ou grau de jurisdição, diante de tratativas realizadas por procuradores de Curitiba, diretamente com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos (Department of Justice), bem como com a procuradoria-geral da Suíça (Office of the Attorney General of Switzerland), sem a intervenção do DRCI, foram invalidadas.

O próprio DRCI, oficiado nos autos da referida reclamação para responder determinados quesitos, a fim de que fosse possível compreender, em toda a sua extensão, a tramitação de documentos via cooperação internacional e os cuidados adotados tanto no campo da custódia, quanto no da representação internacional e da comunicação oficial do Brasil com outros países, esclareceu que "deve, necessariamente e de modo exclusivo, ser solicitado por meio da autoridade central brasileira" o auxílio internacional em matéria penal, caso contrário "tal prova não poderá ser utilizada em território nacional por estar imersa em ilegalidade, geradora de nulidade insanável".

Assim, a decisão recente do ministro Toffoli estende em definitivo a determinação de ilegalidade de forma erga omnes, ou seja, para todas as outras ações que foram "contaminadas" pelo acordo.

Dessa forma, a recente decisão do Supremo Tribunal Federal reforça a importância em se observar garantias processuais e o procedimento estabelecido para a cooperação jurídica, sobretudo em razão da preservação da cadeia de custódia da prova.

Vale dizer, ainda, que a ausência das formalidades legais faz com que ilegalidades, prisões de inocentes e o mal uso do sistema judiciário aconteçam, como se viu na própria operação "lava jato", em que procuradores da República usurparam o instituto de cooperação jurídica internacional para produzir perseguições a inimigos políticos [7] processados e presos injustamente. Nesse sentido, a decisão proferida pelo ministro Toffoli:

"Tratou-se de uma armação fruto de um projeto de poder de determinados agentes públicos em seu objetivo de conquista do Estado por meios aparentemente legais, mas com métodos e ações contra legem.
Digo sem medo de errar, foi o verdadeiro ovo da serpente dos ataques à democracia e às instituições que já se prenunciavam em ações e vozes desses agentes contra as instituições e ao próprio STF.

Ovo esse chocado por autoridades que fizeram desvio de função, agindo em conluio para atingir instituições, autoridades, empresas e alvos específicos. Sob objetivos aparentemente corretos e necessários, mas sem respeito à verdade factual, esses agentes desrespeitaram o devido processo legal, descumpriram decisões judiciais superiores, subverteram provas, agiram com parcialidade (vide citada decisão do STF) e fora de sua esfera de competência" (STF – RCL 43.007/DF – min. Toffoli, j. 6/9/2023)

Sendo assim, para que seja válida a cooperação jurídica internacional, é preciso necessariamente obedecer a todos requisitos previstos nas convenções respectivas entre os Estados-membros que, a partir do momento em que são recepcionadas pelo Brasil, tornam-se legislações de observância obrigatória para as autoridades nacionais.

Portanto, fica evidente que, quando se trata obtenção de provas a partir de cooperação jurídica internacional, a integridade da cadeia de custódia correspondente só pode ser confirmada se forem seguidas rigorosamente as diretrizes estabelecidas nas convenções e, principalmente, nos acordos bilaterais que regulam a matéria, além da participação do Ministério da Justiça como autoridade central.

Dessa forma, qualquer quebra na cadeia de custódia, que é a "documentação cronológica do vestígio" [8], necessariamente resultará na exclusão da prova do processo, diante da sua ilicitude e, consequentemente, de todos os elementos derivados daquela prova específica.

Assim, na ausência da possibilidade de assegurar a plena verificação da idoneidade e integridade da prova obtida, considerando a impossibilidade de reconstituir a cadeia de custódia, torna-se inadmissível reconhecer sua validade, principalmente quando se trata de um processo de natureza penal. Aceitar de outra maneira seria desconsiderar a violação da mais fundamental garantia processual do cidadão, que é o princípio constitucional do devido processo legal [9].

Ademais, é essencial que aprendamos com os erros cometidos durante a operação "lava jato", a fim de evitar a relativização das regras e da instrumentalidade no sistema legal. Os desvios ocorridos destacaram a importância de aderir estritamente às diretrizes estabelecidas para a cooperação jurídica internacional, garantindo a preservação da cadeia de custódia das provas, o respeito ao devido processo legal e a soberania nacional. Ao reconhecer e corrigir as falhas do passado, podemos fortalecer a integridade do sistema judicial, assegurando que a cooperação jurídica internacional seja realizada de maneira justa, transparente e em conformidade com os princípios fundamentais da justiça.

E, por fim, espera-se que as autoridades públicas que atuaram e praticaram os atos relacionados aos abusos e ilegalidades cometidos no mencionado acordo de leniência, realizado sem observância dos procedimentos formais junto ao DRCI, sejam identificadas e que os órgãos cabíveis adotem as medidas necessárias para apurar as responsabilidades de cada uma, nas esferas administrativa, cível e criminal, respeitados o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal que tão largamente essas mesmas autoridades não observaram.

 

 


[1] TROTTA, Sandro Brescoviti. Os limites da cooperação jurídica internacional em matéria penal, 2013 (Acesso em: file:///C:/Users/manuela.souza/Downloads/admin,+SPViolencia+v5n1+-+02+-+final%20(2).pdf)

[2] Silva, João Espínola Da, and Maria Leonice Da Silva Berezowski. "CADEIA DE CUSTÓDIA – ATUALIZAÇÕES E DESDOBRAMENTOS TRAZIDOS PELA LEI 13.964/19." Vertentes Do Direito.

[5] JÚNIOR, Aury Lopes, ROSA, Alexandre Morais da. A importância da cadeia de custódia da prova, 2017. Acesso em: https://www.conjur.com.br/2015-jan-16/limite-penal-importancia-cadeia-custodia-prova-penal

[5] STF, Rcl 43007/DF, j. 06.09.2023.

[6] SERRANO, Pedro. Autoritarismo Liquido e a Crise Constitucional, 2021. Artigo em livro: ABREU, Manuela, PRATES, Beatriz e BATISTA Matheus: "A cooperação entre a operação Lava-Jato e os Estados Unidos da América: considerações acerca da soberania nacional e do sistema jurídico de exceção".

[7] SERRANO, Pedro. Autoritarismo Liquido e a Crise Constitucional, 2021. Artigo em livro: ABREU, Manuela, PRATES, Beatriz e BATISTA Matheus: "A cooperação entre a operação Lava-Jato e os Estados Unidos da América: considerações acerca da soberania nacional e do sistema jurídico de exceção".

[8] MÔNACO, Gustavo e SANTORO, Raquel. A importância da cadeia de custódia para obter prova em cooperação internacional. Acesso disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mar-20/opiniao-cadeia-custodia-cooperacao-internacional

[9] PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019.

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