Opinião

Baker v. Carr: Political Question Doctrine pode ser fonte de inspiração aos Poderes?

Autor

  • Patrick Luiz Martins Freitas Silva

    é mestre em Ciências Jurídicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e doutorando em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) professor de Direito Constitucional e coordenador do curso de direito das Faculdades Doctum de Caratinga e coordenador do Núcleo de Estudos Realistas do Direito e membro do Observatório da Justiça Brasileira (OJB/UFRJ).

7 de outubro de 2023, 15h18

Baker v. Carr foi um importante caso julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, em 1962, e que constitui um marco importante na jurisprudência do país, especialmente diante do tema da Separação dos Poderes e do sistema de checks and balances [1].

Charles Baker, o reclamante neste caso, era um morador do Tennessee. Ele observou que, desde 1901, o estado não havia realizado o processo conhecido como "redistritamento eleitoral". Este procedimento ajusta e redistribui os "distritos legislativos", levando em conta as mudanças na população.

O redistritamento garante que cada grupo de pessoas, independentemente de onde vivem, tenha uma quantidade justa de representantes eleitos, proporcionando uma representação política equitativa. Em outras palavras, o redistritamento assegura que o número de representantes seja proporcional à população, refletindo de maneira justa e igualitária a distribuição demográfica.

O problema residia no fato de que, ao longo dos anos, a população de Tennessee tinha mudado significativamente. Algumas áreas tinham experimentado crescimento populacional, enquanto outras viam sua população diminuir. Sem redistritamento, isso resultou em distritos com tamanhos populacionais muito diferentes, mas cada distrito ainda elegia o mesmo número de representantes. Isso, efetivamente, criou uma disparidade na representação política: o voto de um cidadão em um distrito pequeno tinha muito mais "peso" do que o voto de um cidadão em um distrito grande. Essa situação, observou Baker, estava em desacordo com o princípio democrático fundamental de "um homem, um voto" [2].

Diante dessa injustiça percebida, Charles Baker decidiu levar o caso aos tribunais. Ele alegou que, devido à falta de redistritamento, ele e outros cidadãos estavam sendo privados de uma representação igualitária, uma violação de seus direitos constitucionais.

Quando o caso chegou à Suprema Corte em 1962, os juízes tiveram que considerar se tinham jurisdição para ouvir casos de redistritamento – uma questão que tradicionalmente era considerada política e, portanto, fora do alcance do Judiciário.

A Corte, sob o comando do chefe de Justiça Earl Warren, reconhecendo a importância vital da representação igualitária em uma democracia, decidiu que tinha, sim, autoridade para ouvir o caso e que questões de redistritamento eram judicializáveis. Esta decisão significava que o Judiciário agora poderia intervir em casos de redistritamento para garantir uma representação política justa e equitativa para todos os cidadãos, independentemente de onde morassem.

Embora a Suprema Corte tenha decidido intervir no caso, analisando o mérito da controvérsia, esse julgamento não deu "carta branca" para o Judiciário intervir em todas as questões políticas [3]. Pelo contrário, a Corte estabeleceu, a partir desse momento, critérios mais claros para determinar quando uma questão é predominantemente política, delineando assim os contornos da chamada Political Question Doctrine.

A Political Question Doctrine, ou Doutrina da Questão Política, foi a base justificadora da decisão da Corte no caso em tela, pelas razões a seguir delineadas: primeiro, a presença de um critério claro e manejável estava evidente, representado pelo princípio do equilíbrio de representação. Segundo, a matéria discutida transcendia a esfera política pura, visto que provocava a necessidade de aplicação de um princípio constitucional imperioso que clamava por salvaguarda. Terceiro, a decisão judicial não implicaria um desrespeito frontal às prerrogativas dos demais poderes; ao contrário, garantiria a fiel execução de uma norma de estatura constitucional.

Além disso, a Corte não detinha competência originária sobre redistritamento, conforme o quarto critério, mas estava diante de uma obrigação de caráter jurídico inafastável. Por fim, a quinta razão residia na constatação de que a controvérsia poderia, de fato, receber uma solução adequada pela via judicial. Estes cinco critérios, amalgamados, contribuíram decisivamente para a cristalização dos padrões que norteiam o mencionado instituto.

Dessa forma, a Corte estabeleceu parâmetros precisos, delineando situações nas quais o Poder Judiciário estaria impedido de intervir em temáticas políticas. Tais situações ocorreriam quando: 1) não existissem critérios objetivos e transparentes para orientar a atuação judicial; 2) a questão sub judice fosse de natureza estritamente política; 3) a intervenção judicial acarretasse desrespeito às funções de outro poder, instigando um desequilíbrio institucional nocivo; 4) a Constituição designasse, de modo expresso, a competência de outro órgão para a resolução da matéria; e, finalmente, 5) quando o litígio apresentasse características de insolubilidade pelo crivo judicial.

Mas, afinal, qual iluminação a doutrina nos provê neste cenário de tensões ascensionais entre os Poderes no Brasil?

Estas tensões têm sido exacerbadas diante das acusações recorrentes do Congresso Nacional, que vê o Supremo Tribunal Federal (STF) como agente de usurpação de poderes, também conhecido como ativismo judicial [4].

Este quadro de descontentamento se intensificou subsequentemente à decisão do marco temporal, além da inclinação do STF em considerar inconstitucional a proibição do uso pessoal de maconha e a criminalização do aborto até o terceiro mês de gestação. Tais decisões refletem a necessidade imperativa de distinguir entre as formas variadas de atuação do STF, nomeadamente: 1) a atuação político-jurisdicional e 2) a atuação voltada para a salvaguarda das minorias.

Em casos que concernem à proteção de minorias, como a garantia dos direitos fundamentais exemplificada nas decisões sobre cotas raciais, casamento entre pessoas do mesmo sexo, aborto, demarcação de terras indígenas e uso pessoal de drogas, o STF tem não apenas o direito, mas o dever inexorável de intervir. Tais temas sensíveis, que tocam diretamente as vidas de minorias, não podem ser deixados à mercê da volatilidade da vontade majoritária, ou tirania da maioria [5], requerendo a ação judicial como baluarte de seus direitos.

Por outro lado, em questões de natureza intrinsecamente política, os critérios delineados pela Political Question Doctrine deveriam ser meticulosamente aplicados. A suspensão da nomeação de Lula como Ministro da Casa Civil em 2016 [6], promovida por Gilmar Mendes, assim como a interrupção da indicação de Alexandre Ramagem para a chefia da Polícia Federal em 2020 [7], instigada por Alexandre de Moraes, são exemplos paradigmáticos de intervenções em questões políticas [8].

Neste sentido, a Political Question Doctrine se apresenta como um compasso valioso. Através de sua aplicação, é possível promover uma atuação judicial medida e reverente à autonomia dos outros poderes constitucionais. Isto não implica abdicação da proteção assídua aos direitos fundamentais e garantias constitucionais. O STF pode manejar esta doutrina como instrumento analítico para discernir os momentos apropriados de intervenção em esferas políticas e os instantes nos quais a autocontenção se faz necessária. Este equilíbrio fortalece o princípio dos freios e contrapesos, pilar essencial para a sustentação e vigor da democracia brasileira.

 

 


[1] Uma descrição cuidadosa do caso, seus pressupostos fáticos e jurídicos, e as repercussões da decisão, pode ser encontrada em: KATZENBACH, Nicholas de B. Some Reflections on Baker c. Carr. Disponível em: https://heinonline.org/HOL/LandingPage?handle=hein.journals/vanlr15&div=42&id=&page=

[2] O princípio "um homem, um voto" (ou "one person, one vote") originou-se nos Estados Unidos durante os anos 1960, como resultado de uma série de decisões da Suprema Corte que buscavam corrigir desequilíbrios na representação legislativa entre diferentes jurisdições. Essas decisões, que incluem os casos Baker v. Carr (1962), Reynolds v. Sims (1964), e outros, estabeleceram que as jurisdições eleitorais devem ser aproximadamente iguais em população, assegurando assim que cada voto tenha peso comparável em eleições.

[3] É imperativo salientar, no escopo deste artigo, que enxergo a political question doctrine primariamente como um instrumento de autocontenção judicial. Contudo, em um artigo elucidativo, Tara Leigh Groce desenha uma distinção pertinente, segmentando a doutrina em duas fases distintas no contexto estadunidense. Segundo a análise meticulosa de Groce, a doutrina da questão política passou a ser interpretada, sobretudo após o emblemático caso Baker v. Carr, como um mecanismo não de limitação, mas de expansão dos poderes judiciais. Este rearranjo possibilita uma intervenção mais pronunciada e direta do judiciário no palco político, um cenário que, em muitas instâncias, gera debates acalorados. Este artigo, por sua vez, posiciona-se de maneira resoluta em oposição a essa perspectiva. Acredito firmemente que as críticas pontuadas por Grove devem ser entendidas e contextualizadas como uma interpretação — um "ponto de vista" individual e não absolutamente hegemônico ou incontestável. Isso se evidencia na maneira como a Suprema Corte dos Estados Unidos, ao aplicar a doutrina, simultaneamente legitima intervenções em matérias políticas e estabelece critérios claros e sólidos para justificar momentos nos quais opta pela não interferência. Essa dinâmica dual e criteriosa revela que, embora a doutrina permita a incursão judicial no território político, ela também fornece balizas estruturadas para a prática da autocontenção, respaldando a visão defendida neste trabalho. Ver: Grove, T. L. THE LOST HISTORY OF THE POLITICAL QUESTION DOCTRINE. Disponível em: https://www.nyulawreview.org/wp-content/uploads/2018/08/NYULawReview-90-6-Grove.pdf

[4] A expressão "ativismo judicial" tem sido utilizada, muitas vezes, sem um critério tão bem delineado. Importante as reflexões de Lenio Streck sobre o tema: https://www.conjur.com.br/2013-jun-13/senso-incomum-ativismo-existe-ou-imaginacao-alguns.

[5] O termo é explorado em diversas obras sobre a história constitucional. Marta Nunes Costa apresenta o debate de uma forma interessante, através da visita ao pensamento de Tocqueville e John Stuart Mill. – Costa, M. N. da. (2015). A tirania da maioria: revisitando o debate. Veritas (Porto Alegre), 60(1), 92–105. https://doi.org/10.15448/1984-6746.2015.1.16329

[8] É crucial esclarecer que a menção aos casos de suspensão da nomeação de Lula como ministro da Casa Civil em 2016, ato executado por Gilmar Mendes, e a interrupção da indicação de Alexandre Ramagem para liderar a Polícia Federal em 2020, medida tomada por Alexandre de Moraes, não expressa nem implica concordância ou discordância com as respectivas decisões judiciais. A referência a estes casos específicos é realizada exclusivamente com o propósito de ilustrar situações em que o Judiciário interveio em questões de natureza predominantemente política. O objetivo deste trecho é ressaltar que essas questões, diferentemente de outras que envolvem a salvaguarda de direitos fundamentais, apresentam características que as situam dentro do espectro de análise pertinente aos critérios da Political Question Doctrine. Cada um dos casos citados é um exemplo de uma decisão que, por sua natureza, não está diretamente vinculada à proteção de direitos fundamentais, mas, sim, à esfera das disputas políticas. Como tal, essas decisões são susceptíveis de serem analisadas e avaliadas à luz dos critérios específicos estabelecidos pela Political Question Doctrine, um conjunto de princípios que oferece diretrizes para o exame judicial de questões intrinsecamente políticas.

Autores

  • é mestre em Ciências Jurídicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e doutorando em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor de Direito Constitucional e coordenador do curso de direito das Faculdades Doctum de Caratinga e coordenador do Núcleo de Estudos Realistas do Direito e membro do Observatório da Justiça Brasileira (OJB/UFRJ).

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